Comer, ato
revolucionário?
Satish
Kumar
A comida é um microcosmo de um
macrocosmo. Comer alimentos apropriamos é parte da solução de problemas como as
mudanças climáticas e a fome no mundo. Na tradição cristã, festejar no Natal e
jejuar na Quaresma são símbolos significantes da relação estreita entre as
pessoas e os alimentos, entre liberdade e comedimento, entre celebração e
solitude.
Mas festejar e jejuar não são opostos:
são complementares. Quando nós praticamos a liberdade de um banquete e somos
pessoas habituadas à pratica do jejum, muito provavelmente vamos aproveitar a
festa sem abusos.Jejuar é uma grande habilidade. Quando, no
romance de Herman Hesse, a bela cortesã Kamala pergunta a Siddhartha quais
eram as suas qualidades para conquistar o seu amor, Siddhartha responde:
“Pensar, esperar, jejuar”. Infelizmente, no mundo moderno, muitos de nós não
sabem como esperar, como jejuar, ou, ainda, como banquetear.
Nós vivemos no mundo da comida
congelada, junk food e pratos prontos. Esse é o mundo da
produção em massa, dos empacotados e das redes de comercialização de alimentos.
Esse é o mundo onde os conhecimentos e as técnicas de produzir comida foram
esquecidos, e a arte de cozinhar é desvalorizada; onde o prazer de preparar as
refeições em companhia é diminuído. Nós perdemos o controle das origens dos
alimentos. Muitos não sabem dizer poucas palavras sobre como a comida é
semeada, distribuída, tarifada, ou mesmo como é preparada.
O acesso à comida deveria ser um direito
fundamental do ser humano, o alimento é um presente da natureza a todos.
Alimentar as pessoas e todos os seres vivos é algo intrínseco à vida, à
existência, mas, infelizmente, a comida tornou-se produto comercial e já não
esta disponível à todos igualmente. O objetivo primeiro dos que trambalham com
negócios alimentícios é fazer dinheiro e alimentar as pessoas se tornou algo
secundário. Não admira vermos múltiplas crises, tais como o crescimento do
custo dos alimentos, crescimento da obesidade, junto à malnutrição e fome.
O grande desafio com o qual precisamos
nos deparar é percebermos o principal objetivo dos sistemas alimentares, que é
suster a vida. A principal responsabilidade dos governos e dos homens de
negócios é desenvolver políticas e práticas que atendam às necessidades
alimentares de todos, em todo o mundo, ao mesmo tempo em que garantam a
integridade e a sustentabilidade do planeta terra em si.
Cultivar, preparar e comer boa comida é
um imperativo ecológico, e, como Thomas Morus muito bem pontua, a comida é mais
do que apenas o combustível para o corpo; ela é fonte para a nossa nutrição
espiritual, social, cultural e física.
As pessoas perguntam: “O que eu posso
fazer para combater o aquecimento global, a degradação ambiental e as
injustiças sociais?” A resposta dada por Thomas Morus e outros escritores é:
“Vamos começar pela comida: vamos comer alimentos locais, orgânicos, sazonais e
deliciosos. Vamos lidar com os alimentos com as nossas próprias mãos, e não
deixar a sua produção apenas nas mãos das corporações.”
O ato de comer o alimento apropriado é
parte da solução dos problemas de aquecimento global e fome. A comida é um
microcosmo de um macrocosmo. Quando nós observamos as movimentações econômicas
por trás dos alimentos vemos imediatamente a influência das corporações
multinacionais, que transformam comida em produto, onde, da engenharia genética
das sementes ao cultivo, o controle passou do homem do campo e dos agricultores
para administradores e engenheiros. Se nos preocupamos com a agricultura
industrial, agronegócio, terras cultiváveis, erosão do solo, crueldade com os
animais, fast foods, fatty (gordurosas) foods,
ou, ainda, “não-foods“, temos que olhar para o nosso prato e o que esta
nele. A comida em nossa dispensa e na nossa cozinha esta conectada com as
mudanças climáticas, com a pobreza, bem como com a nossa própria saúde.
Uma reflexão profunda sobre o que
comemos pode nos levar à reforma agrária, mercados de agricultores, Jardins
Operários, Slow Food, comida artesanal, permacultura, agricultura florestal e muito mais.
Nós devemos transformar nossa relação com a comida como um primeiro passo em
direção às transformações sociais, econômicas e políticas. O pessoal e o
político são dois lados da mesma moeda, nós não podemos manifestar um sem o
outro. Quando nós começamos no plano pessoal e caminhamos em direção ao
político, então há integridade no que falamos, fazemos e pedimos para que os
outros façam. É claro que não podemos parar na vida pessoal. Nós precismos nos
comunicar, organizar e construir um movimento popular que pressione governos e
empresas a efetuarem mudanças.
Será que estamos prontos pra “por a mão
na terra”? Temos tempo para assar nosso próprio pão e compartilhar nossas
refeições em companhias agradáveis? Se nós não temos tempo para cozinhar e
comer adequadamente, então nós não temos tempo para viver. Como Molière disse:
“É boa comida, não boas palavras que me mantem vivo”.
Satish Kumar é fundador e diretor do Instituo Schumacher
e reconhecido como um pilar da militância pacifista. Tradução Josemar Vidal Jr. Publicado em: http://outraspalavras.net/blog/2014/03/12/comer-e-o-comeco-ou-a-meta-esta-na-mesa/
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