Quero partilhar com os leitores/as este belo testemunho missionario de Dom Erwin Kreutler, Bispo do Xingu e irmao entre os irmos. Apesar de longo, vale a pena ler e perceber, nas linhas e entre-linhas, um homem de Deus, pastor sensivel à alma do povo e profeta corajoso na defesa dos mais fracos.
O povo "à jusante" de Belo Monte
Há doze
dias vivo a bordo do barco "Teresinha". Estou visitando as
comunidades do interior de Porto de Moz. Não há telefone e muito menos existe
acesso à Internet. Faz um bem enorme ficar de vez em quando sem essas
comodidades. Tem-se a impressão de estar em outro planeta. Mas as pessoas
queridas que encontro ao longo da viagem e que há décadas conheço e amo são a
prova de que continuo no mesmo planeta Terra e na "minha terra" que é
o Xingu. A primeira vez que singrei as águas dos rios, furos e lagos de Porto
de Moz foi em janeiro de 1968. Lembro os antepassados do povo que agora me
abraça. Revejo em muitos rostos os traços de seus avós. Antigamente as famílias
vieram a remo. Hoje um motor "rabeta" diminui mais o tempo da viagem.
Mesmo assim têm que enfrentar, às vezes por horas, um sol escaldante ou chuvas
torrenciais.
O
encontro com o bispo segue sempre o mesmo esquema. Começa com abraços, cantos,
poesias, salva de palmas. Um ambiente festivo e descontraído, sem formalidades,
etiquetas e protocolos. Sinto-me em casa. "Vós todos sois irmãos" (Mt
23,8). Também o bispo é irmão! É nestas ocasiões que mais me realizo como
pastor, no meio dessa gente que amo e que - eu sei disso - também me ama. Todo
mundo se conhece. Essa é uma das mais belas características das Comunidades
Eclesiais de Base. Não há estranhos.
Faço
questão de primeiro ouvir o povo, escutar a sua história, ser informado a
respeito de suas esperanças e angústias, avanços e derrotas. São coisas alegres,
estórias pitorescas, "causos" que partilham comigo, mas também
assuntos tristes, experiências dolorosas. Sempre me admiro que esse povo,
apesar de viver uma vida dura e penosa, nunca perdeu a alegria. Sabe sorrir!
Aliás, que sorriso límpido, espontâneo, cativante! Nada postiço, só para
agradar o bispo.
Falam do
salão comunitário que conseguiram construir, da capela que pintaram, das
reuniões semanais, do culto dominical e da novena que não deixaram de celebrar.
Revelam também problemas familiares. Alguém denuncia a invasão de geleiras para
roubar o peixe, até na época da piracema. "Vem com malhadeiras de malha
tão fina que nem alma passa". Outro relata com orgulho experiências que
fazem com as Reservas Extrativistas comunitárias, mas reclama do IBAMA que cai
em cima deles por causa de uma tartaruga que pegam, enquanto faz vistas grossas
diante das geleiras, do escandaloso roubo de madeira, de desmatamentos e outras
agressões ao meio-ambiente, como por exemplo Belo Monte. "Aí dá até todas
as licenças para acabar com o nosso Xingu".
Passo, em
seguida, do papel de ouvinte para entrevistado. Jovens e adultos me bombardeiam
com perguntas de todo tipo. Assuntos internos da comunidade, do setor, da
paróquia, mas também da "conjuntura" econômica e política. Em todas
as comunidades, a pergunta principal é sobre Belo Monte. Querem saber detalhes,
já que o bispo vem de Altamira, do centro do monstruoso projeto.
"Bispo,
será que ainda tem jeito de impedir essa desgraça? Ouvimos falar que estão
tocando Belo Monte a todo vapor. Dizem que o governo já gastou muito dinheiro e
assim certamente não dá mais para parar a obra. Que o Sr. acha?"
O que
realmente devo responder a esse povo? Decido "abrir o verbo", sem
meias-palavras:
"Verdade
é que um rolo compressor está passando por cima de todos nós. A promessa que
Lula pessoalmente me deu no dia 22 de julho de 2009, segurando-me no braço e
afirmando "Não vou empurrar este projeto goela abaixo de quem quer que
seja" foi pura mentira. Falou assim para "acalmar" o bispo e livrar-se
deste incômodo religioso que recebeu em audiência. O governo empurra sim Belo
Monte goela abaixo! E Altamira virou um caos em todos os sentidos. Nada do
prometido saneamento básico, uma das condicionantes do IBAMA para dar licença
para iniciar a obra! Não tem leito nos hospitais, não há vaga nas escolas,
homicídios na ordem do dia, prostituição a céu aberto no centro da cidade. Os
aluguéis de uma casa simples pularam de 300 para 2.000 Reais. Os preços de
alimentos triplicaram. O transito é uma calamidade. Acidentes a toda
hora".
"O
que mais vou dizer a vocês? Fui várias vezes "ver" o canteiro de
obras, quer dizer, queria ver, porque não me deixaram entrar, mas vi de longe
os estragos já irrecuperáveis. Rezei missa com as comunidades ameaçadas de despejo.
Os grandes fazendeiros receberam indenizações, mas o coitado do pequeno
produtor e agricultor não sabe o que vai ser dele e de sua família. Arrasaram
com uma vila inteira: Santo Antônio. O pessoal da Norte Energia é para lá de
arrogante. Se o colono não desocupa o seu sitio, a Justiça dá ordem de despejo
e manda a polícia em cima do pobre, pois a Norte Energia considera toda a
região propriedade sua e os moradores, que lá vivem desde os tempos do bisavô,
invasores."
"E
para onde vai toda essa gente?"
"Pois
também eu quero saber. Prometem solução, mas nunca dizem que tipo de solução,
onde, quando, de que jeito."
"E o
povo de Altamira?"
"Muita
gente está com o coração despedaçado. Até comerciantes e empresários que antes
colaram em seus carros adesivos "Queremos Belo Monte" andam hoje
cabisbaixos. Quem pode contra a fúria da "Norte Energia"? Aliás
"Norte Energia" é o próprio Governo, antes Lula, agora Dilma. Nunca
houve diálogo com o povo daqui, nem com índios, nem com ribeirinhos, nem com o
povo da cidade. O governo traiu o povo que o elegeu e ri-se de quem defende os
índios, os ribeirinhos, os pobres atingidos pela barragem. Fala de preço a ser
pago pelo progresso. Só que esse preço sacrifica o nosso povo e não as famílias
de políticos em Brasília. Um terço de Altamira vai para o fundo e o resto vai
ficar à margem de um lago podre, criador de carapanã e causador de dengue e
malária".
"E
os índios? É verdade que estão a favor da barragem?"
"Não
digo que estão a favor da barragem, estão a favor dos presentes que recebem.
Muitos deles que antes viviam abandonados pelo governo e entregues à própria
sorte, hoje têm todas as contas pagas no comércio, recebem cestas básicas e
combustível e outros benefícios. O governo que negou aos índios se manifestarem
em oitivas previstas em lei, agora se esmera em entupi-los de dinheiro para
fechar-lhes a boca. Antigamente enganou-se os índios com espelhos e bugigangas,
hoje milhões de reais são injetados nas aldeias para paralisar a luta indígena
e cooptar as lideranças. O preço é muito alto. Não se mata mais índio a ferro e
fogo. O dinheiro farto é a punhalada traiçoeira no coração das culturas
indígenas e de sua organização comunitária. E o governo afirma em alto e bom
som que nenhuma aldeia será alagada. Aldeia não será alagada, sim! O que a
Norte Energia faz, é cortar a água aos índios e ribeirinhos da Grande Volta do
Xingu. E o povo da Volta Grande vive e sobrevive da pesca. E tem mais. O que
vai acontecer com uma aldeia a poucos quilômetros do canteiro de obras onde trabalham
milhares de homens? É muito triste! Dá dó!"
"E
nós? Como é que nós vamos ficar, nós que moramos abaixo da futura barragem? Ou,
como essa gente de Brasília fala, 'à jusante'?"
"Bem,
vocês sabem o que acontece se fazem uma tapagem no igarapé. Acima da tapagem, o
que acontece?"
"O
igarapé alaga a terra firme!"
"E
abaixo da tapagem?"
"Ora,
o igarapé seca!"
"Pois
é. O Xingu abaixo da barragem vai baixar de nível e os igarapés e afluentes
também. Há trechos em que o Amazonas vai entrar no leito do Xingu e nossos
peixes que não se dão com a água barrenta do Amazonas vão morrer."
Por um
bom tempo o povo ficou apenas me olhando e não me fez mais nenhuma pergunta.
Também a conversa já passou da hora. Já é hora de almoço.
A
celebração eucarística está programada para as 14 horas. A liturgia está
preparada, os cantos escolhidos e as leituras ensaiadas. "Vai ter
crisma" avisa-me uma catequista "e a turma precisa ainda se confessar
com o bispo". Nada de vexame! Aqui ninguém é escravo do relógio. Terminada
a confissão, outra catequista me informa: "As meninas precisam ainda se
empiriquitar". Já são lindas por natureza, de traços indígenas ou
ascendência negra, mas querem realçar ainda mais sua beleza. Há também senhoras
entre as crismandas, com crianças pequenas. Uma me pergunta se pode, mesmo
gestante, crismar-se. "Sem dúvida, querida! O Espírito Santo descerá sobre
você e a criança debaixo de seu coração!" Apresento os crismandos a toda a
comunidade chamando cada um(a) por seu nome: "Senhor, aqui estou!" é
a resposta às vezes bem forte, outras vezes um pouco tímida, acanhada. Depois
de dois anos de preparação para o sacramento, sabem que a resposta que recorda
o que o Profeta Isaias falou quando Deus o chamou: "Eis-me aqui,
envia-me" (Is 6,8) significa o compromisso publicamente assumido com a
comunidade. No rito da imposição das mãos convido também catequistas e
dirigentes para realizar comigo este gesto que remonta ao tempo dos apóstolos
quando enviaram discípulos para anunciar e testemunhar o Evangelho (cf. At
13,1-4). Durante a unção com o santo crisma a madrinha ou o padrinho coloca
"a mão com que assina o nome" no ombro da afilhada ou do afilhado
selando com este gesto uma aliança: "Você pode contar comigo, não apenas
hoje, mas pelo resto da vida!". Estou convicto de que muitos padrinhos e
madrinhas realmente assumem um compromisso sério e não estão aí como
personagens mudas que entram em cena só para figurar. Dou-me conta disso
especialmente quando, depois da unção, a crismada ou o crismado pede a bênção de
sua madrinha, de seu padrinho. É um momento comovedor. Graças a Deus, o nosso
povo não tem vergonha de mostrar suas emoções.
O mais
lindo nestas viagens, além do encontro com esse povo bom e simples, é conviver
tão de perto com a criação de Deus. Doze dias se foram, desde que partimos de
Altamira. A última noite da viagem passamos ancorados na boca do Rio Maxipanã,
afluente do Xingu abaixo de Souzel. Chegamos ao entardecer. Cedo atei a minha
rede. Noite calma e tranquila, sem carapanã. Acostumei-me a acordar antes do
sol raiar e assim desfruto sempre do privilégio de ver o dia nascer.
Como é
sublime essa hora matutina. As estrelas deixam de cintilar. As trevas se
dissipam. O céu no oriente começa a alvorecer, mas a escuridão ainda predomina.
A rubra claridade da aurora enfrenta as trevas. De minuto em minuto a cor
purpúrea é mais suavizada com tonalidades acajus e alaranjadas.
O rio
ainda dorme. Exala uma bruma esbranquiçada que cobre, como se fosse um véu, a
várzea.
Na
terra-firme da outra margem guaribas já uivam seu louvor matinal ao Criador.
Cada bando tem o seu "capelão". É barbudo. Aqui o chamam de
"gorgo". Dizem que as fêmeas permanecem em piedoso silêncio enquanto
os gorgos bradam seu salmo milenar. De repente param, como se Deus tivesse lhes
passado uma ordem. Silêncio.
Agora se
ouve melhor o canto dos pássaros com suas melódicas modulações, umas mais
graves e fortes, outras mais contidas e suaves. Chilreiam suas cantigas, também
milenares. Um é apelidado de "peito de aço" porque seu assobio é tão
forte que assusta a quem estiver por perto. Ouve-se o arrulho esperançoso das
rolinhas. Pombinhas selvagens gorjeiam animadas sua saudação ao novo dia. Lá
longe uma voz solitária e monótona de uma ave que não sei identificar. Sua
cantiga parece com o cuco, aquele pássaro dos Alpes que canta só na primavera.
Falam mal dele. Dizem que bota seus ovos em ninho alheio para outra mãe chocar.
Não assume a responsabilidade por seus filhotes. Em vez de ficar preso ao
ninho, imóvel em cima de ovos, prefere curtir uma vida de vagabundo e voar
desimpedido para cantar aqui e acolá.
O sol já
alcançou altura, mas ainda é um disco pálido por trás da neblina. Cada vez mais
impõe o seu fulgor. Enquanto o primeiro raio não rasgar a cortina, pode-se
vê-lo a olho nu. A bruma rapidamente se desvanece e o rio, a selva e os campos
à sua margem, respiram o ar límpido de uma manhã ensolarada. O Maxipanã revela
agora sua cor clara, contrastando com o verde-esmeralda do Xingu e a floresta
ostenta sua fascinante exuberância nas múltiplas matizes de seu verdor.
Que
maravilha! "Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento proclama a
obra de suas mãos. O dia transmite a mensagem a outro dia, e a noite conta a
notícia a outra noite" (Sl 18,2-3).
Pena que
os homens não se deixam mais encantar pela obra de Deus. Vedaram seus olhos e
taparam o ouvido. Não enxergam mais as flores, nem ouvem mais o canto dos
passarinhos. O sol e lua não nascem, nem se deitam mais! É a rotação do planeta
Terra, pronto! Contemplar a natureza é perder tempo e dinheiro. Tudo é matéria
prima para fazer negócios. Tudo vira mercadoria a ser explorada, ser comprada e
vendida, exportada e consumida! Por isso os homens derrubam e queimam a
floresta, represam e sacrificam os rios, assassinam os animais da mata,
envenenam as plantas e os pássaros.
Os homens
perderam o coração. Tornaram-se insensíveis, brutos, cruéis. Decidiram matar a
vida.
Boca do Rio Maxipanã, São Pedro, março de 2012
Erwin Kräutler
Bispo do Xingu
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