José de Nazaré, um operário
A festa de são José Operário
fui instituída pelo Papa Pio XII, em 1955, com a intenção de reafirmar a
dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras e, ao mesmo tempo, dar uma marca
católica à celebração civil e classista do dia 1° de maio. O próprio Pio XII
havia dito, por ocasião do Natal de 1942: “Todo trabalho possui uma dignidade
inalienável e, ao mesmo tempo, uma íntima ligação com a pessoa em seu
aperfeiçoamento: nobre dignidade e prerrogativa que não são de modo algum
aviltadas pela fadiga e pelo peso que devem ser suportados como efeito do
pecado original em obediência e submissão à vontade de Deus.”
Antes dele, Leão XIII havia
escrito “Os porletários e operários têm como direito especial o de recorrer a
são José e de procurar imitá-lo. José, de fato de família real, unido em
matrimônio com a mais santa e a maior entre todos as mulheres, considerado como
o pai do Filho de Deus, não obstante tudo passou a vida toda a trabalhar e
tirar do seu trabalho de artesão tudo o que era necessário ao sustento da
família.” E introduzindo o nome de São José no cânon da missa, o Papa João
XXIII quis homenageá-lo como exemplo de vida cristã, homem trabalhador e
honesto, fiel e obediente à palavra de Deus.
O pai de Jesus era carpinteiro
Em geral essa afirmação não causa hoje nenhum
problema para os cristãos, se bem que muitos parecem lamentar secretamente que
Jesus não tenha sido descendente da família nobre ou da dinastia sacerdotal...
Mas no contexto das primeiras comunidades cristãs, especialmente no ambiente do
judaísmo e do império romano, a origem social de Jesus atraía suspeita e
desprezo sobre seu ensino e suas ações.
Ouvindo o ensino de Jesus na sinagoga, seus
conterrâneos se perguntavam perplexos: “De onde vem essa sabedoria e esses
milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro?” Nomeando de cor os membros
de sua humilde família, não conseguiam entender e ficaram escandalizados (cf.
Mt 13,53-58). A condição de vida de José e a profissão que exercia eram causa
de menosprezo e dificultavam a aceitação da mensagem de Jesus por parte do seu
próprio povo.
Mas este é um dado que não podemos esquecer ou
diminuir: José é um homem que viveu do próprio trabalho. No século XIX, o Pe.
Berthier, fundador dos Missionários da
Sagrada Família, escrevia: “José era um pobre artesão: ele não recebeu outra
herança senão as mãos, outro capital senão a carpintaria, outros recursos senão
o próprio trabalho” (Le prêtre II, p.
802). E esse trabalho foi o caminho que o levou à integridade nas suas relações
com Maria, com Jesus, com seu povo e com Deus.
Um trabalhador pode alcançar a sabedoria?
A expressão grega tektôn, que normalmente é traduzida por
carpinteiro, expressa também o ofício do pedreiro e do ferreiro. De qualquer
maneira, sempre trabalhos artesanais. Assim, podemos supor com bastante
fundamento histórico e literário que José e Jesus foram artesãos experimentados
no ofício da carpintaria e muito conhecidos nas vilas da região.
Podemos presumir também que, seguindo
o costume segundo o qual o pai devia ensinar sua profissão aos filhos, José
ensinou Jesus a distinguir os diversos tipos de madeira e suas qualidades
específicas: plátano, terebinto, cipreste, sicômoro, acácia, oliveira, zimbro,
pinheiro, etc. Ensinou-o também a usar adequadamente as ferramentas de
trabalho: machado, martelo, serra, plaina, cinzel, etc. E observando o jeito de
José trabalhar, Jesus aprendeu o valor de um trabalho bem feito.
O livro do Eclesiástico
registra reserva e até um certo menosprezo pelos trabalhadores manuais. “Aquele
que está livre de atividades torna-se sábio. Como poderá tornar-se sábio aquele
que maneja o arado e cuja glória consiste em manejar o ferrão? Como pode
tornar-se sábio aquele que guia bois, não abandona o trabalho e só sabe falar
de crias de vacas?... O mesmo acontece com todo carpinteiro e construtor, e com
qualquer pessoa que trabalha dia e noite...” (Eclo 38,24-27).
Com base nisso, podemos
concluir que, como os demais trabalhadores manuais, José e Jesus “não são
requisitados no conselho do povo, não têm lugar especial na assembléia, não se
assentam na cadeira do juiz, nem conhecem as disposições legais. Eles não
brilham pela cultura nem pelo julgamento, e não entendem de provérbios.
Entretanto, são eles que sustentam as necessidades básicas, e a oração deles
consiste em realizar o próprio trabalho” (Eclo 38,34).
A dignidade dos trabalhadores
A festa de São José Operário
tem como objetivo celebrar o valor do trabalho humano e proclamar a dignidade
dos trabalhadores e trabalhadoras. São José nos ajuda a voltar o olhar àqueles/as
que hoje necessitam do próprio trabalho para sobreviver e, ao mesmo tempo,
realizam através dele sua vocação de construir o bem comum.
Nossa fé sublinha que Deus
assumiu a condição humana, inclusive a de trabalhador. “Pela sua encarnação, o Filho de Deus, de certo modo, uniu-se a todos os
seres humanos. Trabalhou com mãos humanas,
pensou e agiu como qualquer ser humano, amando
com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, foi realmente um dos nossos em
tudo, exceto no pecado” (Gaudium et Spes
22).
O mesmo documento conciliar
recomenda engajamento e alegria aos
cristãos que “seguindo o exemplo de
Cristo, que trabalhou como operário,
exercem todas as suas atividades unificando os esforços humanos, domésticos,
profissionais, científicos e técnicos numa síntese vital com os bens
religiosos, sob cuja direção tudo se orienta para a glória de Deus” (Gaudium et Spes 43). Assumindo trabalhos
manuais humildes em Nazaré, Jesus conferiu uma dignidade especial ao
trabalho e aos trabalhadores/as (cf. Gaudium
et Spes 67).
Mudar os sistemas iníquos
Em tempos de crise estrutural como esta que estamos
atravessando, as saídas apresentadas como mais razoáveis e urgentes normalmente
trazem prejuízos aos trabalhadores/as. Fala-se sempre em flexibilizar os
direitos trabalhistas, mas pouco se fala em flexibilizar os índices de lucro
dos empresários e banqueiros. A Igreja afirma sem rodeios que “é iníquo e
desumano” organizar a produção “em detrimento dos trabalhadores”. “Nenhuma lei econômica o justifica” e, nesses
casos, “a greve deve ser reconhecida como um direito de defesa dos
trabalhadores” (Gaudium et Spes 68).
Muitos cristãos ainda preferem
imaginar São José trazendo nas mãos lírio da pureza e não as ferramentas de
trabalho. E gostam de contemplar Jesus ostentando na cabeça uma coroa real e portando
nas mãos o pergaminho ou o cajado, a patena e o cálice, mas jamais uma foice ou
uma enxada! E o mundo viria abaixo se alguém ousasse representar José e Jesus
numa manifestação pela redução da jornada de trabalho, contra a flexibilização
das leis trabalhistas ou por uma nova ordem internacional...
Que o trabalho não seja em vão
Paulo Coelho confessou que
gosta de imaginar Jesus celebrando sua última ceia numa mesa fabricada na
marcenaria de José. Mesmo que isso não seja historicamente provável, é
importante sublinhar os laços que unem José e Jesus, sejam eles de trabalho ou
de missão. Jesus será sempre o filho e o herdeiro do carpinteiro de Nazaré, e
dele aprendeu a relevância da utopia religiosa, o valor do trabalho e a
dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras.
De minha parte, concedo-me o
direito de imaginar José e Jesus envolvidos no trabalho em mutirão para
construção de casas no povoado de Nazaré. À noite, em casa, depois da modesta
janta, vejo José puxando de memória o Salmo 127: “Se Javé não constrói a casa,
em vão labutam os construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os
guardas. É inútil que vocês madruguem e se atrasem para deitar, para comer o pão
com duros trabalhos: aos seus amigos ele o dá enquanto dormem.”
Interrompendo a prece, fixa demoradamente o olhar terno no rosto de
Jesus, e depois continua: “A herança que Javé concede são os filhos, seu
salário é o fruto do ventre: os filhos da juventude são flechas na mão do
guerreiro.” E Maria, envolvendo José com um abraço carinhoso, completa: “Feliz
o homem que enche sua aljava com elas; não será derrotado na porta da cidade
quando litigar com seus inimigos.” Ela sabia que seu marido não brilhava pela
cultura e não entendia de provérbios, mas das mãos dele vinha boa parte do
sustento da família, e seu trabalho subia ao céu como oração.
Pe.
Itacir Brassiani msf
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