A pedra rejeitada se tornou princípio e fundamento.
(Gn 1,1-2,2; Gn 22,1-18; Ex 14,15-15,1; Rm 6,3-11; Sl 117/118; Mc 16,1-7)
Como quando falece uma pessoa querida, aqui estamos em vigília, marcados pela dor da perda, recapitulando a história da salvação, regando as frágeis sementes da esperança. Acompanham-nos tantas testemunhas que nos antecederam nesta travessia. Mas a vigília sempre tem o objetivo de assumir a herança espiritual de quem partiu, levantar o olhar, contemplar o horizonte e encontrar forças para continuar a caminhada da vida. Aqui estamos, como Elis Regina, acariciando o pequeno fio de esperança: “Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente... A esperança dança na corda-bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar...”
“A terra estava sem forma e vazia...”
Não podemos fazer de conta que já sabemos claramente o que vai acontecer no final desta breve vigília. Quem pensa assim não suporta uma hora de escuta e meditação e quer logo ver o fim já conhecido. O objetivo desta vigília não é apenas recordar a ressurreição de Jesus de Nazaré, acontecida há quase dois mil anos. Reunimo-nos para lançar um olhar contemplativo sobre nossa história pessoal e coletiva, para tentar perceber nela os sutis sinais de ressurreição.
É uma ilusão inocente ou maldosa imaginar que tudo muda num golpe de mágica. A ação criadora de Deus mediante nossa própria ação é sempre lenta e avança numa luta sem tréguas contra o vazio, o caos e o abismo. Como os hebreus fugindo do Egito, aqueles/as que lutam se vêem frequentemente encurralados/as, com o mar intransponível à frente e as tropas ameaçadoras atrás. Nossa experiência ainda hoje é de que existem pessoas lutadoras e iniciativas promissoras, mas estão muito dispersas, como o povo de Israel no cativeiro da Babilônia. Quais são os sinais de páscoa em tal situação?
Os sinais estão nas mil formas que a criação encontra para mostrar sua beleza, harmonia e bondade. Estão também nos homens e mulheres que, vivendo a ternura e o cuidado, estampam nos próprios corpos a imagem do criador; nos homens e mulheres que mudam o coração de pedra e lei em coração de carne e humanidade; nos passos inseguros e cambaleantes que muitos grupos ousam, entrando mar adentro; nos fragmentos que se associam e se unem para formar um povo com consciência da sua dignidade e da sua missão; nesta comunidade chamada Igreja que, apesar das fraquezas e traições dos seus membros, confessa seu pecado, levanta a cabeça, anuncia e denuncia.
“Ele ressuscitou! Não está aqui!”
Sendo recordação, a vigília é saudade, espera, evazio: o vazio da libertação perdida, do desejo de plenitude, do futuro que é espera. A vigília é também um dolorido processo de despojamento dos nossos estreitos conceitos, fechadas identidades, ambíguas ambições e instáveis seguranças a fim de purificar nosso olhar e sintonizar nosso ser com o mistério de Deus. Deus assume esse vazio e nele faz sua morada! No início de tudo, o Espírito pairava sobre a terra informe e vazia...
O vazio da sepultura não comprova a ressurreição mas convida a perceber que as marcas dos pregos e o corpo torturado não são a última palavra de Deus sobre a hisória. Na sepultura vazia anjos e mulheres ensinam que o caos do lixo pode dar lugar a uma criação harmoniosa, que o mar ameaçador pode ser atravessado a pé enxuto, que os grupos dispersos podem ser reunidos, que os crucificados caminham à nossa frente rumo às fronteiras onde novas possibilidades estão em gestação.
É verdade que o Dia ainda não amanheceu e a terra continua tremendo, mas os guardas do sistema também tremem diante do vulto de mulheres e homens que corajosamente se aproximam. Precisamos nos abrir às novas possibilidades escondidas no segredo do átomo, no íntimo das pessoas e nos caminhos da história, vibrar de alegria e sair correndo para anunciar despudoradamente aos outros esta alvissareira notícia.
Mas as mulheres nos ensinam que os sinais palpáveis da ressurreição só podem ser tocados na periferia – “ele vai para a Galiléia na frente de vocês. Lá vocês o verão” – ou na missão – “agora vocês devem ir e dizer aos discípulos dele e a Pedro...” É neste caminho de êxodo missionário que as três mulheres reconhecem o Ressuscitado que vem ao seu encontro e lhes pede que se alegrem e não tenham medo. O lugar onde ele estava deixa de ser importante. O que importa agora é ir para onde ele está, para a Galiléia daqueles/as que não contam.
“O homem velho foi crucificado com Cristo”
Como cristãos, completamos em nossos corpos os sofrimentos de Jesus Cristo, prolongamos em nós mesmos os sinais do esvaziamento por amor. E a ressurreição se multiplica como semente no testemunho e nas iniciativas de discípulos e discípulas, comunidades e Igrejas, grupos e movimentos. Como na ressurreição de Jesus de Nazaré, os sinais são pequenos, quase desprezíveis, mas igualmente reais e promissores.
O batismo, recordado comunitariamente nesta vigília, expressa este dinamismo pascal na vida de cada um/a de nós e da comunidade eclesial. Com o batismo, dizemos que por Cristo, com Cristo e em Cristo fomos mortos/as e sepultados/as para os esquemas e interesses do mundo. Mortos/as para a lei de levar vantagem em tudo e livres para começar uma vida nova, no caminho aberto por Jesus Cristo. Morreu o velho homem, nasceu uma nova criatura.
Já vivemos e sofremos o bastante para para saber que esta passagem/páscoa não tem nada de mágico ou automático. Trata-se de um projeto de vida que, para ser realizado, exige disciplina e empenho sem descanso. Porque não se trata apenas de lutar contra inimigos externos, mas de vigiar sobre nós mesmos/as e sobre a permanente tentação de ser sempre o primeiro, o superior, o mais digno, o merecedor, contra a idéia de que “a saúde é que interessa e o resto não tem pressa”.
“Quem vai remover para nós a pedra?...”
Mas esta não é uma luta inglória. Jesus de Nazaré, nosso irmão maior, já venceu a batalha, removeu muitas pedras, derramou sobre nós seu Espírito e nos tornou capazes de vencer com ele. E temos também o testemunho e o apoio de nossa comunidade de fé e de uma nuvem de testemunhas que nos precedeu ou caminha conosco. Entre estas testemunhas está o pastor e teólogo luterano Dietrich Bonhoefer que, preso no campo de concentração e sabendo dos elogios que recebia por sua coragem, nos ajuda a fazer desta vigília uma profunda auto-crítica.
“Sou realmente tudo aquilo que os outros me dizem? Ou sou apenas aquilo que sei acerca de mim mesmo? Inquieto e saudoso e doente, como ave na gaiola, lutando pelo fôlego, como se houvesse mãos apertando minha garganta, ansiando por cores, por flores, pelas vozes das aves, sedento por palavras de bondade, de boa vizinhança, conturbado na expectativa de grandes eventos,tremendo, impotente, por amigos a uma distância infinita, cansado e vazio ao orar, ao pensar, ao agir, desmaiando, e pronto para dizer adeus a tudo isto?”
“A pedra rejeitada tornou-se pedra prinicpal.”
Os primeiros cristãos resgataram uma imagem preciosa para falar da ressurreição de Jesus: Ele é como uma pedra que os construtores descartaram e jogaram no lixo e que Deus transformou em pedra de ângulo, pedra que sustenta todo o teto em forma de abóbada. Por isso, a páscoa pede que abramos os olhos e as portas às pessoas e grupos sociais que são descartados como desnecessários ou eliminados como incômodos. Se não os tivermos no coração das nossas preocupações e projetos eclesiais, nossa fé é casa construída sobre a areia e nossa utopia se deteriora em simples ideologia.
Senhoras da madrugada, mulheres-coragem, Maria Madalena, Maria Mãe de Tiago e Salomé: humildemente pedimos ajuda para caminhar na noite que nos envolve, para ver com nossos próprios olhos que as portas das prisões foram abertas para sempre e que o mestre de vocês e nosso nos precede na periferia e no deserto. Segurem firmemente nossas mãos cansadas e ajudem-nos nestes passos cambaleantes, inseguros e medrosos. Emprestem-nos um pouco do perfume que vocês souberam conservar, a fim de não chegarmos de mãos vazias ao encontro com aquele que vive para sempre. Sabendo hoje mais do que vocês souberam naquela noite que se fazia dia, não calaremos: anunciaremos a todos os povos e de todos os modos que a carne amada e amante de Jesus se encheu de vida e, desde então, vivifica todos os sonhos e esperanças que abitam a humanidade. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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