Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado.
(Ex 12,1-8.11-14; Sl 115/116; 1Cor 11,23-26; Jo 13,1-15)
Hoje nos reunimos para celebrar a Aliança nova, terna e eterna fe Deus conosco, seu povo amado, filhas e filhos queridos, família na qual seu Filho se faz irmão. A mesa está pronta, a toalha está linda, há flores coloridas e o alimento é saboroso. E há lugar para todos, inclusive para pecadores como nós. O próprio Jesus de Nazaré nos diz que preparou e desejou ardentemente celebrar este momento conosco (cf. Lc 22,15). E aqui acorremos porque intuímos que não temos outra honra ou outra glória que esta de trazer em nossos sonhos, projetos, ações e relacionamentos as marcas da cruz de Cristo, do seu amor sem fronteiras. Aqui estamos para ouvir de novo as palavras do testamento do nosso irmão e filho de Deus, para provar mais uma vez como ele nos ama até o fim. Conosco, vivo mais que nunca, está nosso ecumênico irmão Martin Luther King, mártir da luta contra a discriminação dos negros, cuja memória celebramos antes de ontem (+04.04.1968).
“Este dia será para vós uma festa memorável...”
Na mesa que reúne as pessoas que desejam ardentemente viver uma fraternidade sem fronteiras, fazemos memória, recordamos. Com o povo de Israel e todos os povos, trazemos de novo ao coração as inúmeras travessias já realizadas ou ainda em processo: travessias com avanços e retrocessos, quedas e recomeços, sonhos e traições; travessias marcadas por uma Presença que se mostra, ao mesmo tempo, nuvem luminosa e sombra tenebrosa.
Esta celebração é também um memorial dos êxodos e travessias que somos convidados/as a empreender como indivíduos: travessias de um eu fechado em si mesmo para uma comunidade aberta e solidária; de uma mesa grande e vazia para uma mesa farta e partilhada; de projetos estreitos e ancorados no sucesso pessoal para utopias coletivas; de lutas empreendidas contando apenas conosco mesmos/as para alianças muito mais que estratégicas.
A ceia eucarística é a memória de Jesus e dos discípulos/as que, tendo atrás as memoráveis experiências das refeições partilhadas com toda sorte de pecadores/as e à frente a ameaça dos poderes que não toleram mudanças, compartilham suor e sangue, vinho e pão. Memória de incompreensões, medos, distanciamentos e traições. Memória daquele que tendo nos amado, ama-nos até o fim e se oferece como perene alimento para a caminhada.
“Isto é o meu corpo entregue por vós.”
A eucaristia é o alimento de quem está na estrada. Celebramos esta ceia e aceitamos a aliança que Deus nos oferece ainda “na terra do Egito”. Faz escuro, mas cantamos para despertar a aurora que não demora. Celebramos esta refeição de comunhão prontos para a travessia que urge: com cintos que diminuem os embaraços; com sandálias que agilizam os passos; com cajados que nos sustentam nos vales escuros. “Quem comeu de pé a páscoa não tem lucros, nem tem medo”, profetiza o velho Pedro, o Casaldáliga.
No centro não está um cordeiro, mas um corpo feito inteiramente dom. Corpo não é apenas uma carcaça, a metade exterior e mais desprezível da pessoa: é a totalidade concreta, é diferença e relação. Jesus Cristo oferece a totalidade concreta da sua vida como dom e partilha. É sua vida inteira – sonhos, ações, corpo e sangue – que ele nos dá sem reservas e sem impor condições. E o faz numa ceia ordinária, numa refeição marcada pelo afeto fraterno, num contexto de ameaça de morte, pedindo insistentemente que façamos o mesmo para manter viva sua memória. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...”
A eucaristia faz da Igreja uma comunidade aberta em dom àqueles/as que estão fora ou estão “longe”. Seu corpo é a comunidade dos fiéis, o povo de Deus que ultrapassa as fronteiras eclesiásticas, o corpo dos pobres e marginalizados que ostentam suas chagas vivas. O corpo-Igreja é dado por nós, para que sejamos homens e mulheres emancipados/as, maiores, maduros/as como Cristo. E isso significa assumir a mesma atitude fundamental de amor e serviço vivida por Jesus Cristo. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...”
“Senhor, tu vais lavar-me os pés?”
Jesus explicita sua oferta sem reservas no gesto de lavar os pés dos discípulos. Ele havia dito e repetido que viera para servir e não para ser servido, como Servo e não como Senhor. Demonstrara isso numa dedicação sem cansaço aos últimos. Depois de repartir pão e vinho, Jesus deixa a mesa e assume o serviço próprio de mulheres e crianças, lavando os pés dos que estavam à mesa. É o próprio Deus que se inclina diante da humanidade e, de joelhos, lava nossos pés. E não o faz para demonstrar humildade, mas para desfazer as hierarquias e afirmar a absoluta igualdade de todos/as. Deus não se identifica com o soberano mas com o servo.
Entre os convivas estão Pedro e Judas. Pedro reage diante da lição de Jesus. Não lhe parece bem mudar as coisas assim tão radicalmente: para ele, senhores e superiores devem ser honrados; servos e inferiores devem ser desfrutados; esta é a ordem e nada deve ser mudado. Parece-lhe difícil aceitar que esta não é a ordem querida por Deus, que participar da eucaristia implica em fazer-se memória viva da vida de Jesus Servo... Como custa à Igreja e a cada um/a de nós assimilar esta lição... “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...”
O evangelista não diz quem foi o primeiro e quem foi o último, e Jesus s lava os pés também de Judas. Nossa cultura ensina a “malhar o Judas”, mas Jesus nos pede para acolher também aqueles/as nos quais se condensa o mistério da iniquidade. Não se trata de absolver os algozes e ignorar seus crimes, mas de ser capaz de ver mesmo nos errantes uma pessoa humana. E mais: precisamos acolher a possibilidade de traição que está em de nós mesmos/as.
“Elevarei o cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor.”
A lição é difícil e nada óbvia. É por isso que, depois de cear e de lavar os pés dos discípulos, Jesus nos interroga: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” E para não deixar dúvidas, explica: “Eu lhes dei um exemplo... E vocês serão felizes se o puserem em prática...” Deus coloca tudo em suas mãos, e este tudo se mostra nas mãos que lavam os pés, nas mãos que seriam pregadas na cruz, no serviço cordial e fraterno, na recusa das hierarquizações.
O mandamento final é que passemos da memória verbal e ritual à realização histórica e vivencial: “fazei isso...”; “se puserem em prática...” A eucaristia é memorial da solidariedade de Jesus realizada efetivamente nos caminhos da Galiléia e no martírio da cruz. Sem isso a santa ceia seria um rito vazio. Precisamos dar conteúdo e concretude à eucaristia no dom cotidiano pelos outros, no serviço despojado a todos/as, mesmo àqueles/as que aparentemente não o merecem, mas carecem. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...”
Jesus de Nazaré nos convida à ceia e nos acolhe à sua mesa. Participemos dignamente desta ceia-aliança para alcançarmos um amor maduro e concreto. Sentados/as, como pessoas reconhecidas em nossa dignidade, ou em pé, como militantes prontos/as para a luta, descubramos que a vida de cada pessoa é preciosa aos olhos de Deus. Por isso, seguros/as do seu amor, tomemos o avental ecoloquemo-nos reciprocamente a serviço. Assim, mediante a dedicação à saúde/salvação dos outros, alcançaremos a vida plena que tanto desejamos.
“Cumprirei meus votos ao Senhor, diante de todo o seu povo.”
Jesus, Filho de Deus e da Humanidade, peregrino nas estradas de um mundo desigual, arauto de um tempo novo e promissor, mestre iluminado e irmão universal: ajuda-nos a não deixar no interior do templo o avental que nos dás como hábito e identidade. Abre nossa mente e nossas mãos para que o dom e o serviço aos irmãos e irmãs não se detenha no interior do templo, mas se realize nas estradas e esquinas do mundo, onde a necessidade é maior. Faz que ultrapassemos os ritos e transformemos teu gesto em ética e prática cotidiana. Guia e sustenta a comunidade que quer viver em teu nome no caminho do esvaziamento que nos faz livres e capazes de servir, sem outra parcialidade que a preferência pelos últimos. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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