quinta-feira, 17 de março de 2016

O evangelho dominical

QUE FAZ DEUS NUMA CRUZ?

Segundo o relato evangélico, os que passavam ante Jesus crucificado sobre a colina do Gólgota escarneciam Dele e, rindo-se da Sua impotência, diziam-Lhe: «Se és o Filho de Deus, desce da cruz». Jesus não responde à provocação. A Sua resposta é um silêncio carregado de mistério. Precisamente porque é Filho de Deus permanecerá na cruz até à Sua morte.
As perguntas são inevitáveis: Como é possível acreditar num Deus crucificado pelos homens? Damo-nos conta do que estamos a dizer? Que faz Deus numa cruz? Como pode subsistir uma religião fundada numa concepção tão absurda de Deus?
Um «Deus crucificado» constitui uma revolução e um escândalo que nos obriga a questionar todas as ideias que nós, humanos, fazemos a um Deus a quem supostamente conhecemos. O Crucificado não tem o rosto nem os traços que as religiões atribuem ao Ser Supremo.
O «Deus crucificado» não é um ser omnipotente e majestoso, imutável e feliz, alheio ao sofrimento dos humanos, mas um Deus impotente e humilhado que sofre conosco a dor, a angústia e até a mesma morte. Com a Cruz, ou termina a nossa fé em Deus, ou nos abrimos a uma compreensão nova e surpreendente de um Deus que, encarnado no nosso sofrimento, nos ama de forma incrível.
Ante o Crucificado começamos a intuir que Deus, no Seu último mistério, é alguém que sofre conosco. A nossa miséria afeta-O. O nosso sofrimento salpica-O. Não existe um Deus cuja vida transcorre, por assim dizer, à margem das nossas penas, lágrimas e desgraças. Ele está em todos os Calvários do nosso mundo.
Este «Deus crucificado» não permite uma fé frívola e egoísta num Deus omnipotente ao serviço dos nossos caprichos e pretensões. Este Deus coloca-nos a olhar para o sofrimento, o abandono e o desamparo de tantas vítimas da injustiça e das desgraças. Com este Deus encontramo-nos, quando nos aproximamos do sofrimento de qualquer crucificado.
Os cristãos continuam a tomar todo o renego de desvios para não dar com o «Deus crucificado». Temos aprendido, inclusive, a levantar o nosso olhar para a Cruz do Senhor, desviando-a dos crucificados que estão ante os nossos olhos. No entanto, a forma mais autêntica de celebrar a Paixão do Senhor é reavivar a nossa compaixão. Sem isto, dilui-se a nossa fé no «Deus crucificado» e abre-se a porta a todo o tipo de manipulações. Que o nosso beijo ao Crucificado nos coloque sempre a olhar para quem, próximo ou afastado de nós, vive a sofrer.
José Antonio Pagola

ANO C – DOMINGO DE RAMOS – 20.03.2016

Jesus nos dá vida, seu estilo de vida, sua própria vida!
Depois de 40 dias de preparação, eis que se abrem as portas de uma semana que vale uma vida. Com ramos e flores, faixas e bandeiras e cânticos reunimo-nos nas ruas e templos para aclamar nosso líder manso e humilde. “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!” Só alguém infinitamente grande é capaz de fazer-se tão pequeno e próximo. Na celebração que abre a Semana Santa somos convidados acompanhar Jesus no seu caminho de fidelidade, de oferta generosa da sua vida e realização plena da vontade do Pai. Deus se recusa a dar uma esmola à humanidade: ele se dá a si mesmo em Jesus de Nazaré e, no seu corpo e sangue, assina uma parceria com prazo indeterminado.
Para entender o relato da entrada de Jesus em Jerusalém temos que abandonar todas as fantasias de poder e de sucesso. Ela não tem nada de triunfal. Jesus vem da Galiléia e entra na capital do seu país, economicamente e politicamente dominado por Roma, montado num jumento. Nada de cortejos de honra, nem de generais e cavalos vistosos ou de gestos de cortesia a grandes senhores. Como diz o hino de Paulo, Jesus chega a Jerusalém como sempre foi: um servidor, um simples homem, esvaziado de interesses egoístas e radicalmente obediente às necessidades dos outros.
Depois de uma longa caminhada, o profeta galileu chega à capital do país caminhando à frente de um numeroso, entusiasmado e, às vezes, desconcertado grupo de discípulos e discípulas. O povo do campo o aclama como filho e herdeiro de Davi. “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!” Era um coro de pessoas que, como o velho Simeão, sabiam reconhecer num indignado e revolucionário Aquele que vem em nome de Deus e atualiza sua ação libertadora. Mas isso contrasta com a fria acolhida por parte do povo de Jerusalém e com o medo indisfarçável dos próprios discípulos.
O grupo que acolhe e acompanha Jesus na entrada nada triunfal em Jerusalém saúda o despontar do reino messiânico inspirado em Davi e a chegada do líder enviado por Deus. Ele, porém, não realiza as ações impressionantes que muitos esperavam. Chegando perto da capital amada e cantada em prosa e verso, Jesus a contempla de longe e chora, lamentando o fechamento à profecia e o apego às leis e demais instituições. Ele é o servo paciente e o ouvinte atento da Palavra do qual fala Isaías. E é dessa escuta que brota uma palavra que desperta os adormecidos e encoraja os acorrentados pelo medo.
A entrada de Jesus montado num jumento é uma poderosa sátira aos libertadores militares, conhecidos no passado, temidos no presente ou esperados para o futuro. Mas o entusiasmo suscitado naquele pequeno grupo de gente interiorana não durará muito tempo. Os gritos de ‘hosana’ logo serão substituídos pelo insolente ‘crucifica-o’, fruto da frustração do povo e da manipulação das autoridades. O grupo mais exaltado dos discípulos solta a voz e o proclama o Messias esperado, mas Jesus faz questão de demonstrar seu messianismo pobre e manso e entra montado muito a gosto num jumento.
A divisão entre os discípulos e a possibilidade de traição não fazem Jesus mudar seu plano. É verdade que ele se sente abatido e chega a se perguntar sobre o rumo a seguir. No momento crucial, depois da festa de acolhida e da ceia de despedida, enfrenta um discernimento difícil e pede aos discípulos que fiquem com ele e vigiem.  É um exercício de confronto profundo com a vontade do Pai, com a missão escrita em caracteres confusos e exigentes. Para os discípulos de todos os tempos, a oração continua sendo um espaço para discernir com retidão e coerência os caminhos que levam à vida em abundância.
Aclamemos com jovial alegria e convincente esperança o mestre e profeta Jesus de Nazaré. Acompanhemos de perto seus passos, acolhamos seus gestos, escutemos suas palavras. Superemos a tentação de segui-lo de longe e de evitar maiores riscos, como fizeram Pedro e os outros. Não esqueçamos que tantos discípulos e discípulas pelos séculos a fora permaneceram com ele, comungaram seu destino e se tornaram semente. Entre estes está o nosso querido e incompreendido Dom Oscar Romero, cujo martírio recordaremos no próximo dia 24 e cuja santidade o povo já reconheceu.
Jesus de Nazaré, filho e herdeiro de Davi, messias servidor e humilde: diante de ti dobramos os joelhos e estendemos nossas vestes e ramos. Te oferecemos nosso corpo para que entres hoje em nossas praças e cidades, para anunciar com timbre de sino a dignidade daqueles que não a têm reconhecida e assegurada. Não deixes que a aclamação que fazemos na liturgia seja negada pelas nossas atitudes. Ensina-nos de novo a sagrada lição da Ceia e da Paixão: que não existe maior prova de amor que cuidar da casa comum e doar a vida por quem amamos. E dai-nos a graça da vigilância e da perseverança. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 50,4-7 * Salmo 21 (22) * Carta aos Filipenses 2,6-11 * Lucas  19,28-40 e 22,14-23,56)

sexta-feira, 11 de março de 2016

O evangelho dominical

REVOLUÇÃO IGNORADA

Apresentam a Jesus uma mulher surpreendida em adultério. Todos conhecem o seu destino: será lapidada até à morte segundo o estabelecido pela lei. Ninguém fala do adúltero. Como ocorre sempre numa sociedade machista, condena-se a mulher e desculpa-se o homem. O desafio a Jesus é frontal: «A lei de Moisés manda-nos apedrejar as adúlteras. Tu que dizes?».
Jesus não suporta aquela hipocrisia social alimentada pela prepotência dos homens. Aquela sentença à morte não vem de Deus. Com simplicidade e audácia admiráveis, introduz ao mesmo tempo verdade, justiça e compaixão no julgamento à adúltera: «o que esteja sem pecado, que atire a primeira pedra».
Os acusadores retiram-se envergonhados. Eles sabem que são os maiores responsáveis dos adultérios que se cometem naquela sociedade. Então Jesus dirige-se à mulher que acaba de escapar da execução e, com ternura e grande respeito, diz-lhe: «Tampouco Eu te condeno». Logo, anima-a para que o Seu perdão se converta em ponto de partida de uma vida nova: «Anda, e daqui em diante não peques mais».
Assim é Jesus. Por fim existiu sobre a terra alguém que não se deixou condicionar por nenhuma lei nem poder opressivo. Alguém livre e magnânimo que nunca odiou nem condenou, nunca devolveu mal por mal. Na Sua defesa e no Seu perdão, a esta adúltera há mais verdade e justiça que nas nossas reivindicações e condenações ressentidas.
Os cristãos, não fomos capazes todavia de extrair todas as consequências, que encerra a atuação libertadora de Jesus face à opressão da mulher. A partir de uma Igreja dirigida e inspirada majoritariamente por homens, não conseguimos tomar consciência de todas as injustiças que continua a padecer a mulher em todos os âmbitos da vida. Algum teólogo falava há uns anos «da revolução ignorada» pelo cristianismo.
O certo é que, vinte séculos depois, nos países de raízes supostamente cristãs, continuamos a viver numa sociedade onde com frequência a mulher não pode mover-se livremente sem temer o homem. A violação, o mau trato e humilhação não são imaginárias. Pelo contrário, constituem uma das violências mais arraigadas e que mais sofrimento gera.
O sofrimento da mulher não deveria ter um eco mais vivo e concreto nas nossas celebrações, e um lugar mais importante no nosso trabalho de consciencialização social? Mas, sobretudo, não devemos estar mais próximos de todas as mulheres oprimidas para denunciar abusos, proporcionar defesa inteligente e proteção eficaz?

José Antonio Pagola
http://www.gruposdejesus.com/5-de-quaresma-c-joao-81-11/

quinta-feira, 10 de março de 2016

ANO C – QUINTO DOMINGO DA QUARESMA – 13.03.2016

A luta contra a corrupção não pode ser cínica e hipócrita!

Não deixemos que a liturgia e a doutrina nos prendam ao passado ou a ideias abstratas. Deus está fazendo hoje coisas novas! A fé vivida e testemunhada pelas gerações que nos antecederam serve para acender nossas utopias e iluminar a estrada que devemos percorrer. Paulo deixa bem claro que quem encontra e acolhe Jesus Cristo não tem medo de jogar no lixo costumes, sistemas e doutrinas que hierarquizam, desprezam e escravizam. Iluminados pelo encontro de Jesus com a mulher acusada na praça, assumamos hoje, com força renovada, nosso protagonismo no cuidado da casa comum!
Pelo profeta Isaías, é o próprio Deus que nos convida a não ter saudades do passado. “Eis que estou eu fazendo coisas novas... No deserto eu abro um caminho, rasgo rios na terra seca.” Não é uma promessa: é uma ação em curso, no tempo presente. E Paulo completa, provocando-nos com seu itinerário pessoal: “Esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente.” Nossas celebrações, assim como a catequese e a pregação, devem pôr em relevo a vida presente, à luz do mistério de Jesus Cristo, e não podem ser reduzidas a uma memória morta de fatos de um passado remoto.
Assim, não podemos ceder à tentação de ler o episódio relatado por João como coisa do passado. Chama a atenção que os escribas e fariseus não dão tréguas no zelo pela lei e ‘trabalham’ de noite, madrugada adentro: nas altas horas da noite, prendem uma mulher adúltera e a trazem para o centro do círculo que se formara em torno de Jesus, no templo. O centro, que era o lugar da Lei, fora invadido por Jesus e agora é ocupado pela mulher acusada. Até parece que os pobres e oprimidos só ocupam o centro das atenções e sistemas quando são réus nos tribunais ou acusados nas páginas policiais...
O cinismo dos líderes religiosos é impressionante: acusam uma pobre mulher com o objetivo de atingir o próprio Jesus. “Esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, o que dizes?” Jesus procura evitar a armadilha, e não lhe passa despercebida a leitura tendenciosa que os escribas e fariseus fazem da Lei de Moisés, pois no Levítico está escrito: “Se um homem cometer um adultério com a mulher do próximo, o adúltero e a adúltera serão punidos com a morte” (Lv 20,10). Onde fora parar o adúltero, o primeiro citado pela Lei?
No fundo, aqueles senhores que se apresentam como zelosos defensores dos direitos de Deus não passam de ferozes agressores dos direitos humanos mais elementares. E assim como era no passado é também no presente! Em nome do maldito e absoluto direito à propriedade privada, aquela que nos priva de viver e de amar, criminaliza-se os sem-terra, os índios e aqueles que os apoiam. E em nome de um suposta combate a corrupção, procura-se recuperar um sistema que privilegia os fortes e devolver o comando do país àqueles que mais sabem conviver com a corrupção e se beneficiar dela...
Diante da insistência dos agentes da tradição, dispostos a executar a sentença capital contra a mulher e a denunciá-lo como subversivo diante da Lei, Jesus pronuncia sua sentença: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra.” Aquela pobre e frágil mulher é transformada numa espécie de espelho no qual todos eles podiam ver suas próprias debilidades, frustrações e transgressões. É como se Jesus dissesse que não faz sentido transformar uma pessoa ou um grupo social em bode expiatório. Mas, infelizmente, continuam sendo muitas as vítimas acusadas sumariamente por detratores que carregam pedras mortais nas mãos e pronunciam palavras ofensivas nos meios de comunicação...
A liberdade lúcida e solidária de Jesus é uma memória e um sonho que, como a recordação do êxodo para os hebreus, enche nossa boca de sorrisos, faz nossa língua cantar de alegria e nos desafia a mudar conceitos e práticas tradicionais. Paulo não brinca quando diz que, por causa de Jesus Cristo, perdeu tudo e jogou no lixo aquilo que sempre lhe parecera precioso e certo. Para ele, diante da pessoa e do projeto de vida de Jesus Cristo, todos os sistemas e ideologias, inclusive religiosas, perderam o sentido. O que resta é a dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas, e sua igualdade fundamental.
Jesus de Nazaré, nós te agradecemos pela madura e bela lição que nos ensinas hoje. O que são nossos privilégios, costumes e doutrinas diante da humana solidariedade e da incrível liberdade que nos ofereces? Que tua Igreja nos inicie na coragem de pôr no centro dos nossos projetos e decisões a defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana. Ajuda-nos a desmascarar a hipocrisia e a violência, mesmo quando aparecem maquiadas de luta contra a corrupção. Abre nossas mãos para que não cansemos de semear o teu Reino de liberdade e solidariedade, esperando abundantes colheitas. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(PROFECIA DE ISAÍAS 43,16-21 * SALMO 125 (126) * CARTA AOS FILIPENSES 3,8-14 * JOÃO 8,1-11)

sexta-feira, 4 de março de 2016

O evangelho dominical

O OUTRO FILHO
Sem dúvida, a parábola mais cativante de Jesus é a do «pai bom», mal denominada de «parábola do filho pródigo». Precisamente este «filho menor» atraiu sempre a atenção de comentadores e pregadores. O seu regresso ao lar e a acolhida incrível do pai comoveram todas as gerações cristãs.
No entanto, a parábola fala também do «filho mais velho», um homem que permanece junto ao seu pai, sem imitar a vida desordenada do seu irmão, longe do lar. Quando o informam da festa organizada pelo seu pai para acolher o filho perdido, fica desconcertado. O retorno do irmão não lhe produz alegria, como ao seu pai, mas sim raiva: «indignou-se e negava-se a entrar» na festa. Nunca tinha saído de casa, mas agora sente-se como um estranho entre os seus.
O pai sai a convida-lo com o mesmo carinho com que acolheu o seu irmão. Não lhe grita nem lhe dá ordens. Com amor humilde «trata de persuadi-lo» para que entre na festa de acolhimento. É então quando o filho explode deixando a descoberto todo o seu ressentimento. Passou toda a sua vida cumprindo as ordens do pai, mas não aprendeu a amar como ele ama. Agora só sabe exigir os seus direitos e denegrir o seu irmão.
Esta é a tragédia do filho mais velho. Nunca partiu de casa, mas o seu coração esteve sempre afastado. Sabe cumprir mandamentos, mas não sabe amar. Não entende o amor do seu pai por aquele filho perdido. Ele não acolhe nem perdoa, não quer nada com o seu irmão. Jesus termina a Sua parábola sem satisfazer a nossa curiosidade: entrou na festa ou ficou fora?
Envoltos na crise religiosa da sociedade moderna, habituamo-nos a falar de crentes e de descrentes, de praticantes e de afastados, de matrimônios abençoados pela Igreja e de casais em situação irregular… Enquanto nós continuamos a classificar os Seus filhos, Deus continua à espera de todos, pois não é propriedade dos bons nem dos praticantes. É Pai de todos.
O «filho mais velho» é uma interpelação para quem acredita viver junto Dele. O que estamos a fazer, os que não abandonaram a igreja? A assegurar a nossa sobrevivência religiosa observando o melhor possível o prescrito, ou ser testemunhas do amor grande de Deus a todos os Seus filhos e filhas? Estamos a construir comunidades abertas que sabem compreender, acolher e acompanhar a quem procura Deus entre dúvidas e interrogações? Levantamos barreiras ou estendemos pontes? Oferecemos amizade ou olhamos com receio?
José Antonio Pagola

quinta-feira, 3 de março de 2016

ANO C – QUARTO DOMINGO DA QUARESMA – 06.03.2016

Esta frase programática e provocativa parece extraída de um panfleto das famosas manifestações juvenis de 1968, ou de uma das tantas canções de época, que ressoam nos ouvidos de quem viveu intensamente ou ouviu falar daqueles ‘anos dourados’. Mas não! Esta afirmação faz parte da leitura fielmente criativa que Paulo faz do Evangelho. Para o apóstolo dos gentios, quem crê em Jesus Cristo e assume sua proposta de vida renasce para uma vida nova, assume uma nova escala de valores, é uma nova criatura. Evangelho tem tudo a ver com mudança de horizontes, com renovação radical.
A realidade política, social e cultural que vivemos hoje no Brasil é muito semelhante àquela que Jesus evidencia no evangelho de hoje: são dois filhos do mesmo pai, mas o filho mais velho reclama seus direitos, acusa irmão que vive miseravelmente e não o reconhece como seu irmão. Há quem bata panelas cheias, ignore avanços e proteste contra a inclusão de gente que historicamente excluída. Não esqueçamos que, no seu contexto, Jesus age como uma espécie de transgressor, beneficiando e elogiando pessoas que não pertencem ao judaísmo (7,1-10; 10,25-37), acolhendo outras de má fama (5,27-32; 7,36-50), ajudando as que são consideradas impuras (4,38-39; 5,1-16; 7,11-17; 8,26-56)...
O filho mais jovem da parábola representa exatamente esta multidão que anda cansada e abatida, como ovelhas sem pastor. Uma leitura apressada e moralista da parábola chama a atenção para a controversa atitude do filho mais jovem: pedir a parte da herança à qual tem direito; esbanjar tudo imprudentemente; arrepender-se e voltar à casa do pai. O mais importante na parábola, porém, é a alusão à situação em que vivem aqueles com quem Jesus se solidariza: são como migrantes desempregados num país estranho; mendigam para sobreviver;  são tratados pior que os porcos...
Com esta parábola Jesus quer chamar a atenção para a figura do pai, sacramento da ação de Deus. Sua bondade supera uma justiça que se restringe a dar a cada um aquilo que, segundo a lei ou os costumes, lhe corresponde e, ‘tomado de compaixão’, corre ao encontro do filho necessitado, abraça-o, veste-o e beija-o. Ao pai pouco importa o refrão ensaiado por aquele que não era mais reconhecido como gente, tanto que sequer permite que o recite por inteiro. Para o pai misericordioso, aquele resto humano nunca deixara de ser seu filho, e isso era o mais importante, o que realmente importava.
Neste mundo convertido em festiva casa de irmãos e irmãs, Deus não trata ninguém como empregado, muito menos como estrangeiro ou devedor. Ele não é contador, nem juiz! Todos são filhos e filhas, e podem usufruir incondicionalmente da sua acolhida e dos seus bens. Na sua casa há lugar para todos! Para os filhos e filhas maltratados e mais necessitados ele reserva as melhores túnicas, o anel com o brasão da família e a festa com carne do novilho mais gordo. No seu projeto, ninguém é excluído nem padece fome. E isso mesmo que seja verdade que o fim da miséria seja apenas o começo!
Mas infelizmente existem cristãos que, por ignorância ou por maldade, murmuram contra a proposta de um mundo diferente e acusam os que ousam ensaiá-lo. Representando os fariseus e escribas, o filho mais velho é o protótipo do cidadão e do crente preconceituoso e observante das leis. Não lhe falta nada e tem tudo em abundância, mas não esconde que se sente credor diante de Deus. Não consegue disfarçar sua raiva diante de um pai que acolhe generosamente o jovem inquieto e necessitado de tudo. Ofende o próprio pai, acusando-o violentamente de ser parcial, injusto e avarento.
O filho mais velho não reconhece aquela criatura miserável e necessitada como seu irmão. Discutindo com o pai, refere-se a ele como ‘esse teu filho’. Mas o pai, depois de afirmar que os bens que julga seus na verdade lhe foram doados, insiste que aquele não-cidadão acolhido com festa é ‘teu irmão’. A solidariedade faz da humanidade uma família onde todas as pessoas se reconhecem e protegem mutuamente, e a ação contra a exclusão está intimamente associada à criação e recomposição dos laços sociais, laços de humanidade, ao nascimento como nova criatura.
Jesus de Nazaré, jovem galileu e filho de Deus, peregrino no santuário das dores e esperanças humanas: desejamos ardentemente sentar à mesa do teu Reino, entre os pobres resgatados e os fiéis agraciados. Afasta do nosso meio, do nosso país, a violência da apartação social, o opróbrio da discriminação e da necessidade de mendigar direitos humanos. Dá às nossas comunidades eclesiais e aos seus responsáveis a generosidade daquele pai com um coração de mãe, para que saiam ao encontro dos oprimidos e os acolham festivamente, compartilhando com eles a palavra, a mesa e a missão. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro de josué 59-12 * Salmo 33 (34) * 2ª. Carta aos Coríntios 517-1 * Lucas 5,1-3.11-32)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O evangelho dominical

ONDE ESTAMOS NÓS?

Uns desconhecidos comunicam a Jesus a notícia da horrível matança de uns galileus no recinto sagrado do templo. O autor da chacina foi mais uma vez, Pilatos. O que mais os horroriza é que o sangue daqueles homens se tenha misturado com o sangue dos animais que estavam a oferecer a Deus.
Não sabemos por que recorrem a Jesus. Desejam que se solidarize com as vítimas? Querem que lhes explique por que horrendo pecado foi cometido para merecer uma morte tão ignominiosa? E se não pecaram, porque Deus permitiu aquela morte sacrílega no Seu próprio templo?
Jesus responde recordando outro acontecimento dramático ocorrido em Jerusalém: a morte de dezoito pessoas esmagadas pela queda de uma torre da muralha próxima da piscina de Siloé. Pois bem, a respeito de ambas as situações Jesus faz a mesma afirmação: as vítimas não eram mais pecadoras que outros. E termina a Sua intervenção com a mesma advertência: «se não vos converteis, todos perecereis».
A resposta de Jesus faz pensar. Antes de mais nada, recusa a crença tradicional de que as desgraças são um castigo de Deus. Jesus não pensa num Deus «justiceiro» que vai castigando os Seus filhos e filhas repartindo aqui ou ali doenças, acidentes ou desgraças, como resposta aos Seus pecados.
Depois, muda a perspectiva da situação. Não se detém em elucubrações teóricas sobre a origem última das desgraças, falando da culpa das vítimas ou da vontade de Deus. Volta o Seu olhar para os presentes e confronta-os consigo mesmos: devem escutar nestes acontecimentos o chamado de Deus à conversão e à mudança de vida.
Todavia vivemos abalados pelo trágico terramoto do Haiti. Como ler esta tragédia a partir da atitude de Jesus? Certamente, em primeiro lugar não devemos perguntar-nos onde está Deus, mas onde estamos nós. A pregunta que pode encaminhar-nos para uma conversão não é «porque permite Deus esta horrível desgraça?», mas «como consentimos nós que tantos seres humanos vivam na miséria, tão indefesos ante a força da natureza?».
Ao Deus crucificado não o encontraremos pedindo contas a uma divindade longínqua, mas identificando-nos com as vítimas. Não o descobriremos protestando contra Sua indiferença ou negando a Sua existência, mas colaborando de mil formas para mitigar a dor no Haiti e no mundo inteiro. Então, talvez, possamos intuir entre luzes e sombras que Deus está nas vítimas, defendendo a Sua dignidade eterna, e nos que lutam contra o mal, alentando o seu combate.
José Antonio Pagola

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Fatos & Personagens: batismo do Pe. Berthier


“Tu és o filho que amo, motivo do meu prazer!”

Por ocasião do batismo recebido no rio Jordão, Jesus descobre e anuncia que Deus não é somente compaixão (como se isso fosse pouco!): ele é também complacência. A palavra que Jesus ouve poderia ser assim traduzida: “Tu és o filho que amo, o motivo do meu prazer!” Ou seja: Deus compartilha tanto as dores quanto os prazeres dos homens e mulheres, seus filhos e filhas. A humanidade tem tudo a ver com ele.

Pia do batismo do Pe. Berthier, em Chatonnay
É possível que não fosse exatamente esta a compreensão que Pedro e Maria Berthier tinham quando, naquela fria manhã do dia 26 de fevereiro de 1840, levaram o recém-nascido primogênito João à pia batismal, na pequena paróquia de Châtonnay. É lícito presumir que partilhassem da compreensão que predominava na Igreja de então: o batismo é o sacramento que apaga o pecado original e abre ao recém-nascido as portas da Salvação, simbolizadas nas portas da igreja paroquial e na acolhida na Comunidade eclesial.
No livro que escreveu às crianças em 1893, o próprio Berthier revelava, em grandes linhas, essa mesma compreensão. “Quando você veio ao mundo, meu filho, sua alma era feia, desfigurada pelo pecado original que todos trazemos ao nascer, e que é um dos frutos da desobediência de Adão, nosso primeiro pai. Se morremos sem fazer desaparecer esta feiúra, jamais veremos Deus. O que é que lava esta mancha da nossa alma? O batismo! É com água que você lava as mãos, e é com a água do batismo que o padre lava as almas. O batismo lava nossos pecados... E quando a alma é lavada pela graça, a imagem de Deus resplandece nela. Ela se torna o templo do Espírito Santo, e a criança batizada se torna filha de Deus, irmã dos anjos e digna da glória eterna” (J. Berthier, Le livre des petits enfants, 1915, p. 167).
Com um pouco de imaginação, mas sem trair o sentido original das suas palavras, podemos dizer que, para o Pe. Berthier, na celebração do batismo damo-nos conta de que somos belos e bons aos olhos de Deus; de que, apesar de tudo, somos dignos de apreço e não merecemos desprezo; de que Deus tem prazer em fazer em nós sua morada. E, ao mesmo tempo, pelo batismo proclamamos nossa ruptura com a desobediência e fazemos do Evangelho uma espécie de GPS que dá rumo à nossa titubeante caminhada.
Sabemos muito bem que são sempre outras pessoas que experimentam e prometem isso em nome da criança que recebe o batismo. Assim como está nas mãos dos pais a sobrevivência, a saúde física e o crescimento do bebê, também depende deles o crescimento coerente com a fé que eles professaram. E disso Berthier não foi privado. Mais tarde ele mesmo reconhecerá: “Considero uma das maiores graças que recebi do bom Deus o fato de ter me dado uma santa mãe. Ela me formou, me reprendeu e não deixou passar nada em branco. Ela tinha consciência de que, antes de ser mãe, era cristã, e que seu primeiro dever era formar o cristão” (apud. João Maria de Lombaerde, Un apôtre de nos jours, p. 27).
Placa ao lado da Pia batismal do Pe. Berthier
Numa das suas homilias sobre o significado e os frutos do batismo, partindo da força maravilhosa que transforma um simples e bruto bulbo em uma bela e exuberante tulipa, Berthier exclama: “Coisas mais maravilhosas ainda opera a vida ou a alma no corpo humano!... Se uma força natural produz tão grandes resultados, o que diremos de uma força sobrenatural, da vida divina comunicada à alma pela graça?! Esta graça é a vida da alma. Como são felizes as pessoas que a possuem! Neste mundo, os cristãos não se distinguem das demais pessoas, assim como, durante o inverno, não distinguimos as árvores vivas daquelas que estão mortas. Mas, com a chegada da primavera, tudo fica evidente...” (J. Berthier, Le prêtre, vol. I, p. 271).
Fazendo memória do batismo do Pe. Berthier, acolhamos sua exortação: “Recordemos frequentemente as promessas do nosso batismo e examinemos se estamos sendo fiéis a elas.” E sejamos conscientes de que, como uma criança, mesmo estando armada,  não é um soldado, nós também  necessitamos do dinamismo e da luz do Espírito Santo para realizar nossa vocação e nossa missão no mundo (cf. J. Berthier, Le livre des petits enfants, p. 169).

Itacir Brassiani msf

ANO C – TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 28.02.2016

Não vivemos um tempo de julgamento, mas de conversão!
“Castigo de Deus por causa dos ritos idolátricos do vudu”. Esta foi a terrível leitura que um pastor estadunidense fez do terremoto que destruiu o Haiti e vitimou nossa conhecida doutora Zilda Arns no início do no 2011.  Devemos perguntar a ele: o mesmo vale para o furacão Caterina, que há alguns anos arrasou parte dos EUA, e para o terromoto que destruiu uma região na Itália em plena semana-santa do ano 2009? Infelizmente nunca faltam pessoas que se comprazem em culpalizar as vítimas e alforriar os algozes, nem aquelas que se empenham em convencer-nos de que as tragédias que se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis...
Todos resistimos a encarar e dar nomes aos males que nos rodeiam e com os quais às vezes colaboramos. Acontece que, para ver a realidade, é preciso ter olhos perfeitos, mas isso não é suficiente. A realidade é dura e desafia os sentidos e a inteligência. O conhecimento e o reconhecimento dos fatos e das pessoas supõem abertura, sensibilidade, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, projeto pessoal de vida. O máximo que consegue é deixar-se impressionar por algo que queima e não se extingue...
Deus irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento do seu povo. Este sofrimento profundo, intenso e real é simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que os sofrimentos dele ferem seu coração e os clamores ferem seus ouvidos, que desceu para fazê-lo subir. É como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê nada, não escuta nada? ’ Damo-nos conta de que nosso ver e nosso julgar estão sempre a serviço de uma determinada ideologia, que comportam uma visão de pessoa, um ideal de sociedade e uma ética.
Esta questão está bem ilustrada no episódio narrado por Lucas, no evangelho do terceiro domingo da quaresma. O contexto mais amplo é o ensino de Jesus sobre a missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de interpretar corretamente os sinais dos tempos. Alguns fariseus interrompem a catequese de Jesus trazendo a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora assassinado por Herodes no templo. É evidente que com isso eles querem censurar e advertir Jesus, como se dissessem: ‘Continue assim, e verás o que acontecerá contigo!... ’
Mas por trás disso está também uma acusação às próprias vítimas: sabendo ou não, Herodes representaria a mão de Deus, que estaria punindo aqueles que, de alguma forma, eram culpados. Uma leitura terrível de fatos em si mesmo trágicos!... Jesus critica o preconceito dos fariseus frente aos galileus e questiona a leitura justificadora e irresponsável que fazem dos fatos. E o faz chamando à memória outra ocorrência, conhecida de todos: o acidente que matara 18 judeus em Jerusalém. Com isso, Jesus questiona uma teologia escapista e cínica, e nos chama à conversão profunda e imediata.
Com firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo, as tentativas que querem demovê-lo da decisão de prosseguir sua missão profética e a teologia cínica elaborada e ensinada pelos defensores do templo.  Afirmando que todos estamos sujeitos a errar ou a não atingir a meta de uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira de juízes e abrir os olhos para uma realidade que é mais complexa que a simples divisão entre culpados e inocentes. Ele nos propõe uma leitura profética da história, e nos chama a reconhecer nossos próprios erros, mas sem fechar os olhos aos pecados estruturais.
O apelo mais forte da liturgia do terceiro domingo da quaresma é à conversão, que começa com uma mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e as pessoas. A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para sempre. ‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada dia.’ A conversão começa em Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e tendo motivos para não esperar qualquer mudança, ele se dispõe a adubar o terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Jesus de Nazaré, Filho da Humanidade e Filho de Deus! Envia teu Espírito para nos inspirar e manter no caminho de conversão. Não nos deixes cair na tentação de pensar que o ambiente não é nossa casa comum, de culpar as vítimas pelas próprias misérias e sofrimentos. Que cada um de nós, nossas comunidades e movimentos, partindo da certeza de que Deus, teu e nosso pai, é lento e suave na cólera, mas rápido e estável na bondade, não tratemos com dureza as vítimas. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo e teu Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 3,1-8.13-15 * Salmo 102 (103) * Carta aos Coríntios 10,1-12 * Evangelho de Lucas 13,1-9)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Natal do Pe. Jean Berthier ms

“Marcas do que se foi, sonhos que vamos ter...”

Pia Batismal do Pe. Berthier, em Chatonnay
Há 176 anos, no dia 24 de fevereiro de 1840, nascia, em Châtonnay (Isère, França), Jean Berthier. Primeiro filho do casal Marie Putaud e Pierre Berthier, Jean tornar-se-ia Missionário de Nossa Senhora da Salette (1862), escritor e pregador muito conhecido (publicou em em torno de 40 livros, alguns traduzidos em até oito línguas, e pregou retiros e missões populares em dezenas de dioceses da França!) e, mais tarde, fundador dos Missionários da Sagrada Família (1895).

Todos sabemos que uma vida não se resume à recordação daquilo que se foi, por mais que não podemos esquecer impunemente que o passado deixa marcas vivas e suscita dinamismos no presente. Nossas visitas ao passado servem para identificar raízes e, mais ainda, para suscitar e alimentar sonhos que, projetados no futuro, iluminem e orientem o presente. Por isso, recordo o nascimento do nosso Fundador com o desejo de acolher e dar vida ao sonho dele e nosso.

Uma das principais marcas da vida e do ministério do Pe. Berthier é sua atenção a todos os grupos de pessoas. Ainda jovem, com 23 anos de vida, escreveu um livro para ajudar as mães cristãs a viverem sua vocação específica e a educar seus filhos numa perspectiva cristã. E depois não parou mais: escreveu livros direcionados aos jovens, às jovens, aos homens, às crianças, aos vocacionados, aos religiosos e religiosas, aos padres... E não cansava de insistir: uma missão nunca será frutífera se deixar em segndo plano os homens e as crianças...

Uma segunda marca desta vida plena de espírito evangélico e amor pela Igreja é a paixão pela formação à vida religiosa e missionária. A este ministério o Pe. Berthier dedicou quase três décadas de sua vida. Para dar carne e sangue a esta paixão, quis conhecer novas experiências, ousou tomar iniciativas inéditas, situou-se ao lado dos formandos e no nível deles, partilhou com eles os trabalhos, mesmo os mais duros, fez-se tudo para todos... E sem esquecer o acompanhamento sério e competente de outras pessoas na realização da  vocação.

Quando jovem diácono da diocese de Grenoble, Berthier sentiu-se seduzido pela vida religiosa, assim como lhe foi mostrada na pequenez e simplicidade da nascente comunidade dos Missionários Saletinos. Mais tarde, ressoou no seu grande coração os contundentes apelos do Papa Leão XIII, que sacudiam a Igreja e pediam um novo despertar missionário. Mesmo sem jamais ter pisado uma “terra de missão”, a mente e o coração inquieto do Pe. Berthier habitaram todas elas. E ele não descansou enquanto não reuniu em torno de si um grupo de jovens dispostos a ir "àqueles que estão longe".

Aos 55 anos de idade, e mesmo sem contar com uma saúde robusta, Pe. Berthier deixou sua França amada e refugiou-se na Holanda, então um oásis do catolicismo, para realizar seu sonho de formar missionários eoferecê-los às necessidades apostólicas da Igreja. Sendo já autor de dezenas de livros, sua bagagem não passava de um pequeno baú e uma sacola. Esta simplicidade, que impressionou um cardeal amigo, prosseguiu e amadureceu em Grave, onde, até à morte (1908) dividiu com seus discípulos o refeitório, o dormitório, o trabalho, a sala de estudos, a pobreza e os sonhos, enfim: tudo!...

Serão estas apenas “marcas do que se foi”, como diz a conhecida canção que entoamos no final do ano? Ou serão também traços dos “sonhos que vamos ter”, da utopia que orienta nosso caminhar, quase dois séculos depois? De minha parte, creio que a atenção às necessidades e possibilidades de cada pessoa e grupo, a paixão pelas missões, a busca de uma pedagogia inovadora, a simplicidade e a proximidade em relação ao povo, são preciosos elementos na consolidação da vida cristã, religiosa e apostólica também no tempo que se chama hoje.

Itacir Brassiani msf