quarta-feira, 7 de junho de 2017

ANO A – SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE – 11.06.2017

A Trindade Santa é mistério de comunhão, amor e compaixão!
Quando dizemos que Deus é mistério estamos nos referindo a um Aonde e a um Alguém que faz com que nos sintamos em casa, estáveis e seguros; que nos supera, envolve e protege de um modo absolutamente gratuito e acolhedor; que nos arranca de nós mesmos e nos abre ao outro; que vence a nossa passividade e nos põe a caminho.  Se o qualificamos como mistério é porque, em sua profundidade, nos espanta e, ao mesmo tempo, nos seduz e nos leva além de nós mesmos e além do tempo presente. Bendito seja Deus Pai, Filho e Espírito Santo, porque é grande seu amor por nós!
Quando intuiu este mistério inominável e inapreensível, Moisés “curvou-se até o chão”, prostrado pelo espanto de um amor tão imerecido quanto desproporcional: descobriu que Aquele que dá sentido e substância ao nosso ser é “misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel”, lento e vazio de cólera e punição. Moisés imaginava encontrar Deus subindo a montanha e conservá-lo na lei escrita na pedra fria, mas eis que Ele se manifesta descendo e caminhando no meio do povo...
É insuficiente e falsa a imagem de um Deus pronto a punir o menor dos desvios de criaturas que ele mesmo chamou à vida. É uma parcialidade mal-intencionada ensinar que Deus “não deixa nada impune, castigando a culpa dos pais nos filhos e netos, até a terceira e quarta geração” e, ao mesmo tempo, omitir que “ele conserva a misericórdia por mil gerações, e perdoa as culpas, rebeldias e pecados”. O próprio e original na revelação cristã é o perdão e a compaixão, e não a punição.
Deus é Pai e Mãe, ou Vida e Amor que nos antecede, Deus antes de nós. Deus é Filho, ou vida e amor compartilhados, Deus conosco. Deus é Espírito, ou vida e amor em nós, ou Deus em nós e em todas as criaturas, ao ritmo da história. O amor se caracteriza por chamar à vida e dar proteção, e nunca por limitar ou diminuir a vida. “Pois Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu filho único, para que todo aquele que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna...”
É verdade que simplesmente dizer que Deus é Amor não resolve tudo. Esta palavra anda tão inflacionada quanto desgastada. Em nome do amor se cometem loucuras e são feitas promessas que não duram mais que uma curta noite de verão. Porém, amor é mais um verbo que um substantivo, e para falar responsavelmente dele devemos ter diante dos olhos o percurso histórico de Jesus de Nazaré: “sabemos o que é o amor, porque Jesus deu a sua vida por nós” (1Jo 3,16).
No coração da melhor teologia desenvolvida pelo cristianismo está a convicção de que Deus não é um conceito que precisamos compreender mais ou menos exaustivamente, nem uma doutrina que precisamos aceitas mais ou menos resignadamente, mas um mistério que merece nossa adoração. A teologia, pelo menos a boa teologia, está sempre a serviço da evangelização, ou seja: a questão substancial não é compreender uma teoria mas salvar ou transformar as pessoas e o mundo.
Em Jesus Cristo, Deus se revela não apenas dizendo e ensinando algo sobre si mesmo, mas principalmente agindo, salvando: acolhendo pecadores, alimentando famintos, curando doentes, resgatando a cidadania dos excluídos. Assim, Jesus Cristo revela um Deus que não é prisioneiro dos códigos de pedra ou de papel, que não assume a postura de um juiz distante e imparcial, mas um Deus que ama, que afirma o direito dos sem-direito, que age e julga em favor dos oprimidos.
Eis o caminho da Igreja, nascida para prosseguir a ação de Jesus Cristo: ser mais pastora que cuida da vida das ovelhas mais frágeis e menos professora que ensina leis e doutrinas; sair do limbo dos princípios gerais e vazios e comprometer sua honra influência na defesa de quem é ameaçado e explorado; engajar-se na urgente missão de salvar o mundo com a força do Evangelho e com os recursos do próprio mundo, evitando uma postura autossuficiente de julgamento e condenação. É preferível uma Igreja suja pela inserção no mundo que uma Igreja doente por causa do comodismo, diz o Papa.
Deus querido e amável, Compaixão que não conhece ocaso, Abraço que não conhece limites, Comunhão que acolhe as diferenças, Amor que brilha no esvaziamento: glória a ti nas alturas celestes; glória a ti nos caminhos da história; glória a ti na intimidade das criaturas. Em ti somos, nos movemos e existimos. Tu és o Ventre de onde viemos, o Caminho que percorremos e a Pátria pela qual anelamos. Ensina-nos a compartilhar a vida e o clamor dos irmãos e irmãs de todos os gêneros, gerações e religiões. E que a graça, o amor e a comunhão corram soltas nas veias da tua Igreja. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
 (Livro do Êxodo 34,4-9 * Profecia de Daniel 3,52-56 * Segunda Carta aos Coríntios 13,11-13 * Evangelho de São João 3,16-18)

sábado, 3 de junho de 2017

O Evangelho dominical - 04.06.2017

VIVER DEUS DESDE DENTRO

Há alguns anos, o grande teólogo alemão Karl Rahner atrevia-se a afirmar que o principal e mais urgente problema da Igreja do nosso tempo era a sua «mediocridade espiritual». Estas eram as suas palavras: o verdadeiro problema da Igreja é «continuar com uma resignação e um tédio cada vez maior pelos caminhos habituais de uma mediocridade espiritual».
O problema se agravou nestas últimas décadas. De pouco serviram as tentativas de reforçar as instituições, salvaguardar a liturgia ou vigiar a ortodoxia. No coração de muitos cristãos está se apagando a experiência interior de Deus.
A sociedade moderna apostou no «exterior». Tudo nos convida a viver desde fora. Tudo nos pressiona para nos movermos depressa, sem pararmos em nada nem em ninguém. A paz já não encontra resquícios para penetrar até ao nosso coração. Vivemos quase sempre na crosta exterior da vida. Estamos esquecendo o que é saborear a vida a partir de dentro. Para ser humana, a nossa vida falta-lhe hoje uma dimensão essencial: a interioridade.
É triste observar que tampouco nas comunidades cristãs sabemos cuidar e promover a vida interior. Muitos não sabem o que é o silêncio do coração, não se ensina a viver a fé desde dentro. Privados de experiência interior, sobrevivemos esquecendo a nossa alma: escutando palavras com os ouvidos e pronunciando orações com os lábios enquanto o nosso coração está ausente.
Na Igreja fala-se muito de Deus, mas, onde e quando escutamos, os crentes, a presença silenciosa de Deus no mais fundo do coração? Onde e quando acolhemos o Espírito do Ressuscitado no nosso interior? Quando vivemos em comunhão com o Mistério de Deus desde dentro?
Acolher a Deus no nosso interior quer dizer pelo menos duas coisas. A primeira: não colocar a Deus sempre longe e fora de nós, quer dizer, aprender a escutá-lo no silêncio do coração. A segunda: descer Deus da nossa cabeça até ao profundo do nosso ser, quer dizer, deixar de pensar em Deus só com a mente e aprender a percebe-Lo no mais íntimo de nós.
Esta experiência interior de Deus, real e concreta, pode transformar a nossa fé. Surpreendemo-nos de como temos podido viver sem a descobrir antes. É possível encontrar Deus dentro de nós no meio de uma cultura secularizada. É possível também hoje conhecer uma alegria interior nova e diferente. Mas parece-me muito difícil manter por muito tempo a fé em Deus no meio da agitação e frivolidade da vida moderna sem conhecer, mesmo que seja de forma humilde e simples, alguma experiência interior do Mistério de Deus.
José Antonio Pagola

Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 1 de junho de 2017

ANO A – SOLENIDADE DE PENTECOSTES – 04.06.2017

A diversidade é uma bênção que vem do Espírito Santo!
A experiência do Espírito Santo é coroamento do evento pascal. Reunidos em comunidade, pedimos que o Espírito renove em nós os prodígios que realizou no início do cristianismo. Nosso pedido mais intenso é que o Sopro de Deus nos dê respiro e vida; ensine-nos a testemunhar e anunciar o Reino de Deus na língua das diversas culturas; aumente nosso apreço pela diversidade; derrube os muros que nossos medos e prepotências ergueram; abra as portas das nossas igrejas e as empurre para a missão; enfim: convoque todos homens e mulheres de boa vontade para a imensa caravana que luta em favor da vida.
O Espírito Santo é dom, presença gratuita e força vital de Deus nas suas criaturas e nos caminhos da história. Ele suscita e sustenta a comunhão entre o Pai e o Filho; possibilita e mantém a comunhão dos cristãos entre si e com Cristo, sua cabeça; possibilita a comunhão entre as diferentes Igrejas; abre todas as criaturas para a interdependência e colaboração essencial e vital. E cumpre esta obra maravilhosa criando e sustentando a riqueza da diversidade. Um mundo uniforme seria feio, frio, falso, morto...
A diversidade de línguas e culturas também é dom do Espírito, bênção de Deus e uma forma de proteger a humanidade. Sendo uma e única, a humanidade vê, sente, pensa, age, trabalha, crê, celebra e se comunica mediante diferentes linguagens. A imposição de um pensamento único é meio caminho para construir impérios que asseguram a dominação dos mais fortes e espertos sobre os mais fracos. O próprio Deus dispersa os povos e arruína os projetos de implantar uma cultura uniforme e prepotente.
Mas será que podemos afirmar isso também em relação às religiões e Igrejas cristãs? Jesus é muito aberto em relação às diferenças religiosas: mesmo sendo judeu, ele respeita o movimento samaritano e demonstra apreço pela postura religiosa de pessoas pagãs. Chega a dizer que o que importa não é a religião, mas a prática e a lealdade (cf. Jo 4,23). E as primeiras comunidades cristãs seguem o mesmo rumo, louvando a Deus pela experiência e pelos valores espirituais de gente de diferentes religiões.
Na evangelização e na ação pastoral, o valor da diversidade se expressa na inculturação. Não deixa de impressionar como o relato dos Atos dos Apóstolos sublinha que cada um os diferentes grupos étnicos e culturais reunidos em Jerusalém na manhã do pentecostes escuta a pregação dos apóstolos na sua própria língua de origem (cf. At 2,6.8.11). É isso que causa, além de uma certa confusão nas mentalidades muito arrumadinhas, muito espanto e admiração. O que impressiona é propriamente a diversidade!
Outra importante expressão da presença ativa do Espírito Santo no mundo e nas pessoas são os vínculos de amor, amizade e solidariedade. Onde o Espírito é acolhido, as pessoas isoladas se reúnem, os membros formam um corpo. É uma comunhão que ultrapassa os indivíduos e se estende às coletividades humanas, às organizações sociais e a todas as criaturas. O Espírito impede que sejamos fragmentos desarticulados, perdidos no tempo e no espaço. Ele nos transforma em corpo e equipe!
Mas o Espírito Santo não se coaduna com o silêncio omisso, com o individualismo espiritual, com a submissão medrosa ou com a passividade irresponsável. Ele é a força de ação de Deus na história, a força da ação libertadora de Jesus Cristo. Ele nos é enviado como dinamismo missionário, como capacidade de gerar o homem novo e a nova sociedade: partilhar o pão, curar doenças, perdoar e acolher pecadores, anunciar o Evangelho, denunciar as opressões, partir em missão. O Espirito suscita a profecia!
Finalmente, segundo o Evangelho, os discípulos são enviados por Jesus com o “Sopro” do Espírito para, como ele, “tirar o pecado do mundo”: para superar e eliminar as práticas de dominação em si mesmos e nas instituições sociais, políticas e religiosas. E isso com sentido de urgência, sem deixar para depois, pois o pecado que for tolerado continuará produzindo seus frutos amargos. Nada de portas fechadas, nem de braços cruzados! A afirmação da diversidade vai de mãos dadas com a comunhão e a missão!
Deus, Pai justo e Mãe compassiva, fonte da diversidade, origem e meta da missão: como nossos pais e mães o fizeram no passado, esperamos e suplicamos pelo precioso dom do teu Espírito. Que ele venha como Vento que arrasta o pó acumulado pelas velhas leis, estruturas, ritos e posturas. Que ele venha como força de Comunhão respeitosa e benfazeja de povos, culturas, religiões, Igrejas e movimentos. Que ele nos chegue como Terremoto que acorda e desestabiliza uma Igreja que dorme e se sente segura.  Que ele nos visite como Fogo que incinera o lixo da corrupção e do moralismo interesseiro. Que ele venha com a suavidade da Brisa que celebra a diversidade e revigora quem quase perdeu a esperança. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 2,1-11 * Salmo 103 (104) * 1ª. Carta aos Coríntios 12,3-7.12-13 * Evangelho de S. João 20,19-23)

sábado, 27 de maio de 2017

ANO A – SOLENIDADE DA ASCENSÃO DE JESUS CRISTO – 28.05.2017

A ascensão é a elevação daquele que foi rebaixado
Ascensão geralmente lembra subida, elevação, distanciamento e superioridade. Mas é também uma metáfora que expressa a experiência de ser destacado, promovido e reconhecido. Parece ser este último o sentido original e mais profundo da boa notícia pregada pelos cristãos a respeito de Jesus de Nazaré: anunciar sua ascensão é uma outra forma de proclamar sua ressurreição, de afirmar que a pedra rejeitada pelos construtores tornou-se a pedra principal, de renovar a adesão a ele e o engajamento na missão que ele cumpriu e confiou em testamento as seus discípulos.
São Paulo experimenta pessoalmente como o Espírito Santo revela Deus em sua amável nudez e ajuda a conhecê-lo em profundidade. Conhecer Deus assim como ele se revelou em Jesus de Nazaré significa reconhecer e assimilar a esperança para a qual nos chamou e a herança gloriosa que nos deixou: ser seu corpo vivo na história, corpo abaixo do qual tudo o mais foi colocado, e acima do qual nada de significativo existe, fora o próprio mistério de Deus. E é isso que Paulo anuncia e deseja que também nós experimentemos: que o Espírito conduz ao conhecimento de Deus e à fidelidade ao seu amor.
O Jesus Cristo no qual cremos e em nome do qual vivemos não é um espírito que se compraz em esvoaçar acima do mundo. Ele compartilhou conosco a corporeidade e sentiu fome; experimentou conosco a busca e a sede; dividiu conosco a angústia e a ternura; provou o mel do amor e o fel da traição; abriu conosco e para nós um caminho de vida no frio corredor da morte; espalhou sementes de liberdade nas terras infectadas pela erva daninha da indiferença. É assim, nesta concretude humana e histórica, que ele nos revela o mistério mais profundo de Deus, diante do qual se dobram nossos joelhos.
Professando a ascensão de Jesus, a comunidade cristã quer ressaltar mais uma vez que aquele corpo humano e marcado pelo trabalho, aquele homem contestado e condenado é assumido e reconhecido pelo próprio Deus como a expressão plena e cabal de si mesmo. Mas a ascensão enfatiza também que a vida cristã é muito mais que espera passiva da plenitude celeste. Os discípulos de Jesus de Nazaré não podem se acomodar na simples contemplação de alguém que subiu ao céu, mesmo que este alguém seja o próprio Jesus Cristo. “Por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?”
A ascensão também não é algo que tem a ver apenas com Jesus de Nazaré. Ele é o primogênito de muitos irmãos e irmãs. Ele é a cabeça de um corpo composto de muitos e variados membros. À glorificação do primogênito segue a honra dos seus irmãos e irmãs, começando pelos considerados menores. À elevação da cabeça segue o reconhecimento da dignidade daqueles que realizam sua vontade. É famosa inversão enfatizada por Jesus na sua pregação: na lógica do Reino de Deus, os últimos passam a ser os primeiros. E isso não vale só para um futuro incerto: é fato e convicção já agora.
Então, a ascensão de Jesus Cristo não é unicamente o fim de sua presença física no meio de nós: é também o início de nossa missão em seu nome, no dinamismo do Espirito que ele nos envia. A liturgia da ascensão está inteiramente focada nesta responsabilidade intransferível e inadiável da comunidade cristã. Convictos de que o Crucificado foi exaltado, os cristãos vencem o medo e se tornam testemunhas de Jesus Cristo no coração do mundo e nos pulmões da história. E, nesta missão, se recusam a reconhecer fronteiras políticas e culturais, e não se intimidam diante da própria fraqueza.
Sendo uma forma de manter viva a memória de Jesus de Nazaré, este testemunho tem força de transformação. Amparados na certeza da glorificação de Jesus, ostentamos em nosso corpo as marcas da crucifixão de Jesus Cristo. Na qualidade de testemunhas, anunciamos Jesus Cristo, defendemos aqueles por quem ele deu a vida, atestamos a veracidade do seu caminho e a beleza do seu projeto de vida. E descobrimos que é o próprio Sopro de Deus que nos faz testemunhas “em Jerusalém, na Judéia, na Samaria e até os confins do mundo... Estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos...” A missão sempre começa por onde estamos, mas não se detém no limite dos muros de defesa que levantamos...
Deus Pai e Mãe, mistério de amor que acolhe e envia, que gera comunhão e dispersa em missão: aqui estamos para pedir que em nós se cumpra a tua promessa. Envia à tua Igreja e a cada fiel o fogo do teu Espírito. Faze de nós uma comunidade em missão, um povo que congregue em seu seio todos os homens e mulheres de boa vontade, que seja uma imensa caravana empenhada no resgate da cidadania e da dignidade dos teus filhos e filhas, em todos os quadrantes da terra. Ajuda as Igrejas a buscarem a unidade, sem superficialismos, demoras ou desculpas. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 1,1-11 * Salmo 46 (47) * Carta aos Efésios 1,17-23 * Evangelho de S. Mateus 28,16-20)

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O Evangelho dominical - 21.05.2017

O ESPÍRITO DA VERDADE

Jesus está despedindo-se dos Seus discípulos. Vê que estão tristes e abatidos. Brevemente já não o terão. Quem poderá encher o seu vazio? Até agora foi Ele que os cuidou, defendeu-os dos escribas e fariseus, sustentou a sua fé débil e vacilante, foi-lhes mostrando a verdade de Deus e os iniciou no seu projeto humanizador.
Jesus fala-lhes apaixonadamente do Espírito. Não os quer deixar órfãos. Ele mesmo pedirá ao Pai que não os abandone, que lhes dê «outro Defensor» para que «esteja sempre com eles». Jesus chama-lhe «o Espírito da verdade». O que se esconde nestas palavras de Jesus?
Este «Espírito da verdade» não há de ser confundido com uma doutrina. Esta verdade não tem de se procurar nos livros dos teólogos nem nos documentos da hierarquia. É algo muito mais profundo. Jesus diz que ele «vive conosco e está em nós». É alento, força, luz, amor, que nos chega do mistério último de Deus. Temos de o acolher com coração simples e confiado.
Este «Espírito da verdade» não nos converte em «proprietários» da verdade. Não vem para que imponhamos a outros a nossa fé nem para que controlemos a sua ortodoxia. Vem para não nos deixar órfãos de Jesus, e nos convida a nos abrirmos à Sua verdade escutando, acolhendo e vivendo o Seu Evangelho.
Este «Espírito da verdade» não nos faz tampouco «guardiães» da verdade, mas testemunhas. O que temos a fazer não é disputar, combater nem derrotar adversários, mas viver a verdade do Evangelho e «amar Jesus guardando os Seus preceitos».
Este «Espírito da verdade» está no interior de cada um de nós defendendo-nos de tudo o que nos possa afastar de Jesus. Convida a abrir-nos com simplicidade ao mistério de um Deus Amigo da vida. Quem procura este Deus com honradez e verdade não está longe Dele. Jesus disse em certa ocasião: «Todo aquele que é da verdade escuta a Minha voz». É certo.
Este «Espírito da verdade» convida-nos a viver na verdade de Jesus no meio de uma sociedade onde com frequência a mentira é chamada de estratégia; a exploração é denominada negócio; a irresponsabilidade é chamada de tolerância; a injustiça é apresentada como ordem estabelecida; a arbitrariedade é batizada como liberdade; a falta de respeito recebe o nome de sinceridade...
Que sentido pode ter a Igreja de Jesus se deixamos que se perca nas nossas comunidades o «Espírito da verdade»? Quem a poderá salvar do autoengano, dos desvios e da mediocridade generalizada? Quem anunciará a Boa Nova de Jesus numa sociedade tão necessitada de alento e esperança?
José Antonio Pagola

Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Ano A – Sexto Domingo da Pascoa - 21.05.2017

O Espírito da Verdade consola e emancipa o povo de Deus!
A experiência de orfandade é semelhante à situação de uma pessoa que perdeu as referências fundamentais e, que não consegue mais tocar suas raízes, não tem mais colo nem horizonte. É como alguém que é processado e não conta com um advogado que fale em seu nome. Orfandade significa falta de assistência, de proteção, de defesa, de consolação, enfim, uma situação de vulnerabilidade. Nestas circunstâncias, por mais clara que seja a inocência, a liberdade e dignidade correm sérios riscos
É assim que se sentiam os apóstolos naquela misteriosa noite de despedida de Jesus, narrada pelo evangelista. Eles haviam partilhado pão e vinho e visto Jesus se inclinar e lavar seus pés. Haviam ouvido da sua própria boca que um deles o trairia, outro o negaria e todos se dispersariam. Sentiam que a imagem de Deus que tinham construído se dissolvia diante do ensino e dos gestos de Jesus. Anteviam o seu destino – prisão, condenação e execução – e sentiam-se inseguros e órfãos da utopia do Reino.
É neste contexto que Jesus promete-lhes um outro Advogado ou Defensor: alguém que falaria por eles e em lugar deles nas acusações e nos tribunais. Este defensor agiria como os pais, que, além de serem o fio que liga as novas gerações ao passado e os indivíduos a uma família, assumem a defesa e a tutela dos filhos menores e em situação de vulnerabilidade. Agiria como Jesus, que assumiu esta dupla missão junto aos discípulos: ser o advogado de defesa e o irmão primogênito que revela e torna presente o Pai.
Daí a promessa consoladora e encorajadora de Jesus Cristo aos discípulos: “O pai dará a vocês outro Defensor... Eu não vos deixarei órfãos...” O Espírito da Verdade-Fidelidade nos ajuda a superar a orfandade e nos faz filhos de Deus e herdeiros do Reino anunciado e iniciado por Jesus Cristo. Ele também faz perseverantes no dinamismo do Amor a Jesus Cristo e ao próximo, especialmente aqueles que padecem as maiores necessidades. O amor a Jesus Cristo se mostra na atitude cuidar do seu rebanho, e nada pode ser posto acima do amor a Jesus Cristo e aos pobres nos quais ele vive.
Entretanto, este amor não é apenas uma questão ética, um simples e inflexível imperativo categórico. O amor é um movimento livre e libertador, original e fecundo, que brota do núcleo mais profundo dos discípulos de Jesus como sopro novo do Espírito Santo. Neste dinamismo de saída de nós mesmos para entregarmo-nos e descobrirmo-nos no Outro fazemos a experiência de estar em Deus, de habitar nele em segurança, de ter um Pai real, amável, presente e próximo.
E não é só isso. Na medida em que percorremos responsavelmente este êxodo de nós mesmos em direção ao outro e ao futuro, experimentamos também o advento do próprio Deus no nosso corpo, no coração do mundo. Mediante o amor solidário não é apenas o ser humano que está em Deus, mas o próprio Deus vem habitar nesta sua amante criatura e fazer dela sua morada definitiva. “Vocês compreenderão que eu estou no Pai, vocês em mim e eu em vocês...”
Alguém disse que a forma mais eficaz de acabar com o amor é torná-lo obrigatório. Mas poderíamos acrescentar: a forma mais eficaz de esterilizá-lo é reduzi-lo a um sentimento. O amor é uma relação num ambiente de aliança, uma atitude que supera a veleidade dos sentimentos. É atitude, relação, ação que reconhece e afirma o outro em sua dignidade. Se tivermos dúvida sobre o que significa amar, olhemos para o que fez Jesus Cristo. Nele certamente encontraremos mais que meros sentimentos. E aprendemos que o amamos na medida em que acolhemos e praticamos seu mandamento de amor ao próximo.
Pedro pede que estejamos sempre prontos a tornar públicas as razões da esperança que nos faz viver, mas também sugere que o façamos com mansidão, respeito e delicadeza. Estejamos pois dispostos a sofrer por causa da esperança e do amor que nos faz próximos daqueles que estão longe. E que esta ação portadora do sopro do Espírito de Deus impressione e seduza os homens e mulheres, e os leve a prostrarem-se diante do Deus que realiza isso mediante seus servos e servas.
Deus querido e amável, Pai que defende e Mãe que consola: Vem em nosso socorro e permanece conosco nas muitas travessias que nos encantam e amedrontam. Ensina a Igreja a permanecer no teu amor, a flexibilizar seu corpo enrijecido pelo hábito das leis e pelo medo da liberdade. Que o Espírito de Lealdade e de Verdade nos mantenha no caminho do amor que teu Filho percorreu e ensinou, nos ajude a entender sua Palavra com a mente, o coração e as mãos, multiplique nossa alegria diante dos povos que acolhem essa Palavra, e nos guie como discípulos e missionários ao coração do mundo. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 8,5-17 * Salmo 65 (66) * Primeira Carta de Pedro 3,15-18 * Evangelho de Joao 14,15-21)

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O Evangelho dominical - 14.05.2017

O CAMINHO

No final da última ceia, os discípulos começaram a intuir que Jesus já não estaria muito tempo com eles. A saída precipitada de Judas, o anúncio de que Pedro o negaria muito brevemente, as palavras de Jesus falando da Sua próxima partida, deixaram todos desconcertados e abatidos. O que vai ser deles?
Jesus capta a tristeza e a perturbação deles. O Seu coração comove-se. Esquecendo-se de Si mesmo e do que o espera, Jesus trata de animá-los: «Não vos inquieteis. Confiai em Deus e confiai também em mim». Mais tarde, durante a conversa, Jesus faz-lhes esta confissão: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém pode chegar até ao Pai senão por Mim». Não o temos de o esquecer nunca.
Eu sou o caminho! O problema de muitos não é que vivam extraviados ou desencaminhados. Simplesmente vivem sem caminho, perdidos numa espécie de labirinto: andando e desandando os mil caminhos que, de fora, lhes vão indicando os slogans e modas do momento. E que pode fazer um homem ou uma mulher quando se encontra sem caminho? A quem pode se dirigir? Onde pode ir? Quem caminha seguindo os passos de Jesus ainda poderá encontrar problemas e dificuldades, mas é no caminho certo que leva ao Pai. Esta é a promessa de Jesus.
Eu sou a verdade! Estas palavras contêm um convite escandaloso aos ouvidos modernos. E, no entanto, hoje também temos de ouvir Jesus. Nem tudo é reduzido à razão. O desenvolvimento da ciência não contém toda a verdade. O mistério último da realidade não se deixa apanhar pelas análises mais sofisticadas. O ser humano tem de viver perante o mistério último da existência. Jesus apresenta-se como o caminho que conduz e aproxima a esse Mistério último. Deus não se impõe. Não força ninguém com provas nem evidências. O Mistério último é silêncio e atração respeitosa. Jesus é o caminho que nos pode conduzir a confiar na sua bondade.
Eu sou a vida! Jesus pode ir transformando a nossa vida. Não como o mestre longínquo que deixou um legado de sabedoria admirável à humanidade, mas como alguém vivo que, desde o mais profundo do nosso ser, infunde em nós um gérmen de vida nova. Esta ação de Jesus em nós produz-se quase sempre de forma discreta e silenciosa. O crente apenas intui uma presença imperecível. Por vezes, no entanto, invade-nos a certeza, a alegria incontida, a confiança total: Deus existe, ama-nos, tudo é possível, inclusive a vida eterna. Nunca entenderemos a fé cristã se não acolhemos Jesus como o caminho, a verdade e a vida.
José Antonio Pagola

Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 9 de maio de 2017

ANO A – QUINTO DOMINGO DA PASCOA 14.05.2017

A fé em Jesus nos leva a continuar sua missão libertadora!
O belo e sério diálogo de Jesus com seus discípulos, descrito hoje pelo evangelista, transcorre originalmente na noite da última ceia, após o lava-pés.  O clima é de sincera amizade e de apreensão frente às ameaças; de serena alegria da parte de quem se entrega inteiramente, e de inquietante dúvida de quem não consegue entender o caminho do serviço; de grande perturbação dos discípulos, e de Jesus também! É neste clima que Jesus fala de um lar cálido e com muitos lugares, do caminho para o Pai, da presença do Pai na sua vida e nas suas ações.
Como os discípulos depois da ceia de aliança e despedida, às vezes nos sentimos envolvidos por nuvens tenebrosas.  Como no atual momento vivido pelo povo brasileiro, o horizonte utópico se escurece, nossas forças de resistência se esvaem, não sabemos o rumo que devemos seguir e nada parece disposto a hospedar nossos sonhos. É neste contexto que Jesus promete: “Existem muitas moradas na casa do meu Pai!”  Podemos estar seguros de que, no coração de Deus há um lugar para aqueles que percorrem o caminho do êxodo, rumo a uma terra onde a justiça beija a paz.
Aqueles que queremos chegar ao Pai e ao mundo por ele sonhado temos um caminho seguro: este caminho é o próprio Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, aquele que coloca os últimos em primeiro lugar, que acolhe enobrecido o perfume que uma mulher malvista derrama nos seus pés, que se reparte no pão, que se ajoelha para lavar os pés dos discípulos, que nos ama como amigos e amigas, que perdoa o ladrão arrependido... Este é o Caminho seguro que leva infalivelmente ao Pai.
Naquilo que diz e naquilo que faz, Jesus Cristo é também a Verdade que nos acalma e enche de alegria. A verdade sobre a pessoa humana e sobre Deus! A verdade mais profunda do ser humano é sua capacidade de ternura e solidariedade. A verdade mais profunda de Deus é sua aliança e lealdade com seu povo, sua companhia insuperável. Esta é uma verdade que exerce uma incrível atração sobre nós, que lança-nos para fora e para frente, e não é algo de que podemos nos apropriar.
Em tudo o que fez e viveu, inclusive no aparente abandono sofrido na cruz, Jesus estava no Pai e o Pai estava nele. Ele aprendeu e ensinou aos seus discípulos que não há alimento mais saudável e nutritivo que realizar a vontade libertadora de Deus, e é isso que significa estar no Pai. Ele agiu sem medo, cansaço ou limites no resgate da dignidade e da vida das pessoas necessitadas, e isso quer dizer que Deus estava nele. É por isso que, respondendo ao convite do salmista, exultamos de alegria.
A comunidade apostólica nos mostra claramente que a fé em Jesus é dinamismo para agir e intuição para criar. Nenhuma pessoa necessitada deve ficar sem auxílio e nenhuma comunidade pode ficar sem anúncio da Boa Notícia.  Pelo testemunho de ajuda aos pobres em suas necessidades e pelo anúncio explícito dos apóstolos, a Palavra do Senhor se espalha, corre o mundo, é assimilada por diversas pessoas e culturas. É esta Palavra que ressoa hoje com sabor de novidade na celebração dominical. E é ela que nos alimenta e nos constitui discípulos missionários!
Pedro fala de Jesus como de uma pedra rejeitada pelos construtores, mas preciosa para Deus e para aqueles que acreditam nele. Aquele homem que os poderes do mundo rejeitaram é acolhido como mais digno e precioso por Deus. Aquele homem crucificado e achincalhado é a própria imagem viva de Deus. Naquele homem vindo da periférica Nazaré e da suspeita Galileia, que sentou à mesa com pecadores, que defendeu prostitutas, que curou pessoas impuras, estava vivo e ativo o próprio Deus.
Na intuição de Pedro, somos todos pedras vivas que, unidas a Jesus Cristo, a pedra angular, são indispensáveis na construção do templo vivo no qual a vida plena é a mais bela oferta a Deus. Somos um povo comprado a preço de ouro por Deus, constituídos como povo eleito, sacerdócio de sangue real e nação santificada, que mostra e faz a diferença num mundo dividido. Deus trata como povo amado e especial aqueles que os poderes e instituições tendem a considerar como nada ou uma nulidade.
Deus Pai e Mãe, dá-nos a criativa fidelidade e a responsável liberdade dos discípulos da primeira hora. Afasta de nós o medo da inovação, o receio de defender vítimas e denunciar os que oprimem. Corrige na tua Igreja o mau-gosto de situar-se comodamente ao lado dos poderosos e a tendência de pensar que a pluralidade vital é relativismo total. Não deixes que a tua Igreja se perturbe diante da complexidade, dos desafios e das possibilidades do mundo.  E ajuda-nos a continuar a obra de Jesus. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 6,1-7 * Salmo 32 (33) * Primeira Carta de S. Pedro 2,4-9 * Evangelho de São Joao 14,1-12)

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O Evangelho dominical - 07.05.2017

NOVA RELAÇÃO COM JESUS

Nas comunidades cristãs necessitamos viver uma experiência nova de Jesus reavivando a nossa relação com Ele. Colocá-Lo decididamente no centro da nossa vida. Passar de um Jesus confessado de forma rotineira para um Jesus recebido vitalmente. O evangelho de João faz algumas sugestões importantes ao falar da relação das ovelhas com o seu pastor.
O primeiro é «escutar a Sua voz» com toda a Sua frescura e originalidade. Não confundir sua voz com o respeito às tradições nem com a novidade das modas. Não nos deixarmos distrair nem aturdir por outras vozes estranhas que, mesmo que se escute no interior da Igreja, não comunicam a Sua Boa Nova.
É importante, também, sentir-nos chamados por Jesus «pelo nosso nome». Deixar-nos atrair por Ele. Descobrir pouco a pouco, e cada vez com mais alegria, que ninguém responde como Ele às nossas preguntas mais decisivas, aos nossos desejos mais profundos e às nossas necessidades últimas.
É decisivo «seguir» Jesus. A fé cristã não consiste em acreditar em coisas sobre Jesus, mas em acreditar Nele: em viver confiando na Sua pessoas; em inspirar-nos no Seu estilo de vida para orientar a nossa própria existência com lucidez e responsabilidade.
É vital caminhar tendo Jesus «diante de nós». Não fazer o percurso da nossa vida em solidão. Experimentar em algum momento, ainda que desajeitadamente, que é possível viver a vida desde a sua raiz: desde esse Deus que se nos oferece em Jesus, mais humano, mais amigo, mas próximo e salvador que todas as nossas teorias.
Esta relação viva com Jesus não nasce em nós de forma automática. Vai-se despertando no nosso interior de forma frágil e humilde. De início é quase só um desejo. Em geral cresce rodeada de dúvidas, interrogações e resistências. Mas, mesmo sem sabermos como, chega um momento em que o contato com Jesus começa a marcar decisivamente a nossa vida.
Estou convencido de que o futuro da fé entre nós está sendo decidida, em boa parte, na consciência de quem neste momento se sente cristão. Agora mesmo a fé está a reavivar-se ou está a extinguir-se nas nossas paróquias e comunidades, no coração dos sacerdotes e dos fiéis que as formamos.
A descrença começa a penetrar em nós desde o mesmo momento em que a nossa relação com Jesus perde força ou fica adormecida pela rotina, a indiferença e a despreocupação. Por isso, o papa Francisco reconheceu que «necessitamos criar espaços motivadores e de cura, [...] lugares onde possamos regenerar a fé em Jesus». Temos de escutar a Sua chamada.

José Antonio Pagola

quarta-feira, 3 de maio de 2017

ANO A – QUARTO DOMINGO DA PASCOA 07.05.2017

Jesus é pastor, porta e caminho para uma vida abundante
O quarto domingo do tempo pascal é marcado pela bela imagem do bom pastor. É uma metáfora poética que nos conduz ao mundo pastoril e sugere presença, carinho, ternura, conhecimento, orientação, segurança. Reunida em torno do ressuscitado e convicta de que ele lhe daria quantas vidas tivesse, a comunidade cristã pede a Deus que, apesar da sua fraqueza e das suas contradições, encontre segurança no pastor bom, aprenda a reconhecer sua voz, como a mãe conhece os sussurros dos filhos, e se comprometa com a missão de despertar, chamar, formar e enviar as diversas vocações eclesiais.
O Espírito Santo, dom que nos vem do Pai pelo Filho, possibilita aos discípulos e discípulas, não obstante as barreiras do tempo e do pecado, uma relação pessoal com Jesus Cristo. E esta relação começa com a experiência de ser chamado pelo nome, pelo que somos realmente. A Deus não importam as funções hierárquicas, os papéis sociais ou eclesiais, os títulos de crédito ou de honra, as fraquezas éticas e morais, mas unicamente o nome, a realidade humana que existe e subsiste sob toda esta indumentária, maquiagem ou sujeira. O nome expressa nossa identidade mais profunda e original.
Reconhecendo a voz daquele que nos chama pelo nome, descobrimos também que Jesus nos conduz para fora. Ao bom pastor não interessa atrair o rebanho para dentro de um redil e conservá-lo seguro, mesmo que este redil se chame Igreja. Ele não quer conduzir as pessoas a uma vida interior projetada como indiferença para com o mundo exterior. Como bom pastor, ele chama pelo nome e conduz aqueles que o ouvem para fora de si mesmos e para fora de um sistema que anestesia e, concomitantemente, separa, hierarquiza e aprisiona as pessoas. O Bom Pastor nos chama e nos manda sair às periferias! Ele não apenas pronuncia nosso nome com delicadeza: ele nos confia uma missão, ele nos envia!
Neste percurso, o próprio Jesus caminha à nossa frente, livre e solidário, militante e sonhador, cordeiro e pastor. Ele não considera suficiente despertar os homens e mulheres e mostrar-lhes um caminho. Ele se faz caminho e companheiro de caminhada, um pouco à frente para dissipar medos e incertezas, mas sempre próximo para curar feridas e fortalecer nos tropeços. No fim, ele é porta aberta em forma de cruz, passagem-páscoa para a liberdade, seta que aponta para um outro mundo possível e urgente. O importante é reconhecer sua voz que nos chama pelo nome e nos manda sair porta a fora de nós mesmos.
Enquanto pastor, além de manter uma relação personalizada com cada pessoa, Jesus também reúne um rebanho, uma comunidade, uma coletividade. O caminho de saída, sem deixar de ser pessoal e tocar a cada um, é sempre comunitário, solidário. Somos ovelhas do seu rebanho, membros de um povo solidário no pecado e na graça. Recebemos o bônus e o ônus de estarmos ligados a um povo e a um mundo que caminha para a liberdade tropeçando nos próprios pés, mas que também mantem o olhar fixo naquele que vai à sua frente. Deus quis nos salvar constituindo-nos como povo!
O sonho de Deus, afirmado, firmado e confirmado por Jesus Cristo, é que a vida floresça em todas as dimensões, em todas as criaturas. Não se trata de uma vida miúda, apertada e resignada, mas de uma vida abundante, transbordante, de um bem viver. Esta vida não germina senão na terra fecundada pelo dom de si. É entrando e saindo do redil de Jesus Cristo, vivendo nossa vida como dom, que encontraremos pastagem. É na ousadia de ir além dos limites e muros erguidos para defender privilégios e ideologias mesquinhas que encontraremos o alimento que sustenta esta vida tão sonhada.
Escrevendo a uma comunidade imersa numa situação de dura perseguição, Pedro convida os cristãos de todos os tempos a suportarem com paciência, como Jesus, os sofrimentos causados por terem feito o bem. Isso porque a vida abundante é um milagre que costuma contar com o engajamento crítico e profético de homens e mulheres que, conscientes de serem chamados para fora, se engajam na política, nas iniciativas e movimentos que protestam, reivindicam e transformam as estruturas sociais, jurídicas e econômicas e, com isso, acabam atraindo incompreensões, difamações e perseguições.
Senhor da messe e pastor do rebanho: faz que reconheçamos tua voz e tua presença no meio de nós e à nossa frente. Ajuda-nos a suportar com serenidade as perseguições que nosso trabalho e testemunho porventura causarem. Dá-nos coragem e liberdade para fazermos da Igreja um lugar de passagem, um espaço onde entramos e de onde saímos para transformar o mundo. Concede-nos mais operários para o trabalho do Reino, mas também a corajosa liberdade de remover os entulhos de leis e tradições que impedem a tantos irmãos e irmãs realizar sua própria vocação. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 2,14.36-41 * Salmo 22 (23) * 1ª. Carta de Pedro 1,20-25 * Evangelho de Joao 10,1-10)