segunda-feira, 10 de março de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin (7)

Estes apontamentos, claramente inacabados e provisórios, fazem parte de um conjunto mais amplo de material manuscrito sobre a espiritualidade e o carisma que o Pe. Ceolin me confiou pouco antes da sua partida. Como vocês poderão conferir, são de uma profundidade e uma atualidade que impressionam. Tomo a liberdade de partilhar estas notas como ajuda e provocação para que prossigamos na reflexão.

O dinamismo da Encarnação na Sagrada Família

Sem boa dose de humildade, ceitar, acolher, amar, assumir e servir os outros como eles são é coisa praticamente impossível. Interagir, a conviver e o confrontar-se cotidianamente com o diferente, o desigual, o desequilibrado e maníaco, acatar e respeitar os divergentes e adversários é tarefa hercúlea. Caminhar lado a lado, construir fraternidade entre doutos e insanos, ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, adultos e crianças, adolescentes e jovens, patrões e operários, governantes e governados, é coisa para gigantes!
Mas, no nosso caso, os gigantes são os que têm coração de pobre, os pequenos no sentido evangélico. Pessoas ede culturas e hábitos diferentes ou mentalidades contrastantes precisam despir-se e esvaziar-se do seu “eu-eu”. Somente com a nudez exposta poderão aceitar-se como iguais e irmãos, filhos do mesmo Pai. Onde e quando alguém pensa ser mais que os outros, deseja ser o maior e o melhor, distancia-se dos demais, não consegue encarnar devidamente seu próximo. Os donos da verdade, os hierarcas da sociedade e da Igreja, não erram, não dialogam e se apresentam como representantes de Deus... Tão diferentes são da Trindade Santa, eternamente dialogante...
A propósito, contemplemos a Sagrada Família. José se curva diante do mistério de Maria. Ambos postam-se respeitosos face ao mistério do Menino. Viam e ouviam-no, mesmo sem antender. Meditam e guardam tudo no coração... O Menino, por sua vez, era-lhes obediente, assumindo-os como genitores. Jesus cresce e amadurece sem demonstrar superioridade. A sagacidade manifestada diante dos doutores no templo não se evidencia em Nazaré. “Não é ele o filho do carpinteiro? Não é ele um simples trabalhador? Como e de onde lhe vem agora tamanha sabedoia e poder?...”
Para a Sagrada Família de Nazaré, o dinamismo da encarnação pedia concretizações: a) Encarnar a vida em família, o seu cotidiano de trabalho pela sobrevivência, a convivência interpessoal; b) Encarnar a vivência grupal com os parentes e conterâneos; participar de suas dores e alegrias; caminhar com eles na fé; respeitar as normas da convivência grupal; acatar as leis de Moisés; c) Encarnar a causa do povo, em cada momento da vida e da história; não compactuar com as injustiças e a opressão advindas do sistema, dos herodes, tetrarcas, fariseus, doutores e da tirania de Roma; não aceitar a opressão mais doída e revoltante que partia dos próprios conacionais; d) Encarnar o plano do Pai, a instauração do Reino de Deus.
Jesus se encarnou de forma tão profunda e radical que pode dizer: “Eu vim para servir e não para ser servido... Vim para salvar, e não para julgar e condenar... Tenho compaixão dessa gente faminta e doente, que vive como rebanho sem pastor...” Ele se misturou com os leprosos, os doentes, os abandonados pela sociedade. Jesus pô-se ao lado das vítimas do sistema. Os maiores pecadores consideravam-se justos, e por isso o renegavam, criticavam e perseguiam.
Encarnado e inserido, Jesus é agente transformação, porque ensina e faz. É deveras libertador dos oprimidos. Abala o sistema, porque o transgride e critica. Não desfaz Moisés, mas conserta as distorções da lei e a subordina à promoção da pessoa humana. Ordena o poder ao serviço do bem comum. Insiste que o que salva não é a teoria, mas a práxis da misericórdia...
Por fim, Jesus reúne em torno a si um grupo de seguidores a quem trata como amigos e outorga a continuidade da sua própria missão. “Vão! Estou enviando vocês como cordeiros para o meio de lobos... Curem os doentes, purifiquem os leprosos,  ressuscitem os mortos, expulsem os demônios e digam ao povo: o reino de Deus está próximo de vocês...” (cf. Lc 10,1-12; Mt 10,5-10). Sabe fazer-lhes feedback na hora precisa. Por causa deles, o sistema opressor não será perpetuado, será desfeito.
Pe. Rodolpho Ceolin msf


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