O conhecido teologo suíço Hans Küng publicou, no ano passado, mais um livro tão sério quanto polêmico. O título deste livro que ele diz ter preferido não escrever é Salvar a Igreja (tradução italiana: Salvare la Chiesa, Rizzoli, 2011). Depois de fazer um diagnóstico histórico-crítico da enfermidade grave que acomete a Igreja católica (capítulos 1-5, p. 17-202), o ele propõe algumas intervenções curativas, ou uma terapia ecumênica (capítulo 6, p. 203-278). Neste capítulo ele afirma que, para curar-se, a Igreja deve: reforçar sua missão essencial e sua responsabilidade social; o papa deve estabelecer uma radical comunhão com a Igreja; a Cúria romana deve ser reconduzida ao Evangelho; os funcionários da Cúria precisam ser escolhidos por cometência técnica e não por favoritismo pessoal; é necessrio dar um choque de transparência e de competência na administração financeira da Igreja; deve abolir a Congregação para a Doutrina da Fé e toda forma de repressão (inquisição doutrinal); precisa reelaborar radicalmente o Direito Canônico; deve liberar o casamento aos padres e bispos; precisa permitir a ordenação de mulheres; deve assegurar às comunidades diocesanas a eleição dos seus bispos; andar na direção de facultar a comunhão eucarística aos protestante e católicos; dinamizar a abertura e colaboração ecumnica, sem silêncios e desculpas. Traduzo e disponibilizo aqui o terceiro parágrafo deste último capítulo, no qual Hans Küng apresenta os critérios cristologicos desta terapia (p. 210-213).
Em poucas palavras, a Igreja é a comunidade das pessoas que aceitaram Jesus Cristo, aderiram à sua causa e a testemunham ativamente como uma esperança para o mundo. A Igreja é digna de crédito quando não anuncia a mensagem cristã primeiramente aos outros, mas começa por si mesma, não se limitando assim a pregar aquilo que Jesus pede, mas respondendo em primeira pessoa à sua proposta. Portanto, sua credibilidade depende da fidelidade a Jesus Cristo. É uma Igreja somente e na medida em que se mantém fiel a Jesus Cristo na palavra e nos fatos.
Todas as reformas devem ser avaliadas segundo o critério central da Igreja: o Jesus histórico, tal qual encontramos descrito no Novo Testamento, nos traços essenciais do seu anúncio, da sua prática e do seu destino único de Cristo dos cristãos, a despeito de todas as tentativas de destruição. Porém, aos homens e mulheres de hoje, Jesus deve ser anunciado numa língua moderna e não numa linguagem velha e dogmática, incompreensível para um mundo leigo e secularizado. Somente assim ele poderá entrar como uma figura viva no nosso presente e se tornar um critério concreto com o qual nos confrontamos.
Portanto, não podemos imaginar que se ele, a quem o cristianismo deve se referir essencialmente, retornasse hoje, como na ficção de Dostoevskij, assumisse uma posição como aquela das autoridades romanas, frequentemente compartilhada pelas demais autoridades eclesiásticas, especialmente nas questões controvertidas. Ou seja:
1. Que ele, que criticava os fariseus por colocarem pesos insuportáveis sobre as costas do povo, possa definir todos os métodos artificiais de prevenção da gravidez como um pecado mortal, como se estes métodos tivessem como objetivo banalizar a sexualidade e conduzissem necessariamente ao aborto;
2. Que exatamente ele, que convidava e acolhia à sua mesa as pessoas excluídas, possa hoje proibir definitivamente que participem da eucaristia as pessoas separadas e recasadas;
3. Que ele, que era permanentemente acompanhado por mulheres e cujos apóstolos eram todos casados, possa proibir hoje o matrimônio aos homens que receberam as ordens sagradas e proibir a ordenação às mulheres;
4. Que ele possa afastar um número sempre crescente de párocos e capelães das comunidades, privando paróquias e comunidades da celebração da eucaristia;
5. Que ele, que protegia as pessoas adúlteras e pacadoras, possa emitir duras sentenças em questões delicadas, que pedem atenção particular e crítica (como as relações pré-matrimoniais, a homossexualidade, o aborto, etc.);
6. Que ele estaria de acordo que, no âmbito ecumênico, a diversidade de confissão fosse um impedimento para o matrimônio e para que teólogos/as leigos/as assumam dsempenhem sua missão a serviço da Igreja;
7. Que ele contestaria a validade da ordenação e da celebração eucarística aos pastores e pastoras protestantes;
8. Que ele impediria a hospitalidade eucarística e a celebração comum da eucaristia, a construção de templos e centros paroquiais comuns e o ensino religioso ecumênico;
9. Que ele, ao invés de apresentar razões e convencer os teólogos, capelães universitários, professores de ensino religioso, jornalistas e membros e responsáveis pelos movimentos jovens, procuraria domá-los com punições e decretos, e privá-los da missão canônica...
Enfim, não consigo imaginar que ele contestaria aos não judeus e não cristãos o conhecimento do verdadeiro Deus e a possibilidade de encontrar o caminho que leva a ele. Jesus tratou as pessoas que tinham outra fé de um modo muito diferente dos contemporâneos que se diziam justos e ortodoxos. Ele os respeitou como seres humanos e lhes reconheceu a dignidade. Ele, nascido de mãe judia, demonstrou grande entusiasmo diante da fé demonstrada por uma mulher cananéia e por um oficial romano; acolheu amistosamente os gregos que o procuravam; e apresentou provocativamente aos seus conterrâneos judeus um samaritano erético como modelo de amor ao próximo.
Com o olhar voltado a Jesus Cristo, as necessárias reformas que a Igreja deve empreender podem ser expressas em forma de caminhos concretos, inspirados nas escrituras. Partindo dele, é fundamental que:
a) A Igreja não se apresente e não seja compreendida como um aparato de poder, uma empresa ou uma indústria da religião que impede constantemente o exercício do diálogo e da democracia, mas como o Povo de Deus, o Corpo de Cristo e a comunidade do Espírito em nível mundial e local;
b) O ministério eclesiástico não se apresente e não seja compreendido como uma falange ou um governo sagrado, mas como um serviço aos homens e mulheres;
c) O papa não se apresente e não seja tratado como um semideus, um autocrata espiritual, um comandante supremo ou um executivo de uma grande empresa, mas como um bispo que guia a Igreja católica, cujo primado pastoral está estreitamente ligado à colegialidade episcopal e ao serviço da Igreja universal.
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