Peregrinos do Vale de Lágrimas aos Novos Céus e Nova
Terra
Onde estamos?
Acabamos der
percorrer as ruas de uma cidade e as margens de um rio que escancaram feridas
abertas. Aquilo que vimos são apenas algumas entre as muitas feridas que doem
no corpo da terra e na vida do povo.
A culpa por este
“vale de lágrimas” não é somente da chuva, nem do descaso de Deus. O
responsável por este desastre e tantos outros é o modelo econômico tecnocrático.
Essa ideologia venenosa considera a terra apenas como reserva de recursos e
fonte de lucro. Ela está transformando o planeta num depósito de veneno e lixo.
Ela nos leva à ilusão de que somos donos da terra e das pessoas, com procuração
para explorá-las e saqueá-las.
Nossa mãe terra
está sendo depredada, e nossos irmãos e irmãs vivem encurvados por essa forma
míope de entender a economia. A mesma impiedade e avidez com que exploramos a
natureza contamina nossas relações familiares, sociais e políticas. Os clamores
da terra e os clamores dos pobres são duas expressões do único e mesmo grito de
todas as vítimas, um clamor que sobe aos céus.
O ritmo de consumo, de desperdício e de agressão ao
meio ambiente superou as possibilidades de auto regeneração do planeta. É isso
que provoca catástrofes, como esta que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, e como
aquelas que explodem por todos os lados. Nossa terra está cada vez menos rica,
menos bela, e menos generosa. Esquecemos que somos feitos de terra, dela
dependemos e a ela voltaremos.
A Palavra de Deus
nos mostra por onde andar!
Não caminhamos
sem rumo, mas como peregrinas e peregrinos de esperança. Viemos aqui porque acreditamos
que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com aquilo que está por
vir (cf. Rm 8,18) da bondade de Deus, pelas mãos generosas dos amados e amadas de
Deus.
Mas peregrinamos
gemendo! Toda a criação geme (cf. Rm 8,23) por estar sendo devastada, triturada,
envenenada e transformada em mercadoria. Estas dores anunciam nascimento ou
morte? Que sejam sinais de nascimento, depende da nossa responsabilidade, de
uma conversão ecológica e social, estrutural e profunda. Todas as criaturas anseiam
pela Nova Criatura que está sendo gerada em nós: irmãos e irmãs sem fronteiras,
de coração grande, “fratelli tutti”.
Depende de nós,
irmãs e irmãos! Aqui estamos para reassumir o compromisso de reconstruir a Casa
Comum e cercá-la de cuidados. Precisamos fazer isso sobre bases sólidas. Precisamos
“construir sobre a rocha”. Não adianta clamar a Deus ou reclamar dele! O
sistema econômico e social deve ser edificado sobre uma Justiça maior que a
justiça “dos escribas e dos fariseus” (cf. Mt 5,20). Ou seja: sobre uma relação
justa com os pobres e com toda a criação. Sobre uma justiça social que dê as
mãos à justiça ambiental.
A justiça social se expressa em relações
e mecanismos sociais, jurídicos e econômicos que asseguram aos pobres e vulneráveis
as condições de uma vida minimamente digna. A justiça ambiental se expressa em
práticas de cautela, cuidado e conservação de todas as formas de vida, e na
superação da ditadura da economia tecnocrática.
Lições do Povo de
Deus
A bíblia sagrada
nos ensina que as criaturas são, cada uma ao seu modo, um raio da sabedoria e
da bondade de Deus. A nossa Casa Comum é uma irmã, com quem partilhamos a
existência, uma boa mãe que nos acolhe em seu regaço. Formamos uma espécie de
família universal das criaturas, e isso nos impele a um respeito sagrado e
humilde para com todas as formas de vida. É da boca
das criaturas mais vulneráveis que brota o mais belo louvor a Deus (cf. Sl 8).
A criação é um
manancial de encanto e reverência. Em cada criatura, habita o Espírito vivificante
de Deus. Desde o coração das coisas, o Espírito nos chama à comunhão, ao
cuidado e ao louvor. Reconhecendo o valor e a fragilidade da criação e acolhendo
a missão de cuidadores que recebemos do Criador, temos que desmascarar o mito
do progresso econômico ilimitado que se manifesta no crescimento do PIB.
Deus declara que tudo é bom, inclusive o ser humano.
Ele nos fez no sexto dia, mas estamos entre as demais criaturas, e não
separados delas. Deus nos cria do barro da terra e nos alimenta com os frutos
da terra. Sem ar, sem água, sem luz e sem terra, não existe vida humana. Deus
confia tudo a nós para que, em seu nome, cultivemos e cuidemos. Não faz sentido
destruir aquilo que Deus criou e disse que é bom!
Estamos numa encruzilhada!
Não podemos mais
tratar as previsões catastróficas com desprezo e ironia. Vivemos uma grave emergência climática, e precisamos mudar
urgentemente nosso estilo de produção e consumo. Se a tendência atual se
mantiver, este século poderá ser testemunha de uma destruição sem
precedentes. Os Bispos do Brasil lançam
o alerta: “A escolha é nossa; formar uma aliança global para cuidar da terra e
uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e da diversidade da vida”
(Texto-base, 31).
A gravidade da
crise humana, social e ecológica que vivemos nos obriga a pensar no bem comum.
E nos pede para avançar na luta inteligente e articulada contra as
desigualdades sociais e a depredação do meio-ambiente. O meio ambiente é um bem coletivo, patrimônio
e responsabilidade de toda a humanidade. A terra pertence à humanidade, e seus
frutos devem beneficiar a todos, inclusive às gerações futuras.
A
situação da terra e dos seus filhos e filhas pressiona e interroga nossas
lideranças políticas e também a cada um de nós. Que tipo de mundo queremos
deixar a quem vem depois de nós? Entregaremos um planeta reduzido a ruínas,
desertos e montanhas de lixo? Estamos numa encruzilhada! O futuro depende do
que fizermos agora!
Evitemos a
tentação dos atalhos fáceis!
Na busca de saídas,
precisamos agir de forma organizada. Precisamos passar da constatação dos
sintomas a ações corajosas, evitando atalhos que prometem soluções fáceis. Os problemas
ambientais são inseparáveis dos problemas humanos e sociais. Existe uma única e
complexa crise ética, social, política, econômica e ambiental. Tudo está
interligado, e as soluções duradouras só podem ser sistêmicas.
Existem atitudes
que dificultam soluções efetivas e duráveis.
E a primeira delas é negação criminosa, que quase sempre aparece
abraçada à indiferença cínica. Não
faltam vozes que gritam nas praças e nas redes que não existe emergência
climática. Outras vozes reconhecem que existem alguns sinais, mas dizem são de
pequena importância. São cegos que se oferecem para guiar quem pensa que
enxerga. Como os contemporâneos de Noé, eles continuam seus negócios, sem tomar
conhecimento do dilúvio que está se armando.
Uma segunda
atitude que retarda as soluções é a resignação acomodada à situação, arrematada
pela confiança cega nas soluções técnicas e mágicas do fantasioso “mercado”. Os
detentores do poder econômico e político querem mascarar os problemas ou
ocultar seus sintomas. Promovem uma ecologia superficial e aparente, apregoando
uma “economia verde”, que acaba reforçando a passividade e induzindo a uma “alegre
irresponsabilidade”, como diz o Papa Francisco.
É preciso dizer
com com clareza: os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a
promover adequadamente o meio ambiente. Dentro do esquema do lucro máximo
e fácil não há como respeitar os ritmos da natureza, os seus tempos de
degradação e regeneração. E que ninguém se iluda: os problemas mais sérios da
humanidade não se resolvem apenas com avanços tecnológicos. A salvação do
planeta e da humanidade não vêm da inteligência artificial, por mais sedutora
que seja!
A causa ecológica também não pode se reduzir a um conjunto
de medidas emergenciais e paliativas. É necessário desenvolver políticas
municipais, estaduais e nacionais sérias e capazes de mudar nossa relação com a
terra e com as pessoas. Os projetos econômicos precisam se subordinar a elas, e
não o contrário. Mas se nós, cidadãos e cidadãs, não formos capazes de fazer
pressão constante, as administrações públicas e dirigentes empresariais farão
pouco ou nada.
A necessária
conversão
Os Bispos do
Brasil dizem que o pecado mais perigoso do nosso tempo é a separação entre a
humanidade e a natureza, opondo ou submetendo uma à outra (cf. Texto-base,
118). Por isso, a recuperação e proteção do meio ambiente supõe uma postura
ética e crítica: um olhar, um pensamento, uma política, uma educação, um estilo
de vida e uma espiritualidade que interponham barreiras ao avanço de uma
economia sem alma. Não haverá uma nova relação com a natureza sem um ser humano
novo.
Cada geração
pode tomar da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, também
tem o dever de a protege-la e de garantir a continuidade da sua fertilidade
para os demais povos e as gerações futuras. Não fazer isso significa incorrer
num “pecado ecológico”, numa espécie miopia que vê as coisas e pessoas como
meros objetos dos quais podemos dispor (cf. Texto-base, 52).
Precisamos desenvolver
ações locais e globais que enfrentem o desafio da redução da poluição e, ao
mesmo tempo, da escandalosa desigualdade social. A lógica que não respeita o
meio ambiente é a mesma em que não leva em conta os mais pobres e frágeis. A lógica que dificulta a tomada de decisões para barrar
a escalada do aquecimento global é a mesma que não permite cumprir o objetivo
de erradicar a pobreza.
Mas, atenção! Os esforços para um uso sustentável
dos recursos naturais e para a erradicação da pobreza e a segurança alimentar
de todos os cidadãos não são obstáculos ao progresso. Eles são investimentos
que trarão grandes benefícios econômicos a médio e longo prazo.
O que podemos e
precisamos fazer?
A missão é a de
guardiões da obra de Deu. Isso não é um aspecto secundário da experiência
cristã. É parte essencial de uma existência virtuosa e digna. A consciência da gravidade da crise cultural e
ecológica precisa traduzir-se em novos hábitos, em novos estilos de vida. O
amor nos impele a desenvolver estratégias para deter a degradação ambiental e desenvolver
uma cultura do cuidado que
permeie toda a sociedade.
A ecologia
integral se constitui de gestos e iniciativas quebram a lógica da violência, da
exploração e do egoísmo. O cuidado da natureza vai de mãos dadas com a
capacidade de viver juntos em comunhão. Urge redescobrir que precisamos uns dos
outros, que precisamos de uma natureza e um ambiente inteiros. A “alegre
superficialidade” pode levar a humanidade ao suicídio e à morte do planeta.
Mas, para se
resolver uma situação tão complexa como essa que enfrentamos hoje, não basta
que cada um seja melhor. Não é suficiente que cada um faça a sua parte.
Precisamos de estratégias de mudança que sejam potentes e duradouras. Precisamos
criar redes, movimentos e grupos de pressão que atuem nos espaços políticos
locais, regionais, nacionais e internacionais. É preciso incidir nas instâncias
que condicionam os processos culturais, elaboram as leis, formulam as políticas
econômicos e decidem as prioridades dos países e do mundo.
Se não fizermos
isso, a nossa Casa Comum continuará sendo tratada como um quintal, ou como um
depósito de lixo. Estaremos reconstruindo a Casa Comum sobre um terreno
arenoso, uma área de risco. E então ela terá dias contados, e nossos filhos e
netos viverão num mundo imundo e inabitável. Pela primeira vez na história da
humanidade, as próximas gerações poderão viver em condições piores do que nós. Ainda
é tempo de evitar isso aconteça, mas o tempo é agora! “Quem sabe faz a hora,
não espera acontecer!”
+Itacir Brassiani msf
Bispo de Santa Cruz do Sul
3 comentários:
Reflexão e análise absolutamente acertada.
Muito bom. Parabéns
Disse tudo. Falta os. Humanos se darem as mãos. SOZINHO SOU NINGUEM. !
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