Este mundo amante da guerra não é o único possível.
(Dt 18,15-20; Sl 94/95; 1Cor 7,32-35; Mc 1,21-28)
Há algunos anos atrás, quando Israel bombardeava o Líbano, o grande jornalista e ensaísta uruguaio Eduardo Galeano lançava no ar perguntas contundentes: “Até quando continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível? Até quando continuarão a soar em sinos de madeira as vozes da indignação? A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, comem os vivos e os mortos...” E no mês de janeiro de cada ano, millhares de homens e mulheres de todo mundo renovam e proclamam sua fé vivida todos os dias: um outro mundo é possível! Essa possibilidade é uma necessidade que urge a todos aqueles/as que seguimos Jesus Cristo. Ele nos ensina com autoridade e age com absoluta liberdade, atacando e deslegitimizando a ordem social dominante. As vozes que sempre se opõem às mudanças ressoaram na sinagoga de Cafarnaum e se fazem ouvir nos grandes meios de comunicação de hoje, mas não assustam nem podem deter a ação libertária de quem sonha com um mundo enamorado da vida.
“Jesus foi à sinagoga e pôs-se a ensinar.”
São muitas e diversas as imagens de Jesus que circulam em nosso meio: desde as imagens que o aproximam da majestade dos reis até aquelas que o identificam com o jovem de bem com a vida, sem esquecer aquelas de um torturado banhado de sangue e as outras que o apresentam como um ser absolutamente sereno e tranquilo diante de tudo, como se não tivesse sentimentos.
Mas ao lado das imagens pintadas ou esculpidas, temos aquelas que criamos mentalmente e revelamos nos textos teológicos e espirituais. No campo dos escritos predomina um Jesus imaginado como um doce e ingênuo pregador dos valores do céu, da importância da alma, da supremacia das coisas espirituais sobre as materiais, da urgência da conversão do coração, da necessidade da oração, etc.
Não é muito diferente no campo da imaginação. É arriscado generalizar, mas não podemos negar que predominam imagens de um Jesus mal divinizado, milagreiro sempre pronto a mostrar seu poder, senhor inacessível que se relaciona conosco pela intermediação dos santos e santas, pregador de belas mensagens que alegram o coração de todos...
“E sua fama se espalhou rapidamente...”
A idéia ou imagem de um Jesus ocupado em curar doenças, como se fosse um curandeiro popular, está bastante presente em nosso meio. É bem verdade que os evangelhos nos dizem que Jesus curou muitas pessoas, mas disso não podemos passar muito rapidamente à imagem do médico ou do curandeiro como são hoje conhecidos. As curas de Jesus foram poucas e em contexto muito precisos. A verdadeira cura é a recuperação do bem-estar pessoal e social das pessoas, e é isso que Jesus faz.
Precisamos considerar a doença como um fato social, como uma questão de relações, e não como uma simples complicação orgânica. Em situações de alto grau de insegurança e tensão, de baixo grau de satisfação e de nutrição, as doenças se multiplicam. “A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai” e ambas são geradoras de doenças. Segundo a OMS, a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença.
E Jesus não sai por aí simplesmente oferecendo curas a preços módicos, fazendo concorrência com os médicos e hospitais, como querem dar a entender algumas igrejas. O resgate do pleno bem-estar das pessoas, especialmente dos pobres e doentes, são sinais da chegada do Messsias. Quando Jesus cura, sua intenção não é afirmar o proprio poder ou divindade e fazer fama, mas oferecer sinais de que o Reino de Deus chegou de fato como vida em abundância para as pessoas mais sofridas.
“Ele manda até nos espíritos maus!”
Mas as curas que Jesus realizava não são aceitas com unanimidade. Sua ação restauradora da vida e libertadora das pessoas em sua integralidade é uma denúncia tácita da inoperância do sistema político, cultural e religioso que não só não possibilitava a saúde como também provocava o adoecimento físico e psíquico do povo. Esse enfrentamento com a ordem estabelecida fica mais claro no luta contra os ‘espíritos impuros’.
Para compreender o sentido profundo e revolucionário daquilo que denominamos exorcismo ou expulsão dos espíritos maus por parte de Jesus, precisamos esquecer aquilo que vimos nos filmes de exorcismo e o que vemos hoje nos cultos pentecostais. O ponto de partida é considerar a possessão como doença mental, ligada a um contexto social de extrema violência e insegurança do povo. Quando maior o grau de stress social, maior a incidência de doenças mentais e fenômenos estranhos.
“Viestes para nos destruir?”
Mas no texto do Evangelho que ouvimos hoje a questão não é propriamente possessão ou exorcismo. A cena merece nossa atenção porque é a primeira ação pública de Jesus. O palco da cena é a cidade de Cafarnaum e o lugar é a sinagoga – espaço dominado pelos escribas! – e o dia é sábado. Os escribas tinham o poder de dizer quem era puro e quem era impuro, e tais condições estavam estreitamente relacionadas, respectivamente, com a saúde ou a doença.
Diante de um povo admirado com a autoridade do ensinamento de Jesus, uma pessoa possuída por um espírito mau começa a protestar: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir?” Está muito claro que na voz desse cidadão anônimo ressoa a voz dos escribas, ‘donos do campo’. O que está em jogo é a autoridade de ensinar, orientar e liderar o povo: ela pertence a Jesus ou aos escribas? O medo de perder a liderança pode provocar ações e discursos enlouquecidos...
“Ele ensinava como quem tinha autoridade...”
Naquele homem dominado se manifesta o pânico e a desestabilização provocadas pela autoridade alternativa de Jesus. E isso vem confirmado pela própria ação de Jesus: ele propriamente não cura aquele homem, mas luta, ameaça o ‘espírito mau’ e manda que ele se cale e deixe de dominar as pessoas. E o povo fica impressionado: “O que é isso? Um ensinamento novo, dado com autoridade?”
Jesus não reivindica uma autoridade recebida de Deus nem faz questão de agir através de gestos portentosos. O poder divino que se expressa nele reside no testemunho de novas possibilidades de vida e na coragem de se confrontar com a ordem estabelecida, produtora de doenças e de opressão. A autoridade do seu ensinamento se assenta sobre seu ministério de compaixão e de libertação das pessoas escravizadas. Ele é o profeta anunciado no livro do Deuteronômio.
Jesus é o mestre que conduz o povo à liberdade e à vida, rompendo os murros e barreiras erguidos pelos escribas e doutores da lei. Se ele simplesmente curasse doentes não seria perseguido. Existiam muitos outros curandeiros que viveram em paz até o fim dos seus dias. Jesus foi enfrentado, rejeitado e eliminado porque, ensinando e curando, ousou atacar a legitimidade da ordem dominante.
“Permaneçamos sem distração junto dele...”
Somos discípulos daquele Nazareno que ensina com autoridade, que ameaça os espíritos que se apossam da nossa voz e determinam que apenas soletremos seus discursos. Voltemos às perguntas que não querem calar: “Até quando continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível? Até quando continuarão a soar em sinos de madeira as vozes da indignação?”
Na expectativa da irrupção de um novo mundo, Paulo procura orientar os cristãos em relação ao matrimônio. No fundo está a questão seguinte: qual é a luta que não podemos adiar e que se sobre-põe a todas as outras prioridades? Paulo pede que os cristãos permaneçam sem distração junto ao Senhor, ou seja: que nada nos impeça escutar e aceitar aquilo que Jesus ensina com autoridade.
Jesus de Nazaré, profeta corajoso nas palavras e ousado na ação: somos discípulos/as, e conosco estão os irmãos e irmãs de milhões de comunidade cristãs, além de homens e mulheres de boa vontade que se fazem movimento. Não permita que vendamos nossa esperança por preço nenhum. Não não nos deixes trocar teu Evangelho por ‘antigas lições’, fazendo de ti um mestre doce e inofensivo. Faz ressoar em nossos sinos de bronze tua boa notícia, a indignação e a esperança! Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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