quarta-feira, 19 de setembro de 2012

25° Domingo do Tempo Comum


Que Palavra vocês andam escutando no caminho?
(Sb 2,12.17-20; Sl 53/54; Tg 3,16-4,3; Mc 9,30-37)
Na semana que estamos terminando, os desfiles e manifestações tradicionalistas ocuparam as avenidas do RS e ocuparam as telas da televisão. Durante toda uma semana os gaúchos aferrados a uma certa tradição promoveram eventos gastronômicos e culturais. O que se vê é um verdadeiro culto a um sujeito social idealizado, estereotipado e desenraizado da história, denominado gaúcho. Mesmo respeitando e até apreciando alguns aspectos dessa tradição, não podemos deixar de perguntar onde estão os índios, legítimos habitantes destas terras? E os negros, escravizados nos campos e nas charqeuadas? E os errantes sem-terra, caçados ainda hoje como perigosos e criminosos? Será que eles estão presentes nas ‘charlas’ e ‘tertúlias’ dos ‘galpões’? Ou será que o Rio Grande do Sul se resume aos desbravadores, brancos, bem-sucedidos e vitoriosos? Antes deles tudo aqui era bravio? pergunta de Jesus se dirige também a nós: “Sobre o que vocês estavam conversando na estrada e nos ‘galpões’?”
“Jesus e seus discípulos atravessavam a Galiléia. Ele ensinava seus discípulos...”
Um pouco antes da cena relatada pelo evangelho de hoje, alguns discípulos haviam visto Jesus totalmente transfigurado, e ouvido uma voz que lhes pedia que escutassem o que ele dizia. Por sua vez, a multidão acorria a Jesus, impressionada pela cura de um menino mudo. É neste contexto que Jesus, voltando para a Galiléia, não queria que ninguém soubesse onde ia, “porque estava ensinando seus discípulos”. A difícil formação dos discípulos e discípulas ocupava Jesus inteiramente.
E não é para menos. Os discípulos/as haviam fracassado na tentativa de curar um menino mudo. Faltava-lhes a abertura e a confiança em Deus, cultivadas especialmente na oração. Mas não era só isso. Eles só sabiam confiar em si mesmos e corriam atrás de ações poderosas e lugares de honra. Por mais que Jesus insistisse, eles não conseguiam admitir um Messias que compartilhasse a humana vulnerabilidade, que não fosse bem sucedido e padecesse a morte.
Por isso hoje Jesus repete o ensinamento que ouvimos no domingo passado: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, quando estiver morto, depois de três dias ele ressuscitará.” Parece, porém, que o resultado não foi muito animador. “Os discípulos não compreendiam o que Jesus estava dizendo.” E o pior, “tinham medo de fazer perguntas”. Medo de enfrentar a verdade, de descobrir as exigências do caminho que leva à liberdade e à vida plena.
“O que discutíeis pelo caminho?”
O mais impressionante é que, além de não copreender os repetidos anúncios da rejeição e da humilhação e de demonstrar medo de perguntar, os discípulos estão envolvidos com outras questões complicadas. Jesus estava atento às conversas de estrada, e quando chegam em casa, em Cafarnaum, pergunta-lhes: “Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?” Ninguém se atreve a dizer que discutiam sobre qual deles seria o maior.
Ser o primeiro, o maior, o mais importante: essa é a única questão que interessa àquele grupo de discípulos e discípulas chamado a seguir Jesus. E é infelizmente isso que ainda hoje guia a maioria das nossas escolas e até seminários. Será que não é isso também o que muitos pais e mães sonham para seus filhos e filhas? E não é a busca de uma vida bem-sucedida, o sonho de ser um padre pop-star ou de ser agraciado com a mitra episcopal que anima muitos dos nossos vocacionados e religiosos?
“De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós?”
Ser o primeiro é o que interessa, o resto não tem pressa. E isso a qualquer custo. A fé, o trabalho, o estudo, a disciplina e os relacionamentos valem enquanto contribuem para este objetivo. O próprio nome de Deus acaba sendo subordinado a este fim e se torna um ídolo. E a Igreja então se torna um palco onde muitos querem brilhar e uma arena de disputas nada evangélicas. Vale tudo nesta luta predatória para ser o primeiro, inclusive trapaças, meias-verdades, mentiras e traições.
Tiago percebe que na sua comunidade existia “ciúme amargo e espírito de rivalidade”, uma pretensa sabedoria rasteira e animalesca, diabólica até. E ele sabe isso nada tem a ver com a sabedoria cristã, que é pacífica, humilde, misericordiosa, alheia a discriminações hipocrisias. Ele pergunta: “De onde surgem os conflitos e competições que existem entre vocês? Vocês cobiçam, e não possuem; então matam. Vocês têm inveja e não conseguem nada; então lutam e fazem guerra.”
Neste horizonte – ou melhor, nas estreitas cercas deste curral – realmente não é possível entender que Jesus fale em ser rejeitado, perseguido, execrado e morto, como o Sepé Tiaraju da nossa história e o Negrinho do Pastoreio das nossas estórias. Um Deus crucificado no meio de dois proscritos – um índio e um negro? – e uma proposta de solidariedade com os sem-direitos não têm lugar na ideologia do tradicionalismo, na teologia da prosperidade e na luta inglória para ser o primeiro.
“Pelo caminho tinham discutido quem deles era o maior.”
Hoje as lutras fraticidas para ser o maior e o primeiro saíram do ambiente familiar e eclesial e se expressam em muitos outros espaços, começando pelo jornalismo denuncista e subserviente a senhores mais ou menos conhecidos; passando pela corrida armamentista que ressuscita inclusive na América Latina; chegando às disputas entre igrejas e às guerras entre países. O medo de não ser o primeiro, de ser um segundo ou, pior ainda, o último, enlouquece. E mata.
Não é essa a perspectiva proposta e trilhada por Jesus Cristo. É importante que levemos a sério as lições daquele que chamamos de mestre e senhor. No clima aconchegante da casa em Cafarnaum ou no ambiente sereno das nossas igrejas Jesus desmascara nossas aspirações de poder, coloca um fim às nossas discussões sobre quem é o/a maior. Insistindo que o seu caminho passa pela rejeição e recorrendo ao símbolo das crianças, ele aponta claramente para outra direção.
“Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos, aquele que serve a todos!”
Jesus fala claro e direto: “Se alguém quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos.” O último é o lugar que ninguém disputa e, por isso, ninguém corre o risco de perdê-lo, pois são poucos os que o disputam. Mas isso não quer dizer auto-desprezo ou passividade: é a verdadeira grandeza que se mostra na ação de servir. O próprio Jesus não se mostra passivo, mas não acha desonroso assumir o lugar do escravo doméstico, inclinar-se diante da humanidade e lavar seus pés.
Na sua catequese aos discípulos, Jesus lança mão de um recurso visual. “Jesus pegou uma criança e colocou no meio deles. Abraçou a criança e disse: “Quem receber em meu nome uma dessas crianças, estará recebendo a mim.” Esse gesto não tem nada de um certo romantismo que idealiza as crianças, projeta nelas os sonhos frustrados das gerações anteriores e as trata como verdadeiras majestades. Por isso, para os discípulos o gesto de Jesus é absolutamente chocante.
No mundo judaico do primeiro século e do ponto de vista do status e dos direitos, as crianças faziam parte dos grupos situados no nível mais baixo da escala social. Eram praticamente nada, não existiam como sujeitos de direitos. Ocupavam o mesmo lugar subalterno e marginal reservado aos negros na cultura escravagista do Rio Grande do Sul, aos índios nos nossos livros de história, aos analfabetos e empobrecidos na sociedade brasileira atual.
“A sabedoria que vem do alto é pura, misericordiosa, sem parcialidade e sem fingimento.”
É com as crianças, símbolos desse sujeito social subalterno e marginalizado, que Jesus se didentifica. A acolhida e o amor a ele se decide na acolhida e no amor aos últimos. Quem os recebe, hospeda Jesus Cristo e o Pai. E isso não é um aspecto marginal do seu ensinamento ou uma eventualidade em sua vida. É isso que celebramos em cada  eucaristia. É isso que nos recorda sua santa Palavra. É isso que veio sublinhar Nossa Senhora na sua manifestação em La Salette (19.09.1846).
Jesus de Nazaré, filho do homem, tu compartilhas conosco origem e destino. Devemos dizer com sinceridade que tua Palavra e tuas opções também desconcertam a nós, envolvidos que estamos em disputas fratricidas e desjos inconfessáveis. Mas aqui estamos de novo, diante de ti, porque tua Palavra é a única que merece credibilidade, e a vida gratuita e solidariamente doada é a única que vale a pena. Ajuda-nos a entender a lição da criança! Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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