segunda-feira, 2 de abril de 2012

Sexta-feira Santa


Eram os nossos sofrimentos que ele carregava.
(Is 52,13-53,12; Sl 30/31; Hb 4,14-15; 5,7-9; Jo 18,1-19,42)

O comércio não sabe o que fazer com esta sexta-feira, e um clima estranho envolve pessoas e cidades. Até as pessoas mais indiferentes intuem que algo inexplicável aconteceu e acontece nesse dia. Tudo é diferente, inclusive a liturgia. Em nenhuma parte do mundo se celebra missa, e começamos o encontro ajoelhados ou prostrados, sem canto, sem sinal da cruz... Uma considerável multidão se reúne nos templos, talvez mais do que na festa da páscoa. É gente experimentada na dor, que intue que nesta sexta-feira se revela o que há de mais profundo no ser humano e de mais belo no coração de Deus. O mistério do mal atinge sua força mais terrível. A humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo. Parafraseando o poeta, podemos dizer: “No meio do nosso caminho há uma cruz...” E nela são revelados, contomitantemente, os mistérios de Deus e do ser huamano. “E chegando a minha páscoa, vos amei até o fim.”
“Eis o meu servo...”
Na vida de Jesus de Nazaré, o Messias e Filho de Deus, se revela de forma pessoal uma experiência universal. O profeta Isaías expressou com uma profundidade inigualável a opção e o destino daqueles/as que mantém a fidelidade em situações de risco e controvérsia; daqueles/as que procuram manter sua identidade de Servidores/as, apesar de tudo; daqueles que pagam real por real o preço dos sonhos e ideais que alimentam.
Jesus, assim como todos os Servos e apesar das pinturas e imagens que querem desmenti-lo, não tinha aparência e beleza que pudesse atrair os olhares. Era como uma raiz em terra seca, como um indivíduo dos qual escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana.” Como diz o salmista, provocava nojo aos vizinhos e terror aos amigos; foi esquecido como um morto ou como um objeto perdido. Não parecia humano e muito menos divino: fez orações e súplicas em alta voz e com lágrimas, e foi cortado da terra dos vivos.
Mas sua vida é semente. Nós é que estávamos enganados e perdidos. O Servo fiel não perde sua vida, pois a dá livremente e, por isso, prolonga sua existência. Ele carrega nas costas os pecados, doenças e sofrimentos de muitos, e por isso a luz brilha em seu rosto e a saúde se espalha sobre a terra. Ele confia seu destino nas mãos daquele que é o segredo da vida e assim vive naqueles/as que servem. Eis o rosto de Deus: é um rosto de Servo. Eis o ser humano realizado em seu máximo grau: chegou à maturidade e à estatura de irmão e irmã. Eis o caminho para chegar a Deus e à humanização.
“Não queriam ficar impuros”
Conhecemos as tramas, traições e intrigas que levaram à prisão, condenação e tortura de Jesus. São opções e atitudes que revelam o mistério da iniquidade e sua força nas pessoas e nas estruturas. Um mal nada abstrato, que se expressa nos costumes, nas leis, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornrarem inpuras...
As ditaduras de todos os quadrantes criam leis iníquas para se auto-purificarem... Aqueles/as que, consentindo ou não, fazem dos seus interesses um ídolo intocável, cedo ou tarde acabam identificando como diabólicas e ameaçadoras todas as pessoas, grupos ou movimentos que pensam diferente e propõem uma ordem alternativa. E criam estratégias para eliminá-los sem sujar as mãos, dentro dos quadros da lei, sem se tornarem impuros.
É este inexplicável mistério da iniquidade que faz com que seja noite às três horas da tarde. Uma iniquidade que começa não se sabe bem onde e se expressa na afirmação de si mesmo à custa dos outros, na busca sem fim de vantagens, no desprezo de quem é diferente, no fechamento a toda e qualquer mudança, na busca obsessiva de uma simples saúde física, enfim, na defesa da ordem desordenada que protege os vencedores e poderosos.
 “Eis o homem!”
Diante das autoridades, Jesus não parece disposto a debater suas razões ou defender-se. Tem cosciência de que nasceu e veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade, de que os poderes podem matar o corpo, mas não podem abortar ou adiar indefinidamente os sonhos. Pilatos manda torturá-lo, transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo: “Eis o homem!”
Esta é mais que a apresentação de um homem procurado pelas forças da ordem. Fixemos o olhar neste personagem que realiza em grau pleno a vocação de todo ser humano. Não, o ser humano não é chamado apenas a sofrer, padecer e morrer. Em Jesus descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em sua dignidade.
O ser humano maduro não é o amigo de César, que age sem autonomia, nem a autoridade religiosa, que ordena por medo, mas Aquele que transcende os interesses individuais e institucionais e abre-se ao horizonte da vontade de Deus e do seu Reino. Por isso, do alto da cruz, Jesus diz que no seu corpo dado inteiramente a criação chega ao seu ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e semente fecunda nas mãos de Deus.
“Quem é que vocês estão procurando?”
Esta pergunta de Jesus dirigida aos soldados que o procuravam retoma a pergunta feita aos primeiros discípulos: “O que é que vocês estão procurando?” (Jo 1,38). E aqui ela se dirige a todos/as os/as que nos reunimos para celebrar a paixão de Jesus Cristo e acolher sua cruz. O que nós esperamos de Jesus e o que buscamos nesta celebração? Consolação nos sofrimentos inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Paz, saúde  e segurança sem justiça? Perdão sem conversão?
Aqui só é licito buscar forças para caminhar na fé e perseverar no seguimento de Jesus, amigo e servidor da humanidade. Do alto da cruz ele se dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu filho!” E, dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Aos pés da cruz  nasce uma nova família, não mais presa aos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas aberta e servidora de todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por isso que nesta santa sexta-feira nossa oração se abre numa universalidade que não deveria estar ausente de nenhuma celebração: rezamos pela Igreja, pelo papa e todos os ministros, mas também pela união das diferentes Igrejas cristãs, pelos judeus e pelos não cristãos, pelos que não acreditam em nada, pelas autoridades e pela humanidade sofredora. Diante do crucificado, filho da humanidade e filho de Deus, aprendemos que os muros e fronteiras religiosas, políticas, econômicas e culturais não fazem o menor sentido e estão fadadas à ruína.
“Entrou no jardim com seus discípulos...”
Num jardim Jesus foi preso e num jardim ele foi sepultado. Estes dois jardins nos levam a um outro, aquele do Hédem. Esse Jesus que nos ama até o fim é o novo Adão, o humano que não caiu em tentação porque aceitou carregar o peso dos irmãos. A cruz, sendo expressão da fidelidade de Deus e da doação maior do ser humano, é a nova árvore da vida, alimento perene e incomparável. Maria é a nova Eva, a mãe dos viventes e sobreviventes. E o discípulo amado nos representa nesta nova família, à qual foi entregue a missão de renovar a criação.
Diante de ti, filho do carpinteiro José e da humilhada Maria, irmão da humanidade sofredora e sonhadora, prostramo-nos agradecidos e comprometidos. Nossas chagas e culpas pesam sobre teus ombros, mas o dom do teu amor sem fronteiras nos regenera. Tua mãe e teu amado amigo nos acolhem numa comunidade-semente de um mundo novo e água que brota do teu lado aberto nos livra de todos os medos. Beijamos enternecidos tuas chagas, mas precisamos que teu Espírito evite que este beijo seja de traição, como o de Judas. E assim seremos capazes de beijar, abraçar e acompanhar a imensa caravana dos sofredores e sofredoras que só pode esperar em ti. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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