Dimensão
missionária da Igreja
No Brasil,
há algumas décadas, a Igreja Católica Romana considera outubro como mês missionário. O objetivo, certamente,
é levar os católicos a tomarem cada vez mais consciência de uma das dimensões
fundamentais do discipulado ou seguimento de Jesus. A Igreja é, por natureza,
toda ela missionária, nos lembrava há 50 anos atrás o Concílio Vaticano II. A
dimensão missionária, explica o documento conciliar Ad Gentes, brota da missão do Filho e do Espírito Santo. O Pai
manda, na plenitude do tempo, o seu Filho que nasce de mulher (Gl 4,4) e envia,
através de Jesus (Jo 15,26), o Espírito (Jo 14,16). O Filho, por sua vez, envia
os discípulos como missionários pelo mundo inteiro (Mc 16,15), os quais são
revestidos da força do Espírito (At 1,8). Portanto, uma comunidade cristã que
não é missionária, não é Igreja (ekklesía),
ou seja, não é comunidade de fé convocada e reunida pela Santíssima Trindade.
Pode ser um clube, uma associação de pessoas religiosas, um grupo de amigos,
mas não Igreja, no sentido bíblico e teológico desta palavra.
Dizer que a
Igreja é, por natureza, missionária implica saber e entender qual é a sua
missão. A missionariedade decorre da
missão. Qual é, então, a missão da Igreja? A mais antiga definição da missão da
comunidade cristã, ou seja, da Igreja encontra-se no evangelho de Marcos: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa
Nova para toda a humanidade” (Mc 16, 15).
Três aspectos importantes
da missão aparecem neste mandato que Marcos atribui a Jesus. Em primeiro lugar,
o núcleo central da missão. Trata-se
de “anunciar a Boa Notícia”. Mas, qual “Boa Notícia”? Lucas e Mateus nos dão a
resposta. Segundo Lucas, a “Boa Notícia” é dirigida aos pobres e consiste em “proclamar a libertação aos presos e aos cegos
a recuperação da vista”. O objetivo da missão da Igreja é “libertar os
oprimidos” e “proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Mateus, por
sua vez, afirma que, para Jesus, o sinal da sua messianidade está exatamente nisso: “aos pobres é anunciada a Boa
Notícia” (Mt 11,5). Fica, pois, evidente que a essência da missão da
Igreja é, pela palavra e pela ação, contribuir para a libertação dos pobres e
dos oprimidos. O restante deve ser apenas consequência
disso. Portanto, entre a opção preferencial pelos pobres e a missão da Igreja
há um vínculo indissolúvel. Separar
as duas coisas é o mesmo que diluir o essencial da missão. Não por acaso o papa
Francisco voltou a nos relembrar recentemente este aspecto (EG, 197), que
estava sendo sepultado por uma Igreja Católica, que tinha decididamente se
voltado para um estilo direitista e ultraconservador durante o pontificado de
João Paulo II e Bento XVI. Há razão, pois, a CNBB quando afirma que “o caminho
da redenção está assinalado pelos pobres” (Estudos 107, nº 153).
O segundo
aspecto importante da missão, assinalado pelo texto de Marcos, é o fato de que
a Igreja precisa pensar a missão como ação destinada ao mundo inteiro. Isso significa que o anúncio da Boa Notícia aos
pobres deve chegar a todos os cantos da terra. A missão da Igreja deve ser tão
marcante e impactante, a ponto de ressoar em todos os lugares de nosso planeta.
Este aspecto supõe uma Igreja ousada, corajosa, que não fique trancada dentro
dos templos (Jo 20,19), com medo de ser contaminada ou perseguida. Supõe uma
Igreja profética, que não aceita fazer pactos com os ricos e poderosos desse
mundo, mas que se declara e assume com coragem a causa dos pobres, denunciando
os ricos (Lc 6,24-25) e os exploradores dos pobres (Tg 5,1-6). Uma Igreja
“frouxa”, medrosa, comprometida com os ricos e poderosos não é e nunca será
missionária.
O terceiro
aspecto da missão evidenciado por Marcos tem a ver com os destinatários: o anúncio da Boa Notícia deve ser dirigido a toda a
humanidade. Todos os homens e todas as mulheres têm o direito de receber da Igreja este anúncio. E não é preciso
que se “convertam” ao catolicismo. Em suas próprias culturas, em suas próprias
religiosidades, em suas situações concretas, os povos e as pessoas têm o
direito de receber da Igreja o testemunho de uma opção firme e decida em favor
dos pobres. Este é um tipo de anúncio que todo mundo entenderá,
independentemente de sua língua e de sua cultura. E é isso que falta à Igreja,
especialmente à Igreja Católica. Ela não consegue sinalizar para a humanidade
que está decididamente do lado dos
pobres, combatendo toda forma de opressão e promovendo a libertação integral
das pessoas e dos povos. Daí o fracasso da sua missão nas mais diversas partes
do mundo, inclusive nos países do hemisfério sul, uma vez que falar aqui de
cristianismo, de Igrejas, é o mesmo que falar de colonialismo. E as pessoas mais inteligentes, em número cada vez
maior, que habitam o sul do planeta, sabem muito bem o que significou para seus
países, para suas culturas e para seus povos o colonialismo implantado pelos
países “cristãos”.
E não estou
dizendo isso por acaso. Todos sabemos que a partir do momento em que a Igreja,
contrariando a vontade de Jesus, começou a imitar e a copiar o estilo dos
poderosos deste mundo (Mc 10,42-44), ela passou a entender a missão como
“plantatio ecclesiae”, ou seja, como mero transplante do estilo europeu de
Igreja para as demais regiões do mundo. Fazer missão, missionar, era o mesmo
que impor às demais culturas a religião católica. A missão consistia em
destruir e eliminar por completo as culturas, tidas como idolátricas, selvagens
e pagãs, impondo a ferro e fogo o catolicismo. Foi o que aconteceu, por
exemplo, na América Latina, ainda hoje marcada pela violência e pelos massacres
praticados contra os indígenas pelos conquistadores espanhóis e portugueses, em
nome da fé católica.
Lamentavelmente
a maioria dos bispos e dos padres ainda entende a missionariedade da Igreja
nesta perspectiva colonialista. Acreditam piamente que fazer missão é o mesmo
que fazer proselitismo, ou seja,
converter o maior número possível de pessoas para o catolicismo. A maioria
deles não tem presente a perspectiva bíblica da missão, sobretudo no que diz
respeito à questão do seu significado como anúncio de uma Boa Notícia para os
pobres e oprimidos. Várias vezes, em reuniões de bispos, pude escutar alguns
deles questionando o modo de evangelizar de instituições como o CIMI e a CPT,
que optam pelo diálogo com as culturas e não pelo proselitismo barato. Esses
bispos são do parecer que se deve chegar nesses espaços fazendo proselitismo,
ou seja, convertendo de qualquer jeito ao catolicismo as pessoas que ali estão.
Minha posição foi sempre a de que esse modo de “evangelizar” é de grupos
fundamentalistas cristãos e não de verdadeiros discípulos de Jesus.
Talvez ainda
precisamos aprender com os grandes santos em que consiste realmente a missão.
Lembro-me, neste instante, de Charles de Foucauld, cuja vida foi um mergulho
profundo no escondimento e no silêncio. Mas duvido que alguém tenha sido mais
missionário do que ele. O irmão Carlos de Jesus entendeu, como santa Teresinha
do Menino Jesus, que a missão é essencialmente amar o próximo e não fazer proselitismo. Por isso não tinha medo de
dizer que ele estava ali no deserto não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Tinha a
convicção, dizia em 1905, que falar de Jesus para eles significaria
afugentá-los. Não que o nome de Jesus, por si só, assustasse os mulçumanos, mas
a associação que eles faziam de Jesus com os bárbaros e violentos europeus
cristãos. De fato, naquele mesmo período a França dominava a região e praticava
as maiores barbaridades contra os nativos, tratando-os como escravos e como
objetos quaisquer. Para o irmão Carlos, numa situação como essa, bastava que os
tuaregues sentissem que ele era apenas seu amigo e seu serviçal. Isso já era
missão, já era evangelização.
“O amor é o
meio mais poderoso de atrair o amor, porque amar é o meio mais poderoso de
fazer-se amar” (Charles de Foucauld). Assim, continua o irmão Carlos de Jesus,
a melhor forma de realizar a missão da Igreja é amando, mesmo sem dizer uma palavra:
“sem nunca dizer-lhes uma palavra de Deus, nem de religião, sendo paciente como
Deus é paciente, sendo bom como Deus é bom, amando, sendo um irmão cheio de
ternura, e rezando”.
Faço votos
de que o mês missionário nos ajude a entender tudo isso. Faça-nos perceber que
a missão não é algo a mais a se fazer, uma pastoral a mais na Igreja, mas uma dimensão que deve perpassar toda a vida
da Igreja. Faça-nos entender que missionar não é fazer prosélitos, mas anunciar
a Boa Notícia da libertação dos pobres e oprimidos a todos os homens e mulheres
da Terra. E acima de tudo nos faça entender que “a Igreja não é o centro.
Cristo é o centro!” (Estudos da CNBB 107, nº 148). E por essa razão é
indispensável “passar de atitudes fechadas à formação de uma nova cultura, que
constrói cidadania no diálogo e que não tem medo de acolher o que o outro, o
diferente, tem a oferecer” (Ibid., nº
157).
A missão,
quando entendida desta forma, faz a Igreja deixar de se um amontoado de
delirantes alienados, carolas e de beatos para ser uma Igreja laical, isto é, uma Igreja comprometida
em testemunhar Jesus Cristo “em todas as circunstâncias, no interior da
comunidade humana, tão marcada por dinâmicas excludentes, indiferenças, buscas
desenfreadas de consumo e satisfação” (Ibid.,
nº 163). Quando se entende a missão na perspectiva bíblica a Igreja deixa de
ser “um clube de eleitos” (Ibid., nº
146), uma “alfândega controladora da graça de Deus” (EG, nº 47), para ser “uma
Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e os que se encontram nas
periferias existenciais” (Estudos da CNBB 107, nº 151).
José Lisboa
Moreira de Oliveira
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