Quem ama e crê, vê as coisas com o olhar de Deus.
(At 4,32-35; Sl 117/118; 1Jo 5,1-6; Jo 20,19-31)
A experiência e a fé na ressurreição de Jesus Cristo é gerada em ritmo de missão. As portas da Igreja não podem permanecer fechadas por medo ou por comodismo. A paz oferecida pelo Senhor ressuscitado que, sem perder as feridas abertas nas mãos e nos pés, se faz presente no meio de nós, nos envia como cordeiros que carregam o pecado do mundo. “Assim como o Pai me enviou, eu envio vocês.” Não podemos lamentar porque não nos foi dada a graça de tocar nas mãos feridas de Jesus Cristo ressuscitado. Não temos necessidade disso para reforçar os vínculos com a comunidade, reconhecer nos outros irmãs e irmãos nossos e partir em missão, pois fazemos parte do grupo daqueles/as que são felizes porque acreditam mesmo sem ter visto. A memória do coração missionário e do martírio das Ir. Adelaide Molinari FDC (+14.04.1985) não nos deixa esquecer esta verdade.
“No anoitecer do primeiro dia da semana...”
O registro de que era noite e as portas estavam muito bem fechadas sinaliza a insegurança e o medo que os discípulos, assim como o desânimo que se abatia sobre eles. É o mesmo escuro da frustração que haviam experimentado quando atravessaram sozinhos o mar agitado, depois que Jesus saciara a fome de uma multidão e recusara o poder político (cf. Jo 6,16-21). Era noite, e isso lembrava a escuridão que se fez às três horas da tarde, quando Jesus fora crucificado.
Ao medo provocado pela possível perseguição das autoridades judaicas se juntava a frustração diante de um Messias crucificado. Medo e desânimo levam frequentemente ao fechamento no pequeno mundo das coisas mais fáceis, na aparente fortaleza das leis da selva, no inexpugnável bunker da vida privada. A desculpa é que está escurecendo, mas na realidade é o fechamento que provoca a escuridão, e não o inverso.
“A paz esteja com vocês!”
É impressionante a novidade provocada pela experiência pascal dos discípulos e discípulas de Jesus. Doía-lhes na consciência a traição, a negação, a deserção e o abandono de Jesus no caminho da cruz. Eles não formavam uma comunidade, mas um grupo rachado, frustrado, envergonhado. Era um agrupamento de fragmentos que pouco tinham a ver uns com os outros.
Mas remorso e medo não são muros que impedem a manifestação de Jesus. Ele se fez presente inesperadamente no meio daquele grupo, e sua primeira palavra não foi de advertência ou acusação, mas de acolhida e pacificação: “A paz esteja com vocês!” E lhes mostrou as feridas nas mãos e no lado esquerdo, assegurarando que sua história concreta é importante, que sua presença não é mera fantasia e que seu amor fiel e solidário continua. É a mesma paz que ele desejara na despedida (cf. Jo 14,27).
A alegria tão característica da Páscoa não brota apenas da certeza de que ressuscitaremos um dia, mas também da experiência atual e cotidiana de não sermos condenados, de sermos aceitos como amigos e amigas de Jesus de Nazaré, apesar dos nossos insuperáveis limites, traições e deserções. E esta experiência é uma herança que não se corrompe com o passar do tempo, é uma esperança viva. O salmista declara: “Eu viverei para cantar as obras de Javé, porque seu amor é para sempre...”
“Assim como o Pai me enviou, eu envio também vocês...”
Mas a alegria e a paz radiante da Páscoa podem esconder um risco. Podemos ficar de tal maneira envolvidos pelas imagens dos anjos e pelas palavras de paz, pela visão de um Cristo exaltado e sentado à direita do Pai, pela possibilidade da nossa ressurreição depois da morte, a ponto de esquecermos que o mundo ainda não foi totalmente transfigurado e que nossa missão de discípulos/as apenas começa.
Por isso, depois de afirmar que vem trazer a paz, Jesus Cristo confere claramente uma missão aos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês”. Trata-se de continuar seu próprio trabalho de carregar nas costas a dor e o peso provocados pelo pecado do mundo. É como se ele nos confiasse a tarefa de lixeiros, de passar pelas estradas e campos recolhendo as imundícies produzidas pela cultura consumista. É a missão de ser o “Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo”.
E esta missão urge, não pode ser postergada para um hipotético amanhã, para quando tivermos tempo. E não pode também ser terceirizada ou deixada à responsabilidade dos outros. Jesus Cristo diz claramente que o pecado que não eliminarmos permanecerá aqui, diminuindo e ferindo a vida de muita gente e garantindo o privilégio de poucos. O Espírito Santo nos é dado, como o sopro que deu vida e iniciativa a Adão, para agir como Jesus, e agir hoje, já.
“Os pecados que vocês perdoarem serão perdoados...”
Não nos apressemos em localizar aqui a instituição do sacramento da penitência. Jesus foi mais que um confessor benevolente, sempre pronto a sentar ao confessionário. Ele foi um missionário apaixonado pela compaixão divina, engajado na grande tarefa de acabar com os males que agridem seus irmãos e irmãs, mesmo que para isso tenha tido que pagar um alto preço. Como ensina Dom Oscar Romero, pecado é aquilo que levou Jesus à morte e que hoje condena hoje à morte tantos filhos e filhas de Deus.
O pecado é a cumplicidade com a injustiça que fere as crituras, e perdoar significa dissolver os laços que vinculam as pessoas a essa cumplicidade, torná-las livres frente à necessidade de cada um cuidar de si e deixar a Deus o cuidado dos mais fracos. Assim, enviando a comunidade cristã com a missão tirar o pecado do mundo, Jesus pede que ela seja um espaço de amor mútuo, de luta pela justiça, de liberdade frente à tentação de sempre levar vantagem em tudo.
“A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma.”
Tendo recebido o Espírito Santo, aqueles discípulos desanimados e medrosos tiveram a coragem de inovar e forças para perseverar. Perseverar em que? No ensinamento dos apóstolos a respeito da vida e da ação de Jesus de Nazaré; na união fraterna, para além de todas as fronteiras; na partilha do pão e de todos os bens; na oração e na liturgia. É assim eles dão testemunho da ressurreição de Jesus Cristo.
Bem cedo os cristãos descobriram e ensinaram que abraçar a fé em Jesus Cristo ressuscitado leva ao vínculo com os irmãos e irmãs, à partilha dos bens “conforme a necessidade de cada um”, à alegria radiante frente a cada acontecimento, à simplicidade profunda e cordial no modo de viver, de crer e de lutar. E é preciso perseverar no caminho iniciado, ser a comunidade da nova aliança, comunidade de gente nova, povo-semente de uma nova nação.
João escreveu seu evangelho como memória de alguns aspectos da vida de Jesus Cristo para que acreditemos que ele é o Filho de Deus e tenhamos “a vida em seu nome”. Ou seja: para que vivamos em nome dele, a partir dele, do jeito dele, no espírito dele. Talvez seja este o sentido do desejo de Tomé: ver com os próprios olhos, tocar com as próprias mãos, fazer uma experiência viva do amor e da fidelidade que não se estancam nem com a morte.
“Felizes os que acreditam sem ter visto!”
Tomé, o apóstolo que se retirou à margem da comunidade e teve dificuldades de acreditar na boa notícia da ressurreição de Jesus, representa todos/as os/as cristãos que se afastam da comunidade, abandonam a luta, resistem à missão. São pessoas que põem as certezas à frente da generosidade, pessoas desanimadas que escolhem o caminho das saídas individuais. Pensam que as certezas conduzem à fé e desconhecem a felicidade de quem se joga na aventura de gerar um outro mundo.
Um dos grandes desafios que enfrentamos hoje é romper com o fechamento das pessoas e Igrejas em si mesmas. Precisamos ser pessoas que, estando a caminho e assumindo a missão, vão descobrindo e espalhando sinais de ressurreição. Urge criar comunidades cristãs abertas e em ritmo de missão; repletas do Espírito Santo e engajadas na tarefa de cortar o pecado pela raíz; perseverantes na partilha do pão, na oração e na boa notícia do Evangelho.
Aqui viemos, Jesus de Nazaré, Cordeiro de Deus, para encontrar aqueles/as que acreditam em ti, para tocar tuas chagas e acolher de novo teu mandato missionário. Dá-nos tua paz e sobre nós teu Espírito, a fim de que não cansemos de carregar o pecado do mundo e experimentemos a felicidade de crer para ver, de acreditar apoiados no testemunho de vida dos outros. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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