quarta-feira, 26 de setembro de 2012

26° Domingo do Tempo Comum


A Palavra de Deus está acima das nossas Igrejas!
(Nm 11,25-29; Sl 18B/19B; Tg 5,1-6; Mc 9,38-48)
Em nossos discursos e pregações é recorrente a referência ao caráter anti-evangélico da cultura predominante, aos ataques de uma mentalidade laicista e até a iniciativas humanistas alheias à fé cristã e até às possíveis ameaças que o crescimento das Igrejas evangélicas traria à autêntica fé cristã. A impressão que passamos é de que o mundo se divide entre os bons, que são aqueles/as que aceitam explicitamente Jesus Cristo e a Igreja, e os maus, que são as pessoas religiosamente indiferentes e as igrejas pentecostais. Daí a importância de escutar e acolher com abertura e inteligência a Palavra de Deus proposta na liturgia de hoje. Precisamos ultrapassar o muro dos ciúmes e invejas e dar as mãos a tantos grupos e Igrejas que cooperam para expulsar os males deste mundo e construir um outro mundo. E é bom abrir nossos olhos para as contradições e traições que costumam se esconder em nossas próprias comunidades eclesiais.
“Nós o proibimos, porque eles não andam conosco.”
O mal da inveja e a tentação da exclusividade da graça são antigos e difíceis de erradicar. A tradição dos hebreus conservou na memória um fato interessante, ocorrido na travessia do deserto. O Espírito de Deus não se limitou a atuar mediante as lideranças reconhecidas e envolveu outras pessoas que não faziam parte do conselho oficial. Moisés reagiu de modo maduro e lúcido diante da sugestão de Josué, que pedia para proibi-los de falar em nome de Deus: “Você está com ciúme por mim? Oxalá todo povo de Javé fosse profeta e recebesse o Espírito de Javé!”
Às vezes tenho a impressão de que, nas frequentes e superficiais críticas que determinadas autoridades da Igreja católica fazem às Igrejas irmãs (que chamam indevidamente de ‘igrejas separadas’ ou, pior ainda e pejorativamente, de ‘seitas’), se esconde um maldito ciúme da criatividade e da capacidade que têm de despertar a fé nas pessoas de hoje. Imaginam que Jesus Cristo seja católico e que seu Evangelho seja propriedade exclusiva da nossa Igreja. Muitos chegam a suspirar: “Oxalá os governos tomassem uma providência contra essa gente mal-intencionada...”
Coisa semelhante ocorre na relação com movimentos e iniciativas sociais, políticas e culturais que agem sem referência explícita à fé e sem licença da Igreja. Causa-me mal-estar ler nos últimos documentos papais constantes referências aos limites intrínsecos dessas iniciativas humanitárias, como se fossem elas a causa da fome, da opressão e das guerras, que, na verdade, nascem na mente de pessoas que aparentam fé ilibada e agem publicamente em nome dela.
“Não os proibais...”
A fato narrado pelo evangelho de Marcos traz esta questão para o centro da nossa espiritualidade. É paradoxal que os mesmos discípulos que resistiam a seguir Jesus pelas vias da da compaixão e não haviam conseguido expulsar um espírito mau que amordaçava um jovem (cf. Mc  9,14-29) queiram proibir que outros o façam . “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque não nos segue.” Parece que eles queriam manter o monopólio do exorcismo como status e não como seviço à vida. E desejavam que todos seguissem a eles, os discípulos oficiais, e não o próprio Jesus.
A resposta de Jesus chama à abertura e à colaboração ecumênica: “Não lhe proíbam, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim. Quem não está contra nós, está a nosso favor.” Quem tem um coração grande, um olhar abrangente e uma fé confiante não imagina ter concorrentes por todo lado. Só uma mente imatura e institucionalizada pode se mostrar incapaz de reconhecer o bem que outros fazem e alimentar o desejo de que todos peçam sua aprovação para qualquer iniciativa benemérita.
Por que esta incapacidade de muitos de nós em respeitar, valorizar e cooperar com as demais Igrejas cristãs? Será que aquilo que temos em comum – a fé em Jesus Cristo, o Evangelho, o Batismo, a Eucaristia e o martírio – não são mais importantes que as picuinhas que nos diferenciam? Por que, 40 anos depois da abertura ecumênica pedida pelo Vaticano II, nossos passos são ainda tão tímidos e desconfiados? Se eles estão a favor do Evangelho e de Jesus Cristo, poderiam estar contra nós?
“Quem não é contra nós, está a nosso favor.”
A mesma reflexão se aplica à nossa relação com os movimentos sociais e culturais. Passou o tempo de ver em tudo o gérmen da discórdia e do confronto. O Vaticano II está aí, convidando-nos a avaliar positivamente as iniciativas autônomas da sociedade. Projetos que nascem fora das sacristias e das bênçãos eclesiásticas – e às vezes em aberta oposição a elas –  trazem a secreta marca do Espírito de Deus e realizam um bem enorme à humanidade. E até mesmo um copo de água servido a uma pessoa sedenta não passa sem reconhecimento e recompensa aos olhos de Deus...
É animador perceber que em muitos lugares, no Brasil e pelo mundo a fora, nossas comunidades eclesiais vêm trabalhando em parceria e rede com diversos movimentos e organizações sociais, mesmo sem ignorar seus limites e contradições. É estimulante e jubiloso escutar a palavra oficial da Igreja , como em Puebla, reconhecendo que na raiz dos movimentos que lutam pela libertação do nosso povo está o Espírito de Deus. Onde há solidariedade e serviço, aí está ativo o Espírito de Deus. São as práticas concretas, e não o nome ou os ritos, que realizam o Reino de Deus.
“E quem fazer cair um só destes pequeninos...”
Sejamos inceros e verdadeiros: o bem e a justiça podem vir de fora da Igreja, e a traição e o escândalo podem vir de dentro dela. Muitos dos problemas que nossa Igreja enfrenta hoje são gerados e alimentados no seu próprio ventre. A ruptura com o Evangelho e muitas práticas que o negam surgem e são toleradas em nossas comunidades eclesiais. É lamentável quando a diplomacia se sobrepõe ao Evangelho e as ‘razões de estado’ têm prioridade sobre a profecia e a solidariedade.
Jesus enfrenta corajosamente este problema vivido pelas comunidades cristãs. Sob a pressão da perseguição, alguns abandonavam o Evangelho, o que era uma pedra de tropeço que afastava muitos outros ‘pequeninos’. O corpo eclesial tinha membros que escandalizavam. E a proposta de Jesus é radical: vigilância e firmeza. É melhor ser uma comunidade pequena e coerente que grande e cheia de contradições. Ela não pode limitar ou perder sua missão de ser sal, de fazer a diferença. As traições e incoerências precisam ser evitadas, cortadas e queimadas.
“Vossa riqueza está apodrecendo...”
Uma destas contradições que escandalizam os pequeninos é hoje o acúmulo de riquezas à base de relações injustas. Aliás, toda riqueza acumulada e subtraída ao serviço do bem-estar da humanidade é injusta. E não se trata apenas de riquezas acumuladas por pessoas ou famílias privadas, mas também de capital acumulado por comunidades, paróquias, dioceses, congregações e Igrejas. Toda riqueza que não é partilhada ou não está a serviço do anúncio do Evangelho aos pobres é usurpação.
São Tiago enfrenta esta questão com palavras muito duras. Dirgindo-se aos ricos ele diz: “Suas riquezas estão podres, suas roupas foram roídas pelas traças. O ouro e a prata de vocês estão enferrujados, e a ferrugem deles será testemunha contra vocês, e como fogo lhes devorará a carne.” A questão não é apenas a riqueza em si mesma, mas o modo de consegui-la: “Vejam: os salários dos trabalhadores que fizeram a colheita nos campos de vocês; retido por vocês, este salário clama, e os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor...”
Em nome da coerência e da transparência, junto com a denúncia do acúmulo injusto e da idolatria do capital, precisamos de coragem para implantar na Igreja uma economia que viabilize e visibilize a solidariedade entre comunidades, movimentos, paróquias, dioceses e Congregações. Caso contrário, estaremos rompendo com a solidariedade interna, tolerando uma traição que continuará escandalizando e provocando sofrimento. Também este é um mal que precisa ser cortado pela raiz.
“O testemunho do Senhor é verdadeiro, torna sábios os pequenos.”
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras e Palavra que liberta e constrói relações ecumênicas e inclusivas: fecunda nossas palavras e corações com teu Espírito, a fim de que alcancemos a sabedoria e realizemos nossa missão no respeito, no apreço e na coorperação com aqueles que crêem diversamente mas cumprem, mesmo sem saber, tua vontade santa e libertadora. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

Nenhum comentário: