Cidadão de bem ou cidadão de bens?
“Ao contrário do que se pensa, governos populistas não se
diferenciam dos demais por criticarem as elites, pois apontar falhas nas altas
esferas do poder é essencial à democracia. A característica dos populistas,
ensina Jean-Werner Muller, professor de Teoria Política de Princeton, está em
se apresentarem como únicos representantes do que seria o cidadão de bem, o
verdadeiro cidadão. As demais lideranças nacionais passam a ser retratadas como
potencialmente corruptas, usurpadoras ilegítimas da confiança popular, e quem
as apoia não seria povo” (Cfr. HARAZIM, Dorrit, Jornal O Globo,
02/06/2019, pág. 3).
Vale acrescentar que no Brasil, histórica e estruturalmente,
o “cidadão de bem” é praticamente sinônimo de “cidadão de bens”. Basta uma
rápida consulta aos clássicos brasileiros – tais como Caio Prado Junior, Celso
Furtado, Gilberto Freire, Raymundo Faoro, Roberto da Mata, Florestan Fernandes,
Sérgio Buarque de Holanda, Roger Bastide – para dar-se conta que negros,
mestiços, mulatos, indígenas, caboclos e outros tantos sempre estiveram
excluídos da cidadania ou, no máximo, chegaram ao patamar de uma cidadania de
segunda classe. Mesmo após o processo de abolição da escravatura no Brasil, o
estigma de superexploração da mão-de-obra e da discriminação racial mantiveram
seu vigor negativo.
A própria trajetória da abolição, com seus entraves e
receios, revela a timidez e a tibieza da decisão. Primeiro veio a Lei Eusébio
de Queiroz, em 1850, que em princípio proibia o tráfico de escravos para o
Brasil. Na realidade, porém, demorou a produzir resultados esperados pelos abolicionistas.
Seguiu-se a Lei do Ventre Livre, assinada pela Princesa Isabel em setembro de 1871,
segundo a qual passavam a ser considerados livres todos os filhos de mulheres
escravas nascidos a partir da data de sua promulgação. Depois, em setembro de
1885, temos a Lei dos Sexagenários, de Saraiva-Cotegipe, que garantia a
liberdade aos escravos com 60 anos ou mais. Por fim, depois desse longo
percurso, foi sancionada em 13 de maio de 1888, também pela Princesa Isabel, a
Lei Áurea, que teoricamente extinguia a escravidão no Brasil. País que, vale
lembrar, foi o último a abolir o trabalho escravo.
A abolição, entretanto, teve suas contradições. Estudos
atestam que, a um certo ponto, a mão-de-obra assalariada tornou-se menos
dispendiosa do que prover às necessidades dos escravos como propriedade a ser
mantida rendosamente. Mais do que uma libertação real dos escravos, como
assinala José de Souza Martins, o que se viu foi a libertação dos senhores
quanto à responsabilidade de mantê-los. Enquanto o trabalhador era escravo, a
terra podia ser livre; com o processo de abolição, a terra tornou-se escrava.
Ganhou preço pela Lei de Terras de 1850, impedindo o acesso a ela por parte dos
libertos. (Cfr. MARTINS, J. Souza, O cativeiro da terra). Homens livres...
Não poucos acabaram tornando-se escravos da fome, da desocupação e da
dependência. Livres para mendigar ou para “mourejar feito doido”, como no caso
do personagem Nego Leléu, de João Ubaldo Ribeiro, na obra Viva o povo
brasileiro.
Desse processo resultou, historicamente, uma cidadania pífia
e enferma: sem terra, sem trabalho e sem teto. Despojando dos bens básicos,
como tornar-se um “cidadão de bem”? Enigma difícil de ser vivido na carne, mas
fácil de converter-se em acusação de vagabundagem. Os governos de extrema
direita, que se orientam pela onda do nacional populismo, quase na sua
totalidade, tentam minimizar as estatísticas sobre desemprego, subemprego ou
trabalho informal. Procuram desqualificar as pesquisas e estudos, além de exibir
um julgamento mal dissimulado sobre as vítimas, como pessoas inertes ou
passivas, para não dizer comunistas. Pouco ou nada lhes importa o percurso
histórico dessas massas deserdadas, rechaçadas para os porões ou as periferias
da sociedade. E se alguém usa da palavra em nome dessa multidão de “sem vez e
sem voz”, em lugar de opositor digno de um diálogo salutar, é logo visto com um
inimigo a ser combatido através de insultos e ofensas, revestidos de imprecações
chulas.
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
Rio de
Janeiro, 06 de junho de 2019
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