quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Missao e Sinais dos Tempos (4)

Sinais dos tempos: O fundamentalismo
Um outro sinal dos tempos com o qual devemos fazer as contas é o fundamentalismo. Também neste caso, há uma estreita relação com a globalização e, mais em geral, com os efeitos de uma sociedade em contínua transformação. Trata-se de uma tentativa particularmente vigorosa, sedutora e perigosa, de retornar aos princípios do passado, verdadeiros ou imaginários. Os agentes do fundamentalismo estão convictos de que se vivia melhor no passado, quando a sociedade era engessada por um conjunto de normas e pontos firmes que regulavam a vida das pessoas, quando se vivia sob a certeza de uma autoridade e de uma verdade absolutas.
Qual é a origem da expressão “fundamentalismo”? Hoje, esta expressão é usada profusamente, sobretudo pelos jornalistas, quase sempre referida a certos movimentos religiosos no âmbito do mundo islâmico, mas se esquece que sua origem se encontra historicamente numa corrente de pensamento que, no interior da Igreja batista, procurava se opor ao modernismo e ao racionalismo teológico que então se difundiam entre os fiéis evangélicos.
Na sua origem, o termo “fundamentalismo” não tinha o sentido negativo que o envolve hoje. Estava ligado à publicação, em 1909, de uma coletânea de 12 volumes de ensaios, entitulada “The Fundamentals”. Os textos atacavam as atividades da filologia, da história, da arqueologia e da crítica da escola exegética chamada “alta crítica”. Reivindicavam, ao contrário, a vontade de reafirmar de modo dogmático pontos irrenunciáveis da fé, definidos “fundamentals”, fundamentos, e correspondem também à afirmação da necessidade de uma fé facilmente compreensível ao indivíduo. Esta reivindicação tinha também uma perspectiva político-social, com uma forte crítica que se pode definir como “anti-intelectual” ou “anti-elites” (contra o perigo de uma sociedade ou de uma moral de advogados e filósofos). Característica deste pensamento fundamentalista era a reafirmação do valor literal do texto da Bíblia.
Sucessivamente, no decurso do século XIX, a expressão “fundamentalismo” se vulgarizou e adquiriu o sentido de todo ponto de vista – corrente de pensamento e prática no âmbito religioso – que insiste sobre a interpretação literal dos textos sagrados das grandes religiões, que apresenta marcas de movimento anti-modernista. Observe-se que cada fundamentalismo particular tem suas características específica e frequentemente está em aberto conflito com os demais.
Diante de uma questão tão crucial, que aqui e acolá é iluminada por relâmpagos sempre mais inquietantes, sobretudo depois do trágico acontecimento do 11 de setembro (entre islamismo e cristianismo), é importante esconjurar o perigo de forçamentos ou banalizações indevidas. Como lembra Youssef M. Choueiri, em um ensaio sobre a matriz islâmica deste fenômeno, o fundamentalismo “indica uma postura intelectual que pretende deduzir princípios políticos de um texto considerado sagrado”.
Em termos gerais podemos dizer que o fundamentalista, por presunção ou ignorância, partindo da convicção de que a existência humana tem um único modelo de referência, está fortemente convencido de que a sua visão de mundo deve ser importa a todas as consciências. Nesta perspectiva, o fundamentalismo não pode ser circunscrito ao mundo da Meia-Lua, pois está presente sob diversas etiquetas e com diversas variações em muitos sistemas de crenças. As mortes perpetradas no estado indiano de Orissa, assim como uma certa intransigência no âmbito de algumas seitas cristãs, tendem a uma concepção obtusa da existência, subjugando toda alteridade ao ponto de sufocar totalmente, conscientemente ou não, qualquer dimensão que parta de paradigmas diferentes.  Portanto, é necessário vigiar a linha de demarcação, tênue ou ambígua, de certa comunicação que deseja sempre e em todos os modos simplificar realidades complexas mediante a espetacularização ou a ênfase exagerada.
Felizmente, em toda tradição religiosa existem crentes atentos e com uma visão ampla a quem devemos respeito e estima. Amos Luzzato, por exemplo, ex-presidente da União das Comunidades Hebraicas Italianas, deu provas desta liberdade de espírito e honestidade intelectual que deveria caracterizar o diálogo inter-religioso, afirmando corajosamente: “Nem todos os muçulmanos são terroristas. Nem todos os norte-americanos são imperialistas. Nem todos os secularizados desconhecem os princípios dos outros. Nem todos os católicos impõem sua própria fé. Nem todos os judeus são ricos ou mendigos, torturadores dos palestinos ou vítimas de bombas humanas. Nem todos os palestinos são ocultos semeadores de morte”.
Sergio Zavoli, um dos mais célebres jornalistas italianos, introduzindo este texto de Luzzato, como atento analista do palco da história contemporânea, assinala como é importante esconjurar a radicalização do confronto entre Oriente e Ocidente, afirmando que “abrir-se àquilo que pensam e sentem os outros não é apenas desejável mas também necessário, se não queremos falar no vazio, com sumariedade e arrogância recíproca”. E também porque, se não nos comportarmos assim, como sublinha Luzzato, “terminaremos caindo no abismo que estamos cavando com as nossas próprias mãos”.
Por outro lado, todos percebemos que frequentemente os radicalismos estão a 360 graus e vão muito além da esfera religiosa, contaminando as próprias civilizações e culturas através de atitudes impositivas que desejam a homogenização a todo custo, contrariamente ao que se quer fazer acreditar. As diferenças ainda podem conviver porque a acolhida do estrangeiro, como ensina o Evangelho, se traduz na derrubada de toda barreira, muro ou divisão.
Mas infelizmente devemos tomar consciência de que a desinformação é tal que, no imaginário coletivo, quando se fala de muçulmano parace que todos são terroristas ou kamikase. Mas isso não é verdade! Quantos intelectuais do mundo árabe foram os primeiros a se opor com coragem e pobreza de meios contra toda forma de discriminação, postulando a necessidade de uma leitura crítica da história muçulmana, em claro enfrentamento com os defensores da “jihad” e toda ditadura!
É emblemático, a propósito, o pensamento do escritor egípcio Sayyed al-Qimani, que defendeu corajosamente o racionalismo, afirmando que este é patrimônio da tradição islâmica – referindo-se, por exemplo, ao pensamento de Averróis – mas que depois foi “silenciado” pelos tradicionalistas, defensores da sharìa, a lei islâmica. Outro intelectual que invocou a renovação do islamismo foi seu conacional Khalil Abd al-Karim, que apresentou a própria leitura da história como alternativa à visão fundamentalista dos extremistas. Sem falar dos fatos cotidianos narrados pela literatura e pelo cinema egípcio: basta pensar no romance “Karnak”, do prêmio Nobel Nagib Mahfuz, ou no filme “Somos aqueles do ônibus”, sobre as acusações falsas por parte da polícia para encher as prisões.
Mais ou menos há cinquenta anos, o pai do reformismo islâmico iraniano, Ali Shari’ati, dizia que o islã contemporâneo está no seu século XIII ou XIV. Se olhamos a história européia daquele tempo, descobriremos que, para o velho continente, não havia ainda iniciada a reforma protestante. Segundo Shari’ati, para superar a Idade Média islâmica, os muçulmanos não podem imaginar saltar de pés juntos cinco ou seis séculos, chegando imediatamente à cultura moderna. “Devemos reformar o islã – escrevia o intelectual iraniano – entregando a ele  o volante da libertação das nossas sociedades ainda fechadas em uma dimensão social e tribal, ou seja, à Idade Média do Oriente, que hoje é o instrumento usado pelos reacionários para evitar o progresso e o desenvolvimento social”.
As palavras e a vida de Shari’ati, morto oficialmente por parada cardíaca na Inglaterra, em junho de 1977 – ainda que sejam muitos os que pensam que foi eliminado pela polícia secreta do então Xá da Pérsia – indicam claramente o percurso que é preciso seguir para sustentar a plataforma democrática nos países da Meia-Lua. Uma responsabilidade da qual deve fazer-se intérprete sobretudo a Europa, se deseja ser coerente com os próprios princípios.
Contiuando a nossa reflexão sobre o fundamentalismo e levando em conta sobretudo a finalidade desta reflexão, é preciso lembrar que esta expressão é usada em sentido amplo também para indicar uma atitude acrítica e dogmática diante de textos ou teorias não necessariamente religiosas e os comportamentos que daí derivam. Na economia, por exemplo, os críticos do capitalismo liberal às vezes acusam de “fundamentalismo” os defensores de teorias segundo as quais o mercado deveria ser, segundo eles, o único regulador da vida social, subentendendo que este princípio seja afirmando de modo dogmático.
Na política, o neo-conservadorismo é uma reação às pavorosas incertezas do nosso tempo. Ele sustenta uma visão maniqueísta da realidade: de um lado estão os bons, de outra os maus. Por isso, os inimigos são perseguidos e expulsos, sobretudo se defendem iniciativas antagônicas e violentas. No campo religioso, alguns grupos religiosos acusam de “fundamentalismo laicista” as posições anticlericais dos adeversários, considerando-os incapazes de aceitar excessões frente a uma visão tradicional de laicidade.
A este propósito, outra forma de fundamentalismo a nível científico e cultural é o cientificismo: uma concepção do saber que considera válido somente o conhecimento científico, que no século XIX serviu como suporte às ideologias evolucionistas e materialistas, que depois confluíram na doutrina marxista do “socialismo real”. Mas, ao mesmo tempo, e é bom lembrar, se desenvolveu no plano produtivo, com a revolução industrial, e no plano econômico, com o capitalismo. Ingenuidade e presunção levaram o homem a crer que o progresso da ciência, da técnica e, mais em geral, da razão, poderiam resolver os problemas dos povos, a ponto de desprezar a religião, considerada por alguns como uma simples opção ou quase uma superstição. É este o pensamento secularista: não é mais necessária nenhuma referência à Transcendência, pois tudo se resolve no plano humano.
Porém, gradualmente, no transcurso do Século XIX, esta visão foi sacudida tanto pelas duas guerras mundiais quanto pela crescente distância entre ricos e pobres, patrocinada pelo advento da globalização liberal. A queda do materialismo ideológico, aquele dos países comunistas, e, depois, a crise do sistema capitalista que vivemos no início do terceiro milênio, provocou um forte ceticismo em relação a quem ainda ousa propor esquemas ideológicos para salvar o mundo.
E o que dizer da inversão dos equilíbrios geo-estratégicos pela qual as velhas potências ocidentais foram ameaçadas por países emergentes como a China? Este gigante conseguiu unir os extremos, unificando a doutrina do livre mercado com um regime de governo comunista. O que surgiu foi um sistema oligárquico, claramente anti-democrático que, explorando a mão-de-obra a baixo custo, tem como objetivo o crescimento esponencial da atividade produtiva.
Grande parte dos sociólogos afirma que a estação que atravessamos pode ser definida como “pós-moderna” em relação à modernidade caracterizada por uma forte industrialização da Europa e da América do Norte. Mas sobre a “pós-modernidade” voltaremos mais adiante. No momento nos limitamos a sublinhar que nesta última faixa da história, alguns componentes das grandes regiões, como o cristianismo e o islã, em modos certamente diferentes, foram gradualmente se voltando a si mesmos, afirmando lógicas fortemente identitárias. No caso das Igrejas cristãs, algumas sofreram grande influência do secularismo, o que levou a uma consistente perda de fiéis (que, não encontrando nelas respostas adequadas às necessidades vitais, buscaram-nas alhures), ou se agarraram a uma autoridade absoluta, capaz de oferecer verdades certas.
O denominador comum que une estas duas tipologias é sempre a insegurança. “A maior parte do povo – escreve Albert Nolan – vive em um estado de despero reprimido, buscando um jeito de se distrair das duras realidades do nosso tempo”. Compartilha o mesmo pensamento Joanna Macy, segundo a qual “o terror do futuro está no umbral da consciência e é demasiadamente profundo para receber um nome e demasiadamente assustador para ser efnrentado”.
Aqueles que dissolveram ou abandonaram a religião saíram desesperadamente em busca de qualquer coisa inebriante que, ao menos em parte, pudesse satisfazer suas demandas interiores no plano emocional. Alguns recorreram ao álcool ou às drogas. Outros optaram pelo suicídio. Outros ainda encontraram uma aparente segurança na riqueza e no acúmulo de bens. Alguns, compreensivelmente, recorreram ao esporte, ao fitness, aos centros de bem-estar, às experiências exotéricas típicas de culturas não ocidentais.
Uma reação muito decidida às incertezas que a vida nos reserva neste nosso mundo é a tentativa de voltar ao passado, o fundamentalismo. Se mergulharmos no íntimo do sentimento fundamentalista, descobrimos que a verdadeira razão é a incapacidade do indivíduo ou da comunidade de conjugar os ideais com a vida, o espírito com a existência, os ideais com a história. Esta distância é tal que gera o dualismo entre alma e corpo, um dualismo literalmente sem significado para as pessoas do nosso tempo.

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