A resposta à pergunta do titulo não é assim tão óbvia. A maioria de nós dá por descontado que o “espírito de natal” tem pouco ou nada a ver com a agitação comercial que, mesmo assim, invade tudo e todos. Mas geralmente a descrição convencional daquilo que se diz “espírito de natal” não sai fora do âmbito da pacificação e da fraternização das relações interpessoais, de um olhar mais generoso sobre a própria vida e a história pessoal, de uma comovida abertura à dimensão trascendente e religiosa das coisas e fatos.
Mesmo em nossos templos – católicos, ortodoxos, evangélicos ou pentecostais – os temas em torno do qual gira a maioria das pregações, orações e canções são poucos e escorregadios: no presépio, Deus se faz humano; com Jesus, a Paz do céu desce sobre a terra; Deus se faz humano para que nos tornemos divinos; o amor de Deus não tem limites; a felicidade não vem do acúmulo ou do consumo de bens, mas da paz no coração; etc.
Mas a Palavra de Deus recomendada para o tempo que antecede o Natal sublinha frequentemente a mudança e a conversão como caminhos que concretizam o Natal e nos levam a ele. A manifestação de Deus, sua intervenção no mundo, sempre traz uma mudança substancial, tanto nas pessoas como nas estruturas sociais. Claro está que quando falamos em conversão não estamos falando de reconhecer e confessar pecados mais ou menos individuais, situados no estreito mundo da moralidade das relações interpessoais e dos deveres religiosos. Trata-se de uma força que, entrando na história, verte seus dinamismos e estruturas a serviço da vida dos oprimidos. Vejamos alguns exemplos.
Nos dias 19, 23 e 24 escutamos a história de Isabel e Zacarias, velho e piedoso casal judeu, amargurado por não ter nenhum filho. Isabel e Zacarias viviam essa situação como um castigo de Deus e como vergonha diante do povo. A este respeito, a fala da Isabel é paradigmática. Ela interpreta sua gravidez como uma bênção de Deus que muda uma situação marcada pela exclusão e pelo desprezo: “Assim o Senhor fez comigo nestes dias: ele dignou-se tirar a vergonha que pesava sobre mim” (Lc 1,25). Há uma mudança objetiva, visível, com sensíveis repercussões sociais. É uma salvação frente aos inimigos e a todos os que os odeiam e desprezam, um auxílio concreto e efetivo para quem estava como que envolvido ou ameaçado pelas sombras da morte (cf. Lc 1,67-79).
Nos dias 20 e 21 contemplamos a história de Maria e de José de Nazaré. Por mais que a iconografia insista em representar Maria sozinha, como se não tivesse pais nem noivo, esta jovem estava comprometida com José, e também ele é envolvido na história. Mas costuma-se também “esquecer” que Maria compartilhava com seu povo da Galiléia a ferida do desprezo e da humilhação. A suspeita com que os líderes religiosos olhavam para o povo daquela região só aprofundava a dor já insuportável provocada pela pobreza e pela dominação romana.
Quando Maria, depois do anúncio do Anjo, se encontra com Isabel e ambas reconhecem e celebram a visita de Deus ao seu povo, seu canto rompe as fronteiras da piedade religiosa e da subjetividade estreita e fechada. Soltando profeticamente suz voz, ela proclama aos quatro ventos que “Deus olhou para a humilhação (que mão burguesa traduz por “humildade”!) de sua serva”. Mas se alguém ainda duvida da adequação desta tradução, as estrofes seguintes do ousado canto da jovem de Nazaré não deixam margem de dúvida: Deus mostra a força do seu braço dispersando os orgulhosos e usando de misericórdia para com os humildes; derrubando os poderosos e exaltandos os humilhados; saciando a fome dos pobres e despedindo os ricos de mãos vazias. A vida concreta de Jesus comprovará que Maria não estava enganada ou doida e que o espírito de Natal é revolucionário.
E o que dizer dos proscritos pastores? Eles são os primeiros a receber a Boa Notícia destinada a todo o povo, as primeiras testemunhas a contemplar a Palavra feita carne, os primeiros mensageiros a passar adiante esta notícia: de suspeitos e proscritos passam a apóstolos respeitados! E os magos vindos do oriente, estrangeiros suspeitos, crentes de segunda categoria? Procurando, encontrando e reconhecendo Deus no menino deitado no cocho, eles são colocados à frente e acima dos líderes do judaísmo e das autoridades de um reino dependente. Isso não é mudança?
Itacir msf
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