Jesus criança, o rosto humano da ternura de Deus (Lucas 2,1-20)
No segundo capítulo de Lucas, ainda estamos no
Evangelho da Infância de Jesus (Lucas 1-2). Mais do que dizer como os fatos
aconteceram, essas narrativas querem conduzir-nos para além dos fatos, querem
ir mais fundo. São literalmente parábolas, isto é, querem jogar para além. Por
isso, fazem uma leitura teológica da infância de Jesus para servir de luz na
caminhada das pessoas e das comunidades a quem elas se destinam, ontem e hoje.
Um dos textos propostos para refletir na noite de
natal é a narrativa a respeito do nascimento de Jesus segundo Lucas 2,1-7.
Podemos dividir este relato em três partes.
Naqueles dias, saiu
um decreto de César Augusto...
A primeira parte situa o nascimento de Jesus na
difícil realidade de seu tempo (Lucas 2,1-2). O povo judeu, como tantas outras
nações, está sob a dominação do império colonialista de Roma. O nome do
imperador da ocasião era César Augusto, que governou em Roma do ano 31 a.C. até
o ano 14 d.C. Seu governo, portanto, durou nada menos que 45 anos. Foi Augusto
quem deu início ao império romano, concentrando, dessa forma, ainda mais do que
na época da república, o poder político, militar e econômico na capital imperial.
A comunidade de Lucas conhecia muita bem como os imperadores oprimiam as nações
subjugadas. Anotou, inclusive, a análise crítica que Jesus fazia de sua
tirania: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se
fazem chamar benfeitores” (Lucas 22,25).
Quirino, o governador romano na Síria, foi o
responsável para organizar o recenseamento na região. Sabemos que os principais
objetivos do censo tinham em vista a opressão política e econômica. Tinha como
meta saber o número de homens aptos a serem eventualmente recrutados para a
guerra (os judeus tinham o privilégio de não prestar serviço militar no
exército romano), bem como saber a quantidade de pessoas sobre as quais cobrar
impostos. Os tributos cobrados por Roma
passavam os 50% do rendimento das famílias dos povos colonizados. Dessa
forma, Roma, além de ser o centro da dominação imperialista, tornava-se também
um grande centro de acumulação de riquezas.
Mateus situa o nascimento de Jesus somente no
contexto da Palestina, no tempo do rei Herodes (Mateus 2,1-12). Diferente é com
a narrativa do nascimento de Jesus em Lucas. Ao situá-lo no contexto mais amplo
do império, as comunidades de Lucas querem apresentar Jesus tendo uma missão
universal. Ele veio trazer a libertação, a salvação para todos os povos. É essa
também a razão por que Lucas faz recuar a genealogia de Jesus até Adão (pai de
toda humanidade – Lucas 3,38), diferentemente de Mateus, em que a linha de
filiação de Jesus vai somente até Abraão (pai somente do povo de Israel –
Mateus 1,2).
A realidade do povo de Jesus não era muito
diferente da nossa situação no Brasil hoje, onde vemos se impondo, com a total
subserviência dos poderes jurídico e midiático, o império do Deus Capital que é
comandado, não a partir de Roma, mas a desde os centros de poder econômico,
militar e de inteligência estadunidenses.
Maria deitou seu
filho numa manjedoura...
Na segunda parte de nosso texto (Lucas 2,3-7),
outra novidade nos é apresentada. Diferentemente
dos poderosos, cujo poder está calcado nas armas do exército e nas riquezas
acumuladas no centro do império, Jesus vem da periferia. Ele não só não vem
de Roma, capital do império, ou de Jerusalém, capital dos judeus, mas vem de
Belém, uma aldeia periférica na Judeia.
De um lado, seu nascimento é situado em Belém,
especialmente para colocar Jesus na tradição e na esperança profética de seu
povo (Miqueias 5,1-3). De outro, é para dizer que, desde o começo de sua vida, Jesus tem a mesa da partilha como
centralidade de seu projeto. É que Belém quer dizer casa do pão. Daí ser
teologicamente fundamental situar o nascimento de Jesus em meio ao pão. Já
dizia Noemi, a sogra de Rute, que Deus visitara seu povo dando-lhe pão (cf.
Rute 1,1.6). E, mais uma vez, em Jesus de Nazaré, Deus visita seu povo na casa
do pão.
Não é por acaso, que Jesus assumiu como eixo de sua
missão a partilha dos pães de acordo com a necessidade de todas as pessoas.
Temos, inclusive, dois relatos exemplares dentre as muitas partilhas que sua
presença promoveu em meio ao povo (cf. Marcos 6,30-44; 8,1-10). Além disso, não
pode escapar ao nosso olhar que Jesus colocou o pedido pelo pão no centro do
Pai-nosso, no coração de sua oração, de sua conversa com o Pai, síntese do seu
projeto (cf. Lucas 11,2-4; Mateus 6,9-13). Por fim, não é mera coincidência que
também a partilha do pão foi o símbolo maior da boa nova do Pai, celebrada ao
redor da mesa na santa ceia (Lucas 22,14-20).
Como vimos, Jesus não só não vem de Roma, capital
do império, nem de Jerusalém, capital dos judeus, mas vem de Belém, uma aldeia periférica na Judeia. E mais. Se Belém já
é uma aldeia marginal, Jesus nasce ainda
mais na exclusão, nasce numa estrebaria, num estábulo nos arredores de
Belém, “porque não havia lugar para eles na hospedaria” (Lucas 2,7). Ali, seu primeiro
berço foi uma manjedoura, um cocho onde os animais comem o seu alimento.
Também não é por acaso que o primeiro berço de
Jesus é uma vasilha em que se coloca a comida, o pão cotidiano dos animais.
Segundo o relato, os pais de Jesus eram forasteiros no lugar e não tinham onde
pernoitar. É a partir dessa realidade
extrema de marginalidade e de fragilidade, de abandono e de solidão de uma mãe
dando à luz a sua criança, que vem a força do Deus libertador que quer incluir
todas as pessoas de boa vontade em seu reinado de justiça e de paz. Deus se
revela na fragilidade e na ternura de uma criança. Jesus criança é o rosto
humano da ternura de Deus e, ao mesmo tempo, o rosto divino do ser humano.
Hoje, podemos até concordar que o ambiente natalino
respira um ar de harmonia e de confraternização universal. No entanto, o que se
vê, de fato, é que a celebração do nascimento de Jesus foi manipulada e
mascarada pelo mercado em função do consumismo que legitima relações desiguais,
portanto, injustas. Quantas crianças ficam de fora desse natal do consumismo?
Neste sentido, não é o
natal de Jesus um sinal subversivo, ao revelar que Deus está justamente nos
lugares dos quais muitas pessoas fazem questão de passar longe? Não é
revolucionária a estrela da criança de Belém ao revelar a solidariedade de Deus
para quem se encontra bem longe, na periferia? Não será que a sociedade
capitalista justamente domesticou o natal de Jesus para manipular a sua força
transformadora de todas as formas de violência e de exclusão? Por
que será que nossas autoridades, que usurparam o poder popular, deixam-se
fotografar ao lado de papai Noel, mas alimentam aversão ao presépio do menino
de Belém e às ruas onde o povo está?
Eu vos anuncio uma
grande alegria: nasceu-vos hoje um Salvador...
A terceira parte nos leva aos pastores, os
primeiros destinatários dessa boa notícia da presença de Deus na frágil criança
da manjedoura em Belém (Lucas 2,8-20). Um mensageiro levou a luz de Deus a
pastores que, nos arredores, cuidavam dos rebanhos. Justamente a pastores,
pessoas analfabetas, pobres e que eram marginalizadas. O mensageiro de Deus não anuncia essa boa nova a César Augusto em Roma,
nem ao governador Quirino na Síria, nem em Jerusalém ou no centro de Belém.
Mas é
a partir dos últimos da sociedade que é anunciada a paz para todas as pessoas.
Sim, a luz da criança de Belém brilha para todas as
pessoas, da mesma forma como o sol brilha para justos e injustos. No entanto,
nem todas acolhem a luz de Deus. Assim foi no tempo de Jesus. Assim também é em
nossos dias. Enquanto as autoridades buscam formas de difamar e matar o messias
solidário com seu povo, os pastores reconhecem nele a revelação de Deus, pois
se colocou a serviço da vida, a serviço de um mundo mais igual. A salvação não
vem das autoridades, mas desta frágil criança. Os senhores deste mundo preferem
a calúnia, preferem a morte. A salvação, porém, está no senhorio do menino de
Belém. Ele é o Senhor da vida e quer que o mundo todo seja Belém, a casa do pão
sem exclusão.
Como Maria (Lucas 2,19), guardemos em nosso coração essa
boa nova de Deus que continua se revelando a partir da margem. Guardar
no coração, como Maria, é fazer uma
profunda experiência com esse Deus que se revela na fragilidade da criança do
estábulo de Belém e deixar que ela nos transforme e conduza as nossas vidas,
ao ponto de tornar-nos sempre mais parecidas e parecidos com ela. Mais adiante,
Jesus mesmo dirá: quem não receber o reinado de Deus como uma criança, não
entrará nele (Lucas 18,17). Dessa forma, igualmente como Maria, daremos nossa
contribuição, por pequena que seja, a serviço do reinado de Deus e de sua paz,
fruto da justiça.
Que a luz da estrela de Belém ilumine nossos
corações, nossos lares e nossos caminhos...
Ildo Bohn Gass
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