terça-feira, 8 de outubro de 2013

Missão e sinais dos tempos (3)

Estamos realizando nosso XIII Capítulo Geral. Na manhã do fia 7 de outubro, esteve conosco o Pe. Giulio Albanese, missionário e jornalista comboniano. Ele nos ajudou a refletir sobre a necessidade de ler os sinais dos tempos. Segundo este jornalista missionário italiano, é impossível pensar e projetar a missão hoje sem uma atenta e responsável leitura do tempo e do mundo que vivemos. O presente texto é a terceira parte desta reflexão.

A globalização: o mundo das finanças e do trabalho
Mas, no imaginário coletivo, a globalização é prioritariamente ligada ao campo econômico. Se trata de um processo de integração econômica mundial que comporta, além da eliminação das barreiras jurídicas, econômicas e culturais, a circulação de pessoas, coisas e bens econômicos em geral. De um lado, a globalização determinou a ampliação em escala internacional das oportunidades econômicas (oportunidades de investimento, de produção, de consumo, de poupança, de trabalho, etc.), particularmente em relação às condições de preço e de custo (arbitragem);  de outro, estimulou em máximo grau a concorrência nos setores inseridos nos setores acima nomeados, com uma forte tendência ao nivelamento dos preços e custos às condições mais convenientes em escala internacional.
Efetivamente, o incremento da interdependência entre operadores, unidades produtivas e sistemas econômicos situados em localidades e países geograficamente distantes fez com que os eventos econômicos que ocorrem num determinado lugar tenham repercussão, frequentemente inesperadas e indesejadas, em outros. As recentes manifestações sindicais, ligadas à recessão na Europa, acenderam o debate sobre essa questão.
É inegável que hoje, um pouco por toda parte, são impostos pesados sacrifícios aos trabalhadores. Frequentemente se repete que para ser competitivo no mercado deve-se imitar a qualquer custo o “modelo chinês” que, como se sabe, está arruinando os Estados Unidos. Mas se o “Império do Dragão” tem um PIB que cresce continuamente é porque lá a mão-de-obra tem custo de banana. Bastaria perguntar a alguns dos nossos empresários que deicidiram investir na China a custos verdadeiramente incríveis. Resumindo: hoje não existem mais regras que afirmem a primazia da política sobre o “business” e, no vazio jurídico deixado pelos sujeitos nacionais, emergem atores privados que agem como patrões absolutos.
Como cristãos, podemos nos resignar à supremacia (ditadura) do mercado, onde a produção a qualquer custo elimina todo e qualquer outro valor e gera, como escreveu o grande intelectual italiano Stefano Rodotà, “uma espécie de invencível direito natural”? Existem outras estradas e saídas percorríveis? Seria possível (e aceitável) que o sacrossanto direito ao trabalho, sancionado pelas grandes democracias, seja silenciado pelos defensores do liberalismo sem regras, que pretende se movimentar impunemente, sem regras inibidoras, com a convicção de que é possível fazer quebra-de-braço a qualquer preço em giro pelo mundo?
O que está em jogo é coisa muito importante porque, como contam os nossos missionários, cresce a injsutiça em todos os cantos da terra. O temor nasce também da perigosa soma, em escala planetária, dos custos excessivamente elevados dos produtos agrícolas, com efeitos devastantes sobre os setores mais pobres da população. A “revolta do pão” desencadeada no Norte da África, é uma boa demonstração disso. Se trata de uma crise econômica generalizada e persistente que priva milhões de pessoas, particularmente os jovens, do próprio posto de trabalho. A isso se acrescente o fato de que qualquer mínima variação dos preços e tarifas, dos custos dos combustíveis aos serviços de telefonia celular, incide de modo inexorável sobre os salários, já reduzidos a nada, da pobre gente. Ao mesmo tempo, muitos governos são obrigados a esvaziar o tesouro para enfrentar a despesa pública, que cresceu vertiginosamente com a crise financeira global e a incerteza de um “sistema” que faz água por todos os lados.
Há quem queira, também na Itália, que a economia no seu conjunto seja sempre e por todos os lados, um cão solto, mas estes são os resultados. Que seja claro: dos problemas globais que asfixiam o nosso pobre mundo e da mudança de época que eles revelam não podemos fugir simplesmente chamando de “contestadores” ou “agitadores” àqueles que tentam denunciá-los. Aqueles que pensam de um modo assim reacionário já tomaram a decisão de “lançar a toalha”, de entregar-se a uma leitura da globalização dependente das categorias impostas por certos “sacerdotes do deus capital”.
Portanto, como crentes precisamos saber ler e interpretar os fenômenos sociais produzidos pela globalização “com a inteligência e o amor que derivam da verdade – assim diz o Compêndio da Doutrina Social da Igreja – sem as preocupações impostas pelos interesses pessoais ou de grupo”, em vista de uma implementação correta das políticas econômicas. Dado que um governo global não é, ao menos no momento, uma hipótese realista, e não pode ser concebido como a projeção em escala mundial da soberania desse ou daquele país, seria desejável que o consenso das nações se dotasse de instrumentos capazes de humanizar a globalização.
Tentemos imaginar como seria a Organização Mundial do Comércio (OMC) se fosse dotada de uma estrutura tripartite, com representantes dos governos, dos empresários e dos trabalhadores, em condições de determinar conjuntamente suas políticas e programas. Exatamente porque se está jogando uma partida dificil, é indispensável garantir uma multiplicidade de sujeitos dotados de direitos, mediante regras compartilhadas que possam distribuir o poder na aldeia global entre quem o exerce e quem pode controlá-lo. Se o lucro for a única bússula, o risco é deveras grande. Eis porque a globalização é realmente uma realidade necessitada de redenção em vista do bem comum dos povos.
Infelizmente a leitura da globalização, que expus de modo suscinto mas, espero, suficientemente claro, não é aceita por todos. Existem não poucos católicos, na Itália e no mundo todo, que ainda não entenderam que esta questão não pode prescindir de um juízo evangélico. Em algumas consciências se opera uma espécie de dissociação entre o espírito cristão e as questões do mundo. Se, por um lado, se reconhece o primado da Palavra de Deus, por outro, creio que seja altamente pecaminoso fazer ouvido de mercador, sentir-se espiritualmente tranquilo quando em outras regiões do nosso planeta estão em curso dramas inimagináveis, como a velha crise na Somália ou a matança indiscriminada na Síria. Eis porque, também no âmbito da comunidade cristã, é urgente buscar e ativar estratégias que ajudem a tomar na mão os rumos da situação.
A tal propósito, é importante recordar que a constituição pastoral Gaudium et Spes não considera mais a Igreja como societas iuridicae perfecta, fechada na solidez e na coerência do próprio ordenamento jurídico, mas como uma realidade que se volta ao mundo, um mundo frequentemente distante e marcado pela secularização. Esta relação com o mundo é definida pela Doutrina Sociala da Igreja como “subsidiariedade”, princípio que, mesmo aparecendo no Direito Canônico, não encontrou nele uma assimilação plena, o que contraria, ao menos em parte, a proposta conciliar. Este espírito possibilita aos cristãos, enquanto cidadãos, tomarem parte ativa na solução dos probelmas de interesse comum. Estamos habituados a pensar, especialmente na Itália, que outro se ocupará dos problemas da coletividade, e já são mais de 150 anos que o “sistema-país” funciona desse jeito.
Em efeito, a alma da democracia representativa é a delegação, enquanto que o coração da subsidiariedade é a responsabilidade. A Itália, por exemplo, nasceu como Estado fortemente centralizado, baixando uma cortina administrativa e institucional sobre a rica variedade de autonomias pré-existentes. O artigo 5 da Constituição afirma que a República reconhece e promove as autonomias locais. Deste ponto partiu, há 64 anos, o processo que levou a Itália a ser aquilo que é hoje: com uma grande pluralidade de autonomias locais. Em 2001 foi introduzida na Constituição uma norma (o artigo 118, inciso IV) que deu início a uma operação de mudança do princípio segundo o qual o monopólio do interesse público está nas mãos das instituições em detrimento da cidadania. Nesta norma se diz que o Estado, as Regiões, as Cidades metropolitanas e as Províncias e Municípios favorecem a autonomia e a iniciativa dos cidadãos, indivíduos ou associações, para o desenvolvimento de atividades de interesse geral, à base do princípio de subsidiariedade.
O fato de que cidadãos privados tomem a iniciativa de cuidar de bens comuns não é uma novidade. A verdadeira novidade é a iniciativa autônoma: se existe autonomia, existe responsabilidade. Que este raciocínio seja estendido ao contexto da globalização, à “res publica” dos povos. O despertar dos cidadãos singulares faz com que possam surgir situações nas quais o interesse pessoal seja bastante relevante, como para os comerciantes que assumem o cuidado pelas ruas nas quais estão estabelecidos, com vantagens para todos, antes de tudo para eles mesmos. Noutros casos, entretanto, o interesse pessoal é mínimo, e prevalece o interesse geral, como na experiência do voluntariado, da cooperação internacional para o desenvolvimento dos povos, ou da adesão pessoal a iniciativas de defesa dos direitos humanos no Sul do mundo. Também essa é uma missão que os crentes não podem se permitir subvalorizar.

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