quarta-feira, 5 de setembro de 2012

23° Domingo do Tempo Comum


“Ele faz os surdos ouvirem e os mudos falarem.”
(Is 35,4-7; Sl 145/146; Tg 2,1-5; Mc 7,31-37)

Estamos no mês de setembro, dedicado à Palavra de Deus. Somos todos/as interpelados/as a abrir nossos ouvidos a um Deus que continua falando palavras que despertam e conduzem à vida plena. Não se trata de voltar a atenção a simples textos codificados, por mais belos e profundos que sejam. O essencial mesmo é manter com Deus uma relação dialogal. Mais que adoração e louvor, ele espera de nós escuta e resposta. Que o Senhor toque e abra nossos ouvidos e solte nossa língua, como fez com o personagem do evangelho de hoje, para que não sejamos como os discípulos que, tendo olhos e ouvidos perfeitos, não conseguem ver e ouvir a novidade realizada por Jesus Cristo (cf. Mc 8,18). Oxalá possamos provar e proclamar com a vida que a Palavra de Deus é como a chuva que lava e como o fogo que abrasa: passando por nós ela sempre deixa um sinal de mudança.
“Javé abre os olhos dos cegos e endireita os encurvados.”
O ditado popular diz que fé cega é faca amolada. E a experiência demonstra que todos as instituições e movimentos religiosos são humanos e históricos, não isentos de ambiguidade e contradição. O próprio cristianismo não escapa a esse condicionamento. Herdamos do cristianismo dos dois últimos séculos uma religião privatizada, marcada por um dualismo que opoõe corpo e alma, ignora a história e prioriza o perdão dos pecados morais e a salvação espiritual da alma.
A Palavra de Deus nos revela outros elementos irrenunciáveis à fé que recebemos da comunidade apostólica. E um deles é o casamento inseparável entre fé e vida. O próprio conceito de salvação tem um conteúdo bem concreto, que Isaías descreve poeticamente: “Então os olhos dos cegos vão se abrir, e se abrirão também os ouvidos dos surdos; os aleijados saltarão como cervo e a língua do mudo cantará, porque jorarão águas no deserto e rios na terra seca...”
A salvação é a tranformação de uma situação de carência e míngua em abundância e vitalidade. Quando uma religião se perverte em pura doutrina ou moral inflexível, torna-se uma perigosa faca amolada que ameaça e fere. Quando uma religião esconde suas próprias contradições, corre o risco de se tornar intolerante e absolutista. E quando uma Igreja se refugia em falsos espiritualismos e intimismos, trai sua vocação humanizadora e fazendo da indiferença uma virtude.
“Tudo ele tem feito bem.”
A fé é força que gera vida. A presença de Deus é dinamismo de mudança. A Palavra de Deus está ali para testemunhar que ele ouve clamores, conhece sofrimentos, abre os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos, desce para fazer subir, congrega os dispersos, acolhe os desprezados, ressuscita os mortos. O cristianismo não é formol para conservar corpos mortos mas sementeira na qual germina a vida. E certamente este dinamismo de mudança começa nas pessoas, começa em nós.
No trecho do Evangelho proposto neste domingo, Marcos nos conta que Jesus vai a Sidônia, passa por Tiro e chega até nossa casa e nossas comunidades. Também hoje ele quer tocar com sua mão a língua daqueles/as que falam com dificuldade e curar o ouvido de quem não consegue ouvir os outros. E Jesus começa por curar nossa dificuldade de escutar e entender sua Palavra e de ouvir nossos irmãos e irmãs com despojada atenção.
Às vezes temo que as propostas pastorais que insistem no aumento do tempo dedicado à oração (frequentemente repetitiva) tem como objetivo evitar que escutemos a Palavra viva de Deus. Ora, afé em Jesus Cristo é um processo de adesão cada vez mais profunda que nos leva ao encontro da nossa verdadeira humanidade: escuta, abertura, acolhida, compaixão, partilha, comunhão, cooperação. É um caminho que restaura em nós a imagem de Deus segundo a qual fomos criados/as.
“A fé que tendes em Jesus Cristo não deve admitir acepção de pessoas.”
Marcos nos apresenta Jesus percorrendo caminhos que, apra algumas pessoas, parecem estranhos. A região de Tiro, Sidônia e da Decápole eram habitadas por pagãos. E com a passagem de Jesus brilham novas possibilidades de vida para a filha de uma mulher nascida na Fenícia e para um surdo-mudo anônimo. Em sua peregrinação no santuário das dores e esperanças humanas, Jesus sempre dá prioridade absoluta aos últimos da escala social, aos pobres e desprezados.
São muitas as pessoas que ainda hoje têm dificuldade de engolir esta opção preferencial de Jesus pelos últimos. Não falta inclusive gente de fé aparentemente ilibada que desejaria excluir da bíblia textos como este de São Tiago, que pede que em nossas comunidades  não façamos distinção de pessoas em favor dos ricos e nobres. “Não foi Deus que escolheu os que são pobres aos olhos do mundo para torná-los ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu àqueles que o amam?”
“Efatá! Abre-te!”
A lógica de Deus nos parece paradoxal. Não entra nos nossos ouvidos, não entra na nossa cabeça. Acolhendo um pagão doente e necessitado e tocando seus ouvidos e sua língua, Jesus despreza as prescrições religiosas e sanitárias. Jesus age fazendo uso da própria salivam mesmo sabendo que a saliva era considerada contagiosa e nojenta, como os excrementos humanos. Jesus rompe a distância, toca fisicamente o doente, o contágio é revertido e o surdo-mudo é curado.
Mas Jesus faz questão de não agir sob os refletores e câmaras, sempre sedentos de imagens capazes de impressionar. “Jesus se afastou com o homem para longe da multidão...” Faz o contrário de muitos que hoje, em nome de Jesus, transformam a fé em espetáculo e inventam curas ao vivo e a cores, escarnecendo dos doentes, manipulando a fé do povo necessitado e extorquindo deles os poucos recursos que lhes sobram.
Estamos um pouco como aquele homem que se comunicava com dificuldades. Nossos ouvidos parecem surdos às Palavras que escapam da nossa lógica e questionam nossos interesses. Nossa língua parece presa, especialmente quando se trata de recriar o Evangelho da liberdade e da humanização. Precisamos que Jesus Cristo toque nossos ouvidos, coloque sua saliva na nossa língua, converta a nossa mente e libere a nossa comunicação.
“Quanto maisele insistia, mais eles o anunciavam.”
Diante da compaixão de Jesus por dois pagãos e da aurora de uma nova vida para eles, a multidão ficou entusiasmada. Ela via com os próprios olhos que Deus abre os olhos dos cegos, endireita os encurvados, protege os estrangeiros, sustenta os órfãos e as viúvas, como celebra o Salmo 145/146. Estava impressionada com a liberdade de Jesus frente ao código de pureza e de honra, que conferia status e honra a alguns e desprezava outros.
E então de pouco adiantou a recomendação para que não espalhassem o que estavam presenciando. “Quanto mais ele recomendava, mais eles pregavam.” Não é possivel calar diante de tamanha liberdade frente os costumess e tradições que discriminam e de tão profunda humanidade frente às pessoas desprezadas. “Jesus faz bem todas as coisas.” A proclamação do Evangelho brota naturalmente das profundezas da alma das pessoas que o experimentam.
“Coragem! Nada de medo!”
Jesus, tu és compassivo e perfeito em tudo o que fazes e verdadeiro em tudo o que dizes. Visitas a região de Tiro e de Sidônia e em qualquer rincão perdido e desprezado deste mundo vens ao encontro de quem perdeu a capacidade de escutar e a coragem de falar. E, com gestos discretos e firmes, abres nossos ouvidos e libertas nossa palavra. Não podemos calar esta Boa Notícia, mesmo quando seu anúncio provoca riscos. Hoje te pedimos: envia à Igreja teu Espírito de liberdade, a fim de que ela possa vencer o velho e terrível hábito de honrar os ricos e poderosos e não se preocupar com os empobrecidos e injustiçados. Abre nossos ouvidos à tua santa Palavra, para que não desistamos de crer e de esperar o belo e santo dia em que os estropiados dançarão alegremente, a língua dos mudos explodirá numa solene melodia coral e o duro chão das instituições será regado e amolecido pela água benfazeja. Que teu corpo e sangue doados em sinal de aliança nos alimentem e ajudem a transformar em lavoura e jardim a terra hoje ocupada pelos chacais. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Nenhum comentário: