Proclamemos com a própria vida a nossa fé!
(1Jo 1,5-2,2; Sl 123/124; Mt 2,13-18)
As luzes natalinas continuam acesas, ainda há doces que esperam pela nossa degustação, mas a festa do natal parece terminar em tragédia: no dia 26 fizemos memória do primeiro mártir cristão (Santo Estêvão) e no dia 28 recordamos (e festejamos!) o martírio das crianças de Belém pelas mãos do fraco, prepotente e sanguinário Herodes. Na festa dos Santos Inocentes, somos chamados/as a proclamar com a vida aquilo que professamos com os lábios; convidados a participar da eucaristia do universo com um coração simples e puro, com uma fé feita mais de ações que com palavras e promessas; interpelados a fazer justiça, ao menos não esquecendo as crianças que, no passado e no presente, são desrespeitadas em seus mais elementares direitos e feridas no corpo e na alma.
“Deus é luz e nele não há trevas.”
São João nos diz que Deus é Luz e que nele não há trevas. Convida-nos também a caminhar na luz de Cristo, que significa assumir serenamente nossos limites e pecados e viver em comunhão com os/as demais. Mediante a comunhão viva e ativa com as irmãs e irmãos pecadores, abrimo-nos solidariamente a eles/as, o sangue de Jesus Cristo purifica os nossos pecados e sua luz resplandece em nosso corpo. “Se caminhamos na Luz, então estamos em comunhão com os outros”.
A proposta de Jesus é que procuremos sempre evitar o pecado. Mas sabemos também que, se e quando pecamos, ele não é nosso acusador, mas nosso advogado. Ele já deu a vida antecipadamente como pagamento pelas nossas dívidas. Nossa vida está salva, redimida e, por isso, não precisamos ter medo que alguém nô-la roube. Nós podemos doá-la livre e gratuitamente. Esta vida que é dom que nos foi concedido, não nos pertence, mas também ninguém poderá roubá-la.
“O anjo do Senhor apareceu em sonho a José...”
Nos sonhos, José reforça a consciência de sua missão: tomar conta da vida do Menino e protegê-la ante todos os riscos e ameaças. A vida, em todas as suas formas e expressões, é santa e precisa ser cuidada. A vida dos pobres e pequenos é mais santa ainda, e merece um cuidado redobrado. Em vista disso precisamos estar prontos/as a arriscar nossa própria vida e desprezar as aparentes e frágeis seguranças. Nisso José, Maria e (mais tarde) Jesus são mestres, desde sempre.
Mateus nos mostra que José, o carpinteiro de Nazaré e marido de Maria, se inspira noutro José, aquele que fora vendido aos mercadores do Egito. É dele que aprendeu a sonhar. As preocupações e esperanças sofridas e alimentadas durante o dia se transformam em sonhos e soluções noturnas. Mediante os sonhos, o pai e protetor de Jesus toma consciência da urgência das situações, mostra-se pronto e faz-se obediente à vontade de Deus. “José levantou-se, de noite, com o menino e a mãe, e retirou-se para o Egito.”
“Quando Herodes percebeu que os magos o tinham enganado, ficou furioso...”
O risco escondido no ventre das posições de poder é provocar o obscurecimento da mente e da fé e fazer pensar que a coisa mais transcendente a ser feita é assegurar a sua própria continuidade. Assim o fez Herodes e muitos outros que o seguiram, ontem e hoje, nos palácios reais ou eclesiásticos, nas cúrias de todos os nomes e latitudes. Deus não chama seu filho entre os habitantes dos palácios, mas o protege nos caminhos e brechas da história e o chama dentre os exilados e deserdados.
Herodes fica furioso porque os magos o fazem de bobo. Acostumado a mandar e se impor pelo medo, não consegue admitir que alguém desobedeça suas ordens. A fúria que dorme sob o disfarce da complacência é subitamente acordada ao mais simples sinal de insubmissão. A raiva contra os magos se volta contra as crianças. Com medo de um concorrente no trono, Herodes opta pelo extermínio dos inocentes. “E mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o território vizinho, de dois anos para baixo.”
“Ouviu-se um grito em Ramá, um choro e grande lamento...”
Não importam tanto os acontecimentos históricos quanto a serena constatação de que o medo e a prepotência dos poderosos sempre fazem vítimas, e as crianças são atingidas em primeira linha, tanto pela fuga, pela fome, pela morte ou pela orfandade como por outras consequências da violência. Como diz o evangelista, citando o profeta Jeremias, a violência sofrida pelos inocentes é um grito que brada aos céus, provoca um lamento inconsolável e não deriva da vontade de Deus.
A Igreja acolhe o testemunho das crianças anônimas de Belém e as reconhece como mártires. Elas nem mesmo haviam conhecido Jesus e, menos ainda, tinham aderido ao seu caminho. Mas tiveram a vida estraçalhada por causa de Jesus Cristo. Sem falar, eles confessaram com o sangue a chegada do Filho de Deus, abriram com seus pequenos corpos os caminhos do Reino de Justiça e de Paz, e testemunharam a violência mórbida e desumanizadora de Herodes.
“Do Egito chamei o meu filho...”
Anjilus Soren é um rapaz de 17 anos que vive perto de Chockarhat, Bangladesh. Sempre que ele vai ao mercado desta cidade, que fica a apenas 1 quilômetro da sua casa, Anjilus tem vontade de tomar um chá, como é tradição no seu país. Mas isso não é possível, porque os donos dos bares e restaurantes se recusam a servi-lo, pois ele é da tribo Santali. Dizem que tudo o que alguém dessa tribo toca, fica impuro. Todos os que pertencem à tribo Santali são odiados pelos muçulmanos bengali...
‘Mi Swe’ é uma jovem birmanesa de 17 anos. Vive na Austrália, mas não por livre escolha sua. Em 1983 sua família teve que deixar a Birmânia e viver num campo de refugiados, na Tailândia. Em 1995 o exército invadiu o campo e destruiu tudo, e sua família teve que fugir para outro campo de refugiados, onde nasceu Mi Swe. Sem segurança, sem escola e passando fome, o pai de Mi Swe pediu asilo à Austrália, pelo qual teve que esperar 15 anos. Ali a família está tentando reconstruir a vida.
Estes dois fragmentos biográficos de crianças e adolescentes golpeados pela violência podem ser completados por milhares de outros que todos conhecemos muito bem: das crianças-soldados em alguns países do continente Africano aos menores abandonados das ruas do Brasil; dos descendentes de indígenas destruídos em sua identidade cultural aos meninos arregimentados pelo tráfico de drogas; dos crianças do carvão no interior do Brasil aos quebradores de pedras de Madagascar e Moçambique...
“A armadilha quebrou e recuperamos a liberdade.”
Apesar das aparências contrárias, a liturgia de hoje não é um lamento, mas um convite à confiança. Na sua carta, depois de lembrar nossas fragilidades e limites, João afirma: “Temos junto do Pai um defensor!” E a comunidade peregrina que canta seu salmo no templo, não cansa de repetir: “Bendito seja o Senhor!...” Em todos os riscos e acidentes enfrentados na longa peregrinação de subida para Jerusalém os fiéis romeiros haviam experimentado claramente que o Senhor estava ao lado deles.
A fé que herdamos dos/as cristãos da primeira hora nos informa discretamente que aqueles que semearam violentamente a morte dos inocentes não duraram muito (cf. Mt 2,20). E a voz popular que ressoa no Salmo 123/124 rejubila: “Como um passarinho, fomos libertados da armadilha do caçador... A armadilha quebrou, e recuperamos a liberdade... Nosso auxílio está no nome do Senhor, que fez o céu e a terra!” Sim, Deus está ao lado dos pequenos e peregrinos, e impede que as águas do mar da vida os sufoquem.
Por isso, por ocasião da festa dos Santos Inocentes somos convidados a ultrapassar a simples denúncia dos maus-tratos impostos de muitas formas às crianças, assim como a reinvindicação dos seus legítimos direitos. Esta é uma oportunidade para lembrar, junto com o sangue e as lágrimas derramadas, as inúmeras e belas iniciativas postas em movimento para quebrar as armadilhas que ameaçam a vida das crianças. E sem esquecer que tantas delas são concebidas e levadas aidante por comunidades eclesiais e religiosas.
“O nosso auxílio está no nome do Senhor!”
Deus pai e mãe das vítimas, dos migrantes, dos órfãos e das viúvas: no Menino da manjedoura mostraste ao mundo a glória da compaixão, e na fuga para o Egito partilhaste o destino de todos/as os/as perseguidos/as por causa do teu Nome.Desde criança aprendemos que é da boca dos pequeninos, das frágeis crianças lactantes, que recebes o perfeito louvor. Sabemos que as crianças de Belém anunciaram, não com palavras mas com o próprio sangue, a glória de teu Filho nascido na manjedoura. Faz com que nossa vida, tanto nas grandes alianças e opções como nas práticas cotidianas, testemunhe nossa fé em Jesus de Nazaré e na aurora invencível do teu Reino. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Nenhum comentário:
Postar um comentário