quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Hipocrisia

A vida concreta e frágil vale mais que as leis

883 | 31 de outubro de 2025 | Lucas 14,1-6

Fiel à herança profética, Jesus não muda sua prática, seu anúncio e o rumo da sua caminhada, mesmo diante da ameaça de Herodes. Segue intrépido, corajoso e generoso, sem fazer nada para se proteger. Ele se situa na linha dos profetas, e é o Pai, e não Herodes ou seus asseclas, quem vai dizer quando e como deve dar sua missão por terminada. Por enquanto, ele é quem decide, e, como sempre, não toma decisões pensando em sua própria segurança.

Dito e feito! Em pleno sábado Jesus desrespeita – de novo! – a lei e, numa refeição na casa de um dos chefes dos fariseus, cura um homem doente sem que ele tenha sequer pedido. Ignorando o olhar vigilante dos piedosos e ardilosos judeus, Jesus os provoca a tomar uma posição. Essa é a questão que atravessa a cena de hoje, cena que inaugura a seção das refeições simbólicas de Jesus que nos apresenta o evangelista Lucas (cf. Lc 14,1-24).

A pergunta de Jesus é direta: “A lei permite curar em dia de sábado, ou não?” E os fariseus guardam silêncio. Para Jesus, o reino de Deus e a defesa da vida se impõem, e não estão condicionados ao tempo e lugar. A lei inspirada por Deus visa garantir o repouso e assegurar a liberdade e a dignidade dos seus filhos e filhas de Deus. Se os piedosos judeus descumprem a lei para salvar um animal, não há razão aceitável para se opor à cura de uma pessoa necessitada num dia proibido pela lei.

Na verdade, Jesus não nega a legitimidade das leis e dos ordenamentos religiosos ou civis, mas os coloca em uma nova perspectiva. Segundo Jesus, o que fazemos sem problemas quando estão em jogo nossos interesses (evitar o prejuízo com a morte de um animal) devemos fazê-lo, mais ainda, em benefício dos seres humanos que estão em dificuldades. Nada de fossilizar ou reduzir a vontade de Deus a princípios e esquemas abstratos, afastando-os da vida concreta!

Não nos defendamos da interpelação de Jesus relegando-a ao passado. É permitido ou não aprovar as uniões homoafetivas? É lícito ou não ocupar latifúndios improdutivos? É possível compartilhar a eucaristia com cristãos de outras Igrejas? É aceitável defender a admissão de mulheres ao ministério? É possível “furar” o teto de gastos ou o “arcabouço fiscal” para atender a população desempregada, doente e sem escola, ou para amenizar os prejuízos das enchentes ou das queimadas? E as perguntas podem continuar ainda por muitas linhas...

 

Sugestões para a meditação

§ Acompanhe Jesus à casa do chefe dos fariseus, acompanhe seu olhar voltado ao homem doente

§ Perceba também o olhar vigilante e reprovador dos fariseus reunidos em torno da mesa e a indignação de Jesus

§ Será que, de algum modo, não caímos na tentação de “fossilizar” a vontade de Deus ou reduzi-la a abstratos esquemas e princípios fios e impessoais?

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Essas raposas traiçoeiras

Jesus não se deixa intimidar pelas ‘raposas’

882 | 30 de outubro de 2025 | Lucas 13,31-35

Jesus acabava de responder a quem perguntava se são muitas as pessoas que se salvam, e alertava que as portas do Reino de Deus estão abertas a todos, mas tem suas exigências. Eis que, inesperadamente, os fariseus comunicam a Jesus que ele está em perigo, que Herodes está querendo matá-lo. Será que viraram defensores e protetores de Jesus? Será que estavam preocupados com os riscos que enfrentava?

A cena está situada literariamente na segunda etapa da caminhada de Jesus a Jerusalém, e ele acabara de acusar o povo Israel de incredulidade e de elogiar ninguém menos que os pagãos. Jesus não é ingênuo. Ele percebe a falsidade dos fariseus, pois são emissários de Herodes e fazem o jogo dele, e pouco estão se “lixando” com o risco que ameaça Jesus. Ele não se deixa intimidar pelo tirano.

Jesus fala de Herodes usando uma metáfora bem conhecida da cultura brasileira. Jesus diz que o rei Herodes se parece a uma raposa, como no Brasil são qualificados os políticos interesseiros. Herodes rosna forte, mas não é um leão: ele não passa de um animal pequeno, mas traiçoeiro, violento e fedorento, cujo domínio não vai além da Galileia e da Peréia. Ele não passa de um reizinho frágil e periférico, por mais que busque o apoio da aristocracia de Israel e bajule o imperador romano.

A imagem da raposa também ajuda a compreender a metáfora da galinha e dos pintinhos. A galinha e seus filhotes são objeto preferido da violência e da voracidade da raposa. Embora Jesus tente defender e proteger o seu povo como uma galinha protege seus pintinhos, usando do seu próprio corpo, a elite de Jerusalém refuta o caminho que Jesus percorre e propõe. Mas ele continua sua missão como “bendito que vem em nome do Senhor”, curando, libertando e anunciando o Reino.

Fiel à herança profética, Jesus não muda o rumo nem o ritmo da sua missão por causa da ameaça de um reizinho decadente. Ele prossegue, intrépido e generoso, sua missão, sem se afastar uma vírgula da vontade do Pai para se proteger das ameaças dos poderosos de plantão. Ele se identifica com os profetas, mas não é uma espécie de “kamikaze” que procura a morte como ato redentor do povo e glorificador de si mesmo. É o Pai, e não Herodes ou seus asseclas, quem vai dizer quando e como Jesus deve dar sua missão por terminada.

 

Sugestões para a meditação

§ Embarque na sugestiva metáfora da raposa que ameaça a galinha e seus pintinhos, com a qual Jesus fala de Herodes e de si mesmo

§ Deixe-se impressionar pela firmeza e coragem de Jesus, que continua sua missão até e como o Pai quer

§ Perceba a hipocrisia e a falsidade dos fariseus de todos os tempos, que defendem apenas “pátria, (sua) família e (sua) propriedade”

§ O que fazer diante das lideranças (cristãs e políticas) que dizem defender o povo mais colaboram com seus opressores?

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Sem fronteiras

Manter-se no caminho perseverando no amor

881 | 29 de outubro de 2025 | Lucas 13,22-30

O evangelho de hoje nos apresenta uma cena na qual alguém questiona Jesus em relação ao número de pessoas que se salvam, à quantidade das que chegam à plena realização humana e espiritual. Ao que parece, quem pergunta não se interessa pelo caminho que leva à salvação, mas pelo número dos que seriam beneficiados por ela. Na sua resposta, Jesus sublinha que a salvação não dispensa o esforço pessoal contínuo. O caminho da salvação passa pela exigente conversão.

Jesus sublinha também que este engajamento é tarefa para o tempo presente, e não pode ser adiado indefinidamente. Comparando o processo de salvação a uma porta estreita, Jesus ressalta que chegará o tempo em que o dono da casa fechará a porta e não será mais possível entrar. Portanto, é preciso desfrutar com responsabilidade das possibilidades de crescimento que cada momento nos oferece. O tempo propício da salvação é agora, e aqui é o lugar para semear Reino de Deus e ajudá-lo a florescer. É preciso conjugar adequadamente paciência e urgência.

Há gente que pensa que somente a religião pode salvar, que as pessoas realizadas e plenamente humanas ou santas seriam aquelas que rezam bastante, que observam as prescrições religiosas, que regem a vida por uma moralidade estrita, que vivem neste mundo suspirando pelo céu. Mas a religião não pode se divorciar da ética, nem do mundo, inclusive das coisas materiais. A religião propõe uma forma específica de viver no mundo e de se relacionar com as pessoas e coisas. Àqueles que reduzem a religião a um conjunto de prescrições Jesus adverte: “Não sei de onde sois...” Em lugar deles, entram no Reino de Deus muitos que eles ignoram e desprezam. Como?

Jesus diz que “virão muitos do oriente e do ocidente, do Norte e do Sul, e tomarão lugar à mesa do Reino de Deus”. Ou seja: alguns daqueles que as instituições descartam ou colocam em último lugar, aos olhos de Deus são os mais importantes e ocupam os primeiros lugares. Todos os homens e mulheres são chamados à salvação e, de um modo que só o Espírito de Deus sabe, participam do mistério pascal de Jesus Cristo. E, mais ainda: “Há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos”! Esta é uma verdade que coloca em cheque nossos pretensos méritos e certezas. Quem está de pé, cuide para não cair, diz Jesus noutro lugar.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome o episódio, não perca as nuances da pergunta e das respostas de Jesus; saboreie aquilo que mais ressoa ou atrai você

§ Em que medida também nós, Igreja de hoje, estamos mais preocupados com o número de fiéis que “entram” na Igreja que com o testemunho?

§ Será que ainda conservamos uma mentalidade segundo a qual pessoa boa é a que frequenta as missas e paga o dízimo?

§ Como entender hoje a imagem da “porta estreita”, evitando que signifique exclusão daqueles que creem diversamente de nós?

São Judas Tadeu

Eles são lâmpadas da fé colunas da verdade

880 | 28 de outubro de 2025 | Lucas 6,12-19

Voltamos ao capítulo 6 do evangelho segundo Lucas para iluminar a festa de hoje (São Judas e São Simão). São Judas Tadeu não é o traidor convertido, como pensam alguns! É um segundo Judas, irmão (ou filho) de Tiago e parente de Jesus. Uma tradição antiga diz que ele era o noivo da festa de Caná, mas não há provas históricas sobre isso. Seu nome significa, literalmente, amigo íntimo, “amigo do peito”, próximo do coração. Este nome já é, por si mesmo, prenhe de significados.

São Judas nos deixou uma breve carta, que faz parte do Novo Testamento. Nela, o apóstolo sublinha os valores da vida comunitária e mostra-se muito preocupado com algumas falsas lideranças que causam danos às comunidades cristãs do seu tempo. São Judas diz que essas lideranças são como nuvens que anunciam, mas não trazem chuva, como árvores que não têm raízes, como ondas revoltosas e violentas, como astros errantes, como os seguidores de Caim. São imagens muito fortes!

Na carta, ele também pede aos fiéis que edifiquem a si mesmos sobre o alicerce da fé e perseverem no amor de Deus. E manda que conjuguem a compaixão com a cautela, e fortaleçam os cristãos vacilantes. Por isso, precisamos sublinhar que, mais que um socorro nas causas difíceis – como é amplamente conhecido em todas as partes do Brasil – São Judas Tadeu é, com os outros apóstolos, lâmpada da fé e coluna da verdade, como diz São Cirilo de Alexandria.

Mesmo que alguns dos Doze discípulos escolhidos e enviados sejam pouco conhecidos, Jesus os escolheu “a dedo”. Antes de os escolher, passou uma noite em oração, para não se enganar na escolha, e para que eles fossem símbolo do novo povo de Deus. Portanto, nenhum deles simplesmente aparece na lista para completar o número. Ser Apóstolo significa ser enviado como porta-voz, delegado, embaixador. Os Doze são participantes da missão do próprio Jesus Cristo, fazem o que ele fez, têm a sua dignidade, assumem sua meta e trilham seu caminho.

Celebrando a festa de São Simão (que não é Pedro) e São Judas (que não é o Iscariotis) no finalzinho do mês dedicado às missões, a comunidade cristã é convocada a renovar seu ardor missionário, a potencializar seu testemunho, a dar sua resposta ao Senhor que chama através dos clamores e esperanças do nosso povo e nos envia como peregrinos de esperança entre todos os povos. Estamos respondendo a este envio para dar testemunho num círculo cada vez mais amplo?

 

Sugestões para a meditação

§ Retome a cena, os gestos, perguntas e palavras de Jesus, as reações da mulher encurvada, dos chefes da sinagoga e do povo

§ Acompanhe passo a passo o retiro orante, a escolha nominal e o envio dos Doze Apóstolos, embaixadores do Reino de Deus

§ Deixe que ressoe também em você e hoje o chamado e a escolha de Jesus: “Eu te amo, te chamo, te formo e te envio!”

domingo, 26 de outubro de 2025

A lei e a compaixão

O socorro aos necessitados é a prioridade

879 | 27 de outubro de 2025 | Lucas 13,10-17

Jesus ensina que, quando as leis ajudam a viver o amor a Deus e ao próximo, são importantes e boas. Mas quando já não servem para gerar e proteger a vida, ou quando se opõem à vida e à dignidade dos pobres, devem ser abandonadas, como ele mesmo o fez Jesus. Nesse amor, que tem dois destinatários, mas uma mesma direção – a saída de si para priorizar o outro – se resumem as Escrituras. O socorro das pessoas em suas necessidades vem antes e está acima das leis.

Hoje, Lucas nos apresenta Jesus na sinagoga. Enquanto mestre, Jesus de Nazaré ensina como “boca de Deus” e vai ao lugar especialmente destinado ao ensino da Palavra de Deus. E, mais uma vez, enfrenta a esclerose do formalismo religioso e a violenta e cínica tirania religiosa representada e exercida pelas lideranças que controlam o ensino da lei, especialmente mediante a Sinagoga. Jesus mostra sua inconformidade com isso, e não se cala nem se acomoda.

Na sinagoga, Jesus vê uma mulher duplamente excluída: por ser doente e por ser maneada por um espírito maligno. Ninguém dos mestres ali presentes dá a mínima atenção a ela, com exceção de Jesus. Jesus toma a iniciativa: sem que ela peça qualquer coisa, ele a chama, cura e liberta, estendendo a mão num solene e inequívoco gesto que denota a ação e a proteção de Deus. Para Jesus, era inaceitável prorrogar o sofrimento daquela mulher por causa de uma interdição legal.

Jesus curou a mulher num dia de sábado, e a lei que mandava guardá-lo fechava os olhos de todos a tudo o mais que não fosse o estrito cumprimento daquilo que era proibido ou mandado. Por isso, a iniciativa de Jesus suscita a louvor intenso e agradecido da mulher e, ao mesmo tempo, a fúria do chefe da sinagoga, que se volta contra ela, evitando atacar Jesus diretamente. Para ele, os encurvados podem esperar, a lei não! E se instaura a controvérsia e o debate. Como Jesus se atreve?

Jesus desmascara a hipocrisia de quem usa a religião para se dispensar do compromisso com o próximo ou para oprimi-lo. Para Jesus, a atenção às necessidades e ao bem das pessoas concretas está acima da lei, e manifesta o querer claro e inequívoco de Deus. O sentido e a finalidade de todas as leis e instituições é manter viva a memória e o sonho da criação e da libertação. É daqui que brota a alegria e o louvor. Fora disso, só resta a vergonha.

 

Sugestões para a meditação

·        Retome a cena, os gestos, perguntas e palavras de Jesus, as reações da mulher encurvada, dos chefes da sinagoga e do povo

·        Por quê nos custa tanto colocar a dignidade e a necessidade das pessoas à frente das leis e ritos?

·        Como educar e formar nossos fiéis e comunidades da liberdade solidária do Evangelho de Jesus?

sábado, 25 de outubro de 2025

Dia Nacional da Juventude

A juventude e o desafio de cuidar da Criação

No quarto domingo de outubro as comunidades católicas celebram no Brasil o Dia Nacional da Juventude. Esse não quer ser um evento a mais, mas parte de um processo contínuo de formação. Em 2025, guiadas pelo lema “Jovens, guardiões da Criação”, as juventudes são convidadas a pensar, refletir e realizar iniciativas no cuidado com a vida.

Mais uma vez, inspiro-me no Papa Francisco. Ele observa que os adultos de hoje caímos frequentemente na tentação de fazer uma lista enorme de vícios e defeitos da juventude, em parte, reais. Alguns há quem nos aplaude, imaginando que somos defensores dos bons costumes e especialistas nos aspetos negativos e perigos. “Mas, a que levaria isso? Uma distância sempre maior, menos proximidade, menos ajuda mútua”.

O Papa Francisco vê o jovem como “alguém que caminha com os dois pés, mas colocando um atrás do outro, pronto para partir. Falar de jovens significa falar de promessas, de alegria. Um jovem é uma promessa de vida. Eles têm suficiente insensatez para enganarem-se e suficiente capacidade para curar a decepção que daí pode derivar”.

Oxalá apoiemos e estimulemos os jovens como o Papa: “Ainda que possam se enganar, arrisquem. Não vivam anestesiados. Não olhem o mundo como se fossem turistas. Abandonem os medos que paralisam. Não se deixem mumificar. Entreguem-se ao melhor da vida! Abram as portas da gaiola e voem! Por favor, não se aposentem antes do tempo!”

Nossa mensagem, explícita ou implícita, deveria ser: “Jovens, não renunciem ao melhor da juventude. Não observem a vida da sacada. Não confundam a felicidade com um sofá, nem passem a vida diante duma tela. Não sejam como um veículo abandonado, como carros estacionados à beira da estrada. Deixem brotar os sonhos e tomem decisões”.

A sabedoria e a lucidez próprias de pai, de mãe, de pastor ou guia dos jovens os leva a “encontrar a pequena chama que continua a arder, a cana que parece quebrar-se, mas ainda não se partiu. É a capacidade de visualizar brechas, portas e caminhos onde outros só veem muros, é saber reconhecer possibilidades onde outros só veem perigos”.

É verdade que precisamos nos ocupar da educação das juventudes, especialmente da educação para os valores da paciência, da tolerância, da fraternidade, da justiça, da paz e o cuidado da criação. Mas essa educação supõe em nós a disposição de escutá-los e valorizá-los; de atuar mais com eles que para eles; de guiá-los na aquisição de valores culturais e éticos; de superar a ditadura do presente por uma visão de futuro; de oferecer uma educação livre da ditadura das informações e da tecnologia.

Finalmente, a educação para a justiça, a paz e o cuidado da criação deve ocorrer na justiça e na paz, num ambiente familiar, escolar e eclesial no qual a justiça, a paz, a fraternidade e a solidariedade são testemunhadas em relações cotidianas e não se reduzam a conceitos ou deveres. Para isso, precisamos avaliar os processos e os programas formativos das nossas comunidades, escolas e universidades.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo de Santa Cruz do Sul

O fariseu e o publicano

Aos olhos de Deus, ninguém é mais que ninguém!

878 | 26 de outubro de 2025 | Lucas 18,9-14

Só não vê quem não quer, para não ter que mudar de atitude: vivemos numa sociedade polarizada, com grupos contrapostos por ideologias e por disputa de espaços e poderes. O argumento moral – “nós, os cidadãos de bem; eles, os malfeitores, preguiçosos” – é usado com uma frequência espantosa. E a ideologia da meritocracia acabou oferecendo uma justificação adequada a esta divisão social.

Alguém pode se surpreender ao constatar que esta mesma postura estava presente na sociedade e no contexto cultural no qual Jesus de Nazaré viveu e atuou. Naquele tempo, vigorava o muro ideológico e religioso que separava e opunha puros e impuros. A ideologia da pureza – que misturava critérios sanitários, religiosos, morais, étnicos e sociais – definia quem era puro e impuro, quem era “cidadão de bem” ou “elemento suspeito”.

Na parábola de hoje, estes dois grupos ou setores sociais estão tipificados nas figuras do fariseu e do publicado. O primeiro, se considera e é tratado como homem correto, merecedor, justo, superior, ou cidadão digno. O segundo, é visto e tratado como suspeito, sujo, herege, sem dignidade e sem direito ao respeito e à cidadania. A prática da oração não os torna iguais perante a Deus, apenas escancara as diferenças. A oração de um é eivada de orgulho e desprezo; a do outro nasce da humildade.

Para Jesus e seu Evangelho, ninguém pode se arrogar o status de melhor, superior, honrado, merecedor. Todos, fariseus e publicanos, são pecadores e necessitam de conversão. O fariseu, que manifesta na oração seu orgulho e desprezo pelos outros, exatamente por isso também é pecador. A diferença é que o publicano, explicitando a dor da exclusão e a percepção das próprias contradições, é acolhido e justificado, enquanto que o fariseu, que se considera justo, melhor e superior aos demais, continua devendo e alimentando uma imagem distorcida de si e dos outros.

A humildade não é um simples ou falso sentimento de inferioridade, mas a consciência justa e correta daquilo que somos: vazio, dependência, ambiguidade, desejo. É o reconhecimento de que somos todos devedores uns aos outros, de que ninguém – começando por mim mesmo – é maior e melhor que ninguém. Somos o que somos por graça de Deus. E em Deus todos somos dignos e preciosos.

 

Sugestões para a meditação

§ Situe-se no templo, como quem foi rezar com o fariseu e o publicano, e observe a postura e as palavras de cada um

§ Com qual deles você se parece quando reza? Você se apresenta diante de Deus ostentando seus méritos?

§ Você considera a humildade uma limitação à sua personalidade e o orgulho e o mérito uma expressão de sua grandeza?

§ Como assumir com serenidade e verdade diante de Deus a nossa condição de pecadores e devedor necessitados de misericórdia?

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eles não são piores!

As tragédias não são castigos, mas deixam lições

877 | 25 de outubro de 2025 | Lucas 13,1-9

No evangelho que meditamos nos últimos dias Jesus nos disse que deseja que o fogo do Espírito se espalhe em toda a terra, mesmo que isso provoque algumas rupturas. Ele dá a entender que o tempo urge, e a última possibilidade para refazer as relações de fraternidade é aqui e agora. A reconciliação com os adversários ainda a caminho do tribunal é sinal de sabedoria, e não de fraqueza.

No trecho que meditamos hoje, o ensino de Jesus é motivado por duas violentas tragédias, bem conhecidas dos seus contemporâneos. A primeira, ocorrida a pouco e comunicada a Jesus naquele momento por algumas pessoas, é a violenta repressão desencadeada por Pilatos sobre um grupo de galileus, no interior do próprio templo sagrado. A segunda, que o próprio Jesus acrescenta, reforçando a primeira e chamando a atenção dos seus ouvintes, havia acontecido há mais tempo: a queda acidental de uma torre de guarda sobre algumas pessoas.

Jesus parte destes dois acontecimentos para corrigir uma visão parcial e errônea dos seus discípulos e demais contemporâneos, e para chamar todos à conversão ao Reino de Deus. Muita gente via acontecimentos semelhantes como a punição de Deus reservada aos pecadores. Por isso, a pergunta incisiva de Jesus: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?”

Jesus quer desfazer a ideia corrente de que as vítimas são as culpadas, e lê estes acontecimentos numa perspectiva profética: precisamos perceber neles um chamado à mudança de vida e de mentalidade. “Se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”, repete Jesus, como um refrão. Trata-se de “fazer as pazes”, ou de viver de modo fraterno e solidário com as pessoas que consideramos culpáveis e condenáveis, enfim, com nossos inimigos.

Mas isso deve ser feito sem nenhuma demora, com senso de urgência. Deus tem paciência com quem não produz frutos, mas ele tem seu calendário! À figueira estéril, que persistia sem frutos, ele dá só mais um ano! Ele cuida e trata com atenção e delicadeza, mas não é bobo. Aprendamos a contar nossos dias, não percamos a hora da graça, não deixemos para amanhã os passos que podemos dar hoje.

 

Sugestões para a meditação

§ Você percebe, em você, na sua família e na sua comunidade, a velha ideia de que as tragédias são castigos de Deus?

§ Quais são as consequências pessoais e eclesiais da afirmação de que ninguém é mais pecador que ninguém?

§ Será que, num certo sentido, alguns grupos religiosos atuais não estão presos à mesma mentalidade que Jesus reprova neste texto?

§ O que fazer para levar a sério a parábola dos adversários que precisam fazer as pazes antes de chegar ao tribunal?

Dois tipos de fiéis

PARA INACEITÁVEIS

Há uma frase de Jesus que reflete, sem dúvida, uma convicção e um estilo de atuar que surpreendeu e escandalizou os seus contemporâneos: «Não são os sãos que precisam de um médico, mas os doentes... Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores». O fato é histórico: Jesus não se dirigiu aos setores piedosos, mas aos indignos e indesejáveis.

A razão é simples. Jesus rapidamente compreende que a sua mensagem é supérflua para aqueles que vivem em segurança e contentamento na sua própria religião. Os justos quase não têm qualquer sentimento de necessidade de salvação. A tranquilidade que vem de se sentir digno diante de Deus e na consideração dos outros é suficiente para eles.

Jesus diz isso graficamente: não ocorre a um indivíduo cheio de saúde e força ir ao médico. Para que necessitam o perdão de Deus, aqueles que, no fundo do seu ser, se sentem inocentes? Como podem aqueles que se sentem protegidos diante d'Ele pela observância escrupulosa das suas leis, ser gratos pelo seu imenso amor e compreensão inesgotável?

Aquele que se sente pecador vive uma experiência diferente. Está claramente consciente da sua miséria. Sabe que não pode apresentar-se com dignidade suficiente a ninguém; nem diante de Deus; nem mesmo a si mesmo. O que pode fazer senão esperar todo o perdão de Deus? Onde encontrará a salvação senão abandonando-se ao seu amor infinito?

Neste momento, penso naqueles de vocês que se sentem incapazes de viver segundo as regras impostas pela sociedade; os que não têm força para viver o ideal moral estabelecido pela religião; aqueles que estão presos numa vida indigna; os que não ousam olhar nos olhos da sua mulher ou dos seus filhos; os que saem da prisão e voltam a ela; os que estão presos à prostituição... Não o esqueçam: Jesus veio para vocês.

Quando vos virdes julgados pela Lei, senti-vos compreendidos por Deus; quando vos virdes rejeitados pela sociedade, sabei que Deus vos acolhe; quando ninguém vos perdoe a vossa indignidade, senti o perdão inesgotável de Deus. Não o mereceis. Ninguém merece. Mas Deus é assim: amor e perdão. Podeis desfrutar e ser gratos. Nunca esqueçais disto: segundo Jesus, só saiu limpo do templo aquele publicano que se golpeava no peito, dizendo: «Ó Deus, tende compaixão deste pecador».

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez