Por vários dias, durante o tempo pascal, a Igreja propõe à nossa
meditação o capítulo 6 do evangelho de João. Neste ano, começamos a saborear
este prato da Palavra no dia 20 de abril, e iremos até o próximo sábado, dia
28. Em geral, diz-se que o tema desta longa perícope é o pão da vida, e que seu contexto é o sacramento da eucaristia.
Um rápido olhar sobre o conjunto literário nos mostra que a perícope
inicia com o sinal da multiplicação dos pães e dos peixes (v. 1-15), prossegue
com a tumultuada travessia do lago por parte dos discípulos (v. 16-21), se prolonga na discussão sobre a
credibilidade das obras de Jesus e sobre o pão verdadeiro (v. 22-58) e termina
com uma profunda crise envolvendo os discípulos (v. 59-71).
Se entendo bem, ao lado da questão cristológica (os sinais da
autenticidade do messianismo de Jesus) está também o tema do discipulado (o que
é preciso fazer para se salvar). Parece-me que a discussão sobre as
consequências do seguimento de Jesus atravessa o texto de ponta a ponta. Em
todos os casos, penso que aqui estamos longe de uma reflexão espiritualista e desencarnada
sobre o sacramento da eucaristia (falta o sinal do vinho e, no seu lugar,
aparecem os peixes!).
Antes de tudo, o evangelista sublinha que a ação de saciar a fome da
multidão com a decisiva colaboração dos discípulos não deve ser compreendida
como milagre, como simples ação
comercial ou caritativa, mas como sinal.
O alimento distribuído abundantemente a um povo reconhecido em sua dignidade
(sentado nobremente na relva) é sinal eloquente da autenticidade de um
messianismo que prioriza as pessoas em situação de risco e prefere contar com a
colaboração decisiva dos que o reconhecem.
Mas as leituras dessa ação simbólica de Jesus são diversas e não
conseguem captar seu sentido mais profundo. Partindo da ação de saciar a fome,
parte do povo o reconhece como o profeta esperado e, guiado por um messianismo
caracterizado pelo poder, pretende aclamar e coroar Jesus como rei. Mas ele não
se deixa impressionar pela inesperada popularidade e se retira discretamente.
Os próprios discípulos não conseguem entender claramente o que acontecia.
Na verdade, a escuridão da noite que os envolvia e amedrontava na travessia do
lago era mais que tudo espiritual e mental. O medo diante da novidade de um
Messias que recusa o poder e não se deixa encarcerar nos limites das
instituições, inclusive da Igreja, é simbolizado pela escurido, pelo vento
forte, pelo mar agitado e pela ausência de Jesus.
Da recusa de Jesus em atuar como operador de caridade assistencial ou
como chefe político é que brota a
pergunta: “O que devemos fazer para praticar as obras de Deus?” (v. 28). Jesus
responde dizendo que é preciso trabalhar pelo um alimento consistente e
duradouro e acreditar naquele que Deus enviou, ou seja: nele mesmo e no seu
modo de agir. Mas o povo e os discípulos andam atrás de sinais portentosos e se
recusam a entender.
É neste contexto que Jesus, tomando como
referência o maná com o qual Deus alimentara os hebreus no deserto, passa do
pão e dos peixes distribuídos como alimento temporário à metáfora do “verdadeiro
pão do céu” (v. 32). Dizendo que “o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (v.33),
Jesus está chamando a atenção para o seu movimento
de descida, de encarnação na fragilidade humana, de recusa de honrarias e poderes.
É neste movimento de descida e de aproximação, nesta travessia em meio a
desertos de sentido e de humanidade, que está o segredo de uma vida que as
mortes não podem destruir.
O povo teve dificuldades de passar do pão cotidiano para o dinamismo pascal da
vida de Jesus, como nós temos dificuldades de passar do pão eucarístico para o dinamismo da encarnação, da partilha e da
solidariedade. Como a massa que via em Jesus um distribuidor de alimentos, nós
o reduzimos a um mítico líder espiritual que se dedica a inventar sacramentos e
só sabe pedir que repitamos ritos e mais ritos.
O nó da questão é crer em Jesus de Nazaré e
reconhecer na sua vida concreta – pregação e ações, grandes ou pequenas – o
segredo da vida que todos desejamos. Seus vínculos com um carpinteiro da Galiléia,
suas relações com os proscritos religiosos e sociais, assim como a doação de si
mesmo até às últimas consequências no alto da cruz não podem ser pedra de escândalo.
“A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou” (v. 30).
É a fé e ou a adesão a Jesus Cristo que confere
à nossa frágil vida uma força inaudita. É desta fé que se nutriram e se nutrem
profetas e profetizas, missionárias e apóstolos, servidores e ministras
anônimas, desde sempre. É na carne frágil e profundamente terna de Jesus, no
suor e no sangue que derramou prodigamente para não permitir que os últimos
sejam apenas e sempre últimos que aurimos a esperança, a força e a coragem que
faz nossa vida ser vida.
Ou não?! João registra que, depois da fala de
Jesus sobre o pão que desce do céu e
da necessidade de alimentarmo-nos da sua
carne e do seu sangue, muitos discípulos murmuravam contra a dureza do seu
ensinamento (cf. v. 60-61) e pensavam em buscar outros mestres. E é nesse
momento que Jesus liga sua catequese sobre o pão que desce do céu com o corpo
que é elevado na cruz e, assim, elevado e reconhecido no céu (v. 62). E
então, “a partir daquele momento, muitos discípulos o abandonaram, e não mais
andavam com ele” (v. 66).
A pergunta que Jesus dirige ao círculo dos
discípulos mais próximos neste exato e
crítico momento vale também para nós: “Vós também quereis ir embora?” (v. 67).
Precisamos evitar respostas superficiais e decoradas, ou a simples repetição da
resposta de Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós
cremos firmemente e reconhecemos que tu és
santo de Deus” (v. 69). Os capítulos seguintes do evangelho de João,
inclusive o evento do lava-pés, mostram que a resposta de Pedro foi impensada,
imatura e irresponsável. E a verdade é que hoje temos tantos outros mestres que
nos oferecem seus ensinamentos e o caminho da felicidade a custos bem menores
daqueles que pagam as pessoas que seguem de Jesus...
De qualquer modo, o desfecho do texto não deixa
dúvidas: Jesus não falava de uma espécie de espiritualidade eucarística à
refratária a conflitos e preocupações histórico-sociais; nem pretendia insistir
na materialidade da sua presença na hóstia-corpo e no vinho-sangue, elementos
centrais do sacramento da eucarista. Ninguém se escandalizaria ou deixaria de
segui-lo por causa disso. A questão é bem mais séria e profunda, e precisamos
enfrentá-la com responsabilidade e inteligência: trata-se dos sinais de
autenticidade do messias, das consequências do seguimento de Jesus, das atitudes
e práticas que devemos assimilar para realizar a obra de Deus na história. E
isso não é coisa que se resolve em cinco minutos de adoração diante do Santíssimo...
Itacir Brassiani
msf
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