quarta-feira, 12 de setembro de 2012

24° Domingo do Tempo Comum


Que Deus abra hoje nossos ouvidos à  sua Palavra.
(Is 50,5-9; Sl 114/116A; Tg 2,14-18; Mc 8,27-35)
Em pleno mês dedicado à Palavra de Deus, somos convidados/as a dizer, como o profeta Isaías: “O Senhor Javé abriu os meus ouvidos e eu não fiz resistência nem recuei.” Como discípulos e discípulas na estrada longa e bela estrada do seguimento, precisamos pedir a cada manhã que o Senhor abra nossos ouvidos e que sejamos capazes de acolher sua Palavra e fazer dela a luz dos nossos passos, mesmo quando nos indica rumos e práticas deveras exigentes. É dessa escuta atenta, inteligente e despojada que pode brotar um anúncio correto e uma prática coerente. Infelizmente sobre Jesus se diz muita coisa inconsistente e incoerente.  E pretende-se separar a fé do serviço aos pobres. Daí a importância de levar a sério a pergunta que ele nos dirige hoje: “E vocês, quem dizem que eu sou?”
“No caminho, ele perguntou aos discípulos...”
Como os cristãos das comunidades dos Atos dos Apóstolos, gostamos de falar da vida cristã como um caminho de seguimento de Jesus. Há tempo estamos neste caminho, e não vamos sozinhos. Chegamos onde estamos atravessando trechos sombrios, passando por encruzilhadas, enfrentando desafios, mas também experimentando momentos divinamente luminosos e consoladores. Como peregrinos/as inquietos/as num mundo indeferente e às vezes agressivo, nós mesmos levantamos perguntas e somos interpaldos por todos os lados.
É uma experiência semelhante àquela dos discípulos, narrada hoje por Marcos. Com Jesus, eles atravessavam a região de Cesaréia de Filipe, lugar-símbolo da submissão de Herodes ao imperador romano e de capitulação frente à cultura grega. E nessa travessia Jesus provoca os discípulos a fazerem uma avaliação da sua pessoa e sua missão. “Quem dizem os homens que eu sou?” Segundo os discípulos, as resposta concidiam no caráter indubitavelmente profético da vida de Jesus: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; outros ainda, que és um dos profetas.”
“E vós, quem dizeis que eu sou?”
A fé parte do testemunho e da palavra daqueles/as que nos precederam, mas não se esgota nisso. O que dá fundamento e sustentação à fé cristã é uma experiência particular do mistério de Deus em Jesus Cristo e a adesão pessoal ao seu caminho, ao seu projeto. É a isso que acena a pergunta que Jesus dirige aos discípulos em pleno caminho: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ou, em outras palavras: o que andais falando sobre mim?
São muitas e variadas as nossas falas sobre Jesus. E algumas infelizmente têm pouco a ver com o que ele é. Refiro-me às pregações e catequeses que insistem num Cristo apresentado como rei e todo-poderoso, como se quanto mais poder alguém exerce mais próximo de Jesus está. E temos também discursos que desencarnam e divinizam Jesus, reduzindo-o a um espírito divino preocupado com a salvação das almas, como se o caminho da fé pudesse ignorar a história e desviar da humanidade.
A resposta à pergunta de Jesus não pode ser teórica. A fé é uma questão de linguagem mas também de ação. Crer em Jesus significa aceitá-lo como definidor das nossas relações e como elemento fundamental na construção das relações sociais. É muito mais que aceitar de forma resignada e inconsequente alguns conteúdos religiosos. Fico incomodado quando alguns pregadores lamentam que hoje as pessoas crêem em Jesus Cristo mas não aceitam a Igreja. Será que não é pior aceitar e defender a Igreja sem crer de forma consequente na pessoa e na prática de Jesus?
“Tu és o Messias, o Cristo!”
Parece que a pergunta direta de Jesus provocou um silêncio e um calafrio geral. Então Pedro responde em nome de todos: “Tu és o Messias, o Cristo.” A resposta parece formalmente correta, mas nela há algo de errado ou, pelo menos, de perigoso, pois “Jesus proibiu severamente que eles falassem a alguém a respeito dele.” Não se trata de uma simples recomendação, mas de uma probição severa, de uma intimação semelhante à ameaça de Jesus contra o espírito mau (Mc 1,25), à proibição de anunciar quem ele é (Mc 3,12) e à ameaça ao vento e ao mar (Mc 4,39).
Onde está o problema da resposta aparentemente ortodoxa de Pedro? O problema é que, mesmo reconhecendo Jesus como Messias, Pedro ainda se move numa tradição nacionalista e ligada ao poder. Ele reconhece que Jesus é mais que um profeta e imagina que a revolução esteja à porta. Sua profissão de fé está enredada nas malhas do triunfalismo e descansa na imagem de um Deus que se caracteriza pela concentração e pelo uso do poder em favor de um povo particular.
E aqui está a questão-chave da compreensão e do anúncio de Jesus Cristo. O título de senhor é uma camisa-de-força estreita e inadequada, que não dá conta de outros traços de Jesus: irmão, servo e profeta, cordeiro de Deus, filho do homem, etc. Confesso que me soa incômoda e até ofensiva a repetição dos conceitos senhor, rei e todo-poderoso em nossas liturgias e catequeses. Partindo do Evangelho, é preciso fazer uma limpeza geral nessa linguagem e falar de Jesus de modo adequado.
“E começou a ensinar-lhes que era necessário o Filho do Homem sofrer muito...”
Com seu realismo humano e clarividente, Jesus censura nossas fantasias de sucesso e de poder. Ao mesmo tempo em que proíbe severamente que os discípulos falem que ele é o Messias, Jesus fala abertamente que o Filho do Homem deve sofrer muito, e experimentar a rejeição e a morte. Observemos que Jesus substitui o título de Messias por filho do homem (ou ser humano), vinculando-se assim profundamente à humanidade e suas aspirações.
Dizendo que o filho do homem deve sofrer, ser rejeitado e morto, Jesus não afirma que essa é a vontade de Deus ou o destino humano. E isso fica claro quando diz quem provoca o sofrimento: os anciãos, os chefes dos sacerdotes e os doutores da lei. Enquanto a idéia messiânica de Pedro contém necessariamente o triunfo e o nacionalismo, a via assumida por Jesus leva ao confronto político com a ordem estabelecida e à rejeição. O sofrimento é o custo da luta da sua humanização.
“Pedro, chamando-o de lado, começou a censurá-lo.”
Aceitar isso não é coisa fácil, nem para Pedro nem para nós. Tanto que Pedro levou Jesus para um lado e começou a repreendê-lo. E isso não é apenas uma postura de quem quer bem e, por isso, defende a integridade física de um amigo ou líder. Aqui se revela a incapacidade de passar de um messianismo nacionaislta e triunfalista a um caminho de compaixão e serviço, a dificuldade de passar das declarações ortodoxas para as práticas consequentes.
Marcos diz que Jesus reagiu olhando para os discípulos e repreendendo Pedro. Para Jesus, Pedro estava agindo como tentador e divisor, com mentalidade limitada e sectarista. Na atitude de Pedro ressoa a contestação discreta ou violenta da via do serviço e da compaixão trilhada por Jesus. E Jesus diz que quem pensa assim é porta-voz do Satanás,  rejeita a Palavra de Deus e se apega às tradições humanas (cf. Mc 7,1-13). É alguém que diz ter fé mas não age de modo correspondente (Tg 2,14-18).
“Se alguém quer vir após mim...”
Na terra da bajulação e da subserviência, Jesus ousa propor: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar sua a sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la.” E isso é mais que um simples apelo à humildade. No império romano a cruz tinha um significado bem preciso: era instrumento de execução dos dissidentes e escravos, das pessoas sem-direitos. A pessoa condenada à cruz tinha que carregar o próprio instrumento de suplício. É nesse horizonte que precisamos localizar a festa da Exaltação da Cruz e de Nossa Senhora das Dores.
Jesus, força de Deus na fragilidade humana, Palavra divina nas tramas da história, mestre do serviço num mundo de senhores. Mantém viva nossa promessa de receber teu batismo, de enfrentar os rechaços e de seguir teus passos. Ajuda-nos a negar nossos interesses egoítas para não renegar a ti, fonte de vida sem limites. Convence-nos de que salvar nossa própria vida é um mau investimento, e que arriscá-la pelo Reino é tudo ganhar. Converte-nos, e também à tua Igreja, para que não tenhamos a descabida pretensão de te ensinar como ser mais prudente e diplomático. Abre hoje nossos ouvidos à tua santa Palavra e não nos deixes voltar para trás. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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