sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Nossa Senhora da Salette, uma reflexão

Nossa Senhora da Salette: um caminho de conversão e de paz

(Iluminação: 1Timóteo 1,15-17; Salmo 112/113; Lucas 6,43-49)

 

1)     A boa notícia

O que nos atrai e nos reúne como Igreja é a certeza de que nela recebemos e vivemos uma Boa Notícia, um Evangelho: somos família de Deus, membros de um corpo gracioso e generoso, irmãos que se acolhem na igualdade e na fraternidade. Esse convite ressoa de um modo todo particular dos lábios da Mãe de Jesus, nas montanhas francesas de La Salette: “Venham meus filhos e filhas, não tenham medo... Eu tenho uma boa notícia para vocês!”

O apóstolo São Paulo viveu e anunciou essa Boa Notícia como ninguém: “Segura e digna de ser acolhida por todos é esta palavra: Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores. E eu sou o primeiro deles! Por isso encontrei misericórdia, para que em mim, como primeiro, Cristo Jesus demonstrasse toda a grandeza de seu coração”. Deus não é uma espécie de chefe ou patrão tirano, sempre pronto a cobrar, acusar, ameaçar e despedir. Nossas dívidas, que são reais, foram pregadas com Jesus na cruz e por ele pagas, até o último centavo.

Enraizado e alicerçado nessa experiência, Paulo proclamou por onde passou, a quem conheceu e enquanto viveu que, em Cristo, somos novas criaturas, gente nova. Por isso, entre nós e diante de Deus não há diferença entre homem e mulher, entre cristão e pagão, entre escravo ou livro, entre jovens e velhos. Somos todos irmãos e irmãs, pedras diferentes e igualmente importantes na construção do templo vivo. Há 127 anos, a ordem de Maria nos impele: “Vão, meus filhos e filhas, e anunciem isso a todo o meu povo!

Também a família é um dom de Deus e uma Boa Notícia. É bom ter nascido, ter sido acolhido, acompanhado e educado no ambiente de uma família. É bom contar por toda a vida com irmãos e irmãs, com pais amorosos, com filhos agradecidos, com cunhados e cunhadas, sogros e sogras, genros e noras, avós e netos. Eles não são um peso, mas um amparo! É muito melhor ter alguém próximo, mesmo que sejam exigentes, que viver sozinho, como se fôssemos um fragmento de nada perdido na imensidão de um mundo anônimo e frio.

Por isso, cantamos agradecidos e proclamamos com entusiasmo, com o Salmista: “Quem pode comparar-se ao nosso Deus, que se inclina para olhar o céu e a terra? Levanta da poeira o indigente e do lixo ele retira o pobrezinho”. A experiência de sermos amados e acolhidos nos faz sujeitos de amor e de acolhida. No caminho de discípulos de Jesus somos transformados em missionários.

 

2)     A purificação da mente e do coração

Jesus Cristo não exige que sejamos bons como condição para nos acolher e perdoar. Ele nos acolhe e nos perdoa porque ele é bom, e não porque nós sejamos puros e corretos. Ele toma a iniciativa, vem ao nosso encontro, nos acolhe sem impor ou exigir nada, se faz nosso irmão primogênito, cabeça do corpo do qual somos membros.

Baseados nessa experiência e por ela dinamizados, descobrimos a beleza do chamado a sermos semelhantes a ele: em tudo, amar e servir a Deus e às criaturas nas quais ele está presente. Da graça brota a missão. O amor recebido pede para ser amor compartilhado. E assim entramos num caminho de conversão do modo de pensar e de agir, num caminho de purificação dos pensamentos e dos sentimentos, num caminho de coerência entre aquilo que dizemos crer e aquilo que fazemos.

Jesus nos diz que uma árvore boa produz frutos bons, e uma árvore ruim produz frutos ruins. Somos ramos da videira que é Jesus, e não galhos de um espinheiro ou de uma árvore venenosa. Nossas relações, nossos projetos e nossas decisões revelam que tipo de árvore nós somos. Se não é possível mudar a natureza de uma árvore, com a pessoa humana é diferente: é possível mudar!

No evangelho de hoje, Jesus diz claramente: “A pessoa boa tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas a pessoa má tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio”. Aquilo que carregamos no coração ou na mente não vem do nada, nem nascem conosco. Somos nós que alimentamos nossos sentimentos e informamos nossos pensamentos. Tiramos deles o que neles acolhemos e guardamos. Somos responsáveis pelos nossos sentimentos e pelos nossos pensamentos.

 

3)     O caminho da paz

O caminho da paz certamente começa no nosso próprio coração, nos nossos sentimentos e relacionamentos mais básicos. Precisamos tomar consciência dos nossos sentimentos e dos nossos desejos e pensamentos. Precisamos purificar nosso coração para que possamos ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. Precisamos exercitar a coerência entre o que escutamos, o que sentimos, o que cremos e o que praticamos.

Jesus nos questiona duramente: “Por que me chamais: 'Senhor! Senhor!', mas não fazeis o que eu digo? Vou mostrar-vos com quem se parece todo aquele que vem a mim, ouve as minhas palavras e as põe em prática”. Quem invoca o Senhor para vir em seu socorro e indicar seu caminho precisa pôr em prática aquilo que ele nos diz. Sem isso, sua vida cristã carece de fundamento, não se sustenta. Maria é eloquente na advertência que dirige aos videntes: “Se a vida é ferida e se há sofrimento, isso é por causa de vocês. Mas se vocês se converterem, haverá pão em todas as mesas e o traje de luto se transformará em vestes de festa”.

Por isso, o caminho que nos leva à paz na família e na sociedade tem três pistas complementares, e todas precisam ser percorridas: querer o bem dos outros e desejar-lhes a paz; dizer o bem aos outros e pronunciar palavras que pacificam os ânimos; fazer o bem aos outros e promover a paz por gestos e ações concretas. Em outras palavras: bem querer, bem dizer, e bem fazer.

Querer o bem e desejar a paz: Precisamos cultivar, na nossa interioridade mais profunda, o desejo de paz, o desejo de que todos vivam bem. E isso supõe abandonar desejos doentios que não conseguem imaginar nada de bom para os outros, que todos se lasquem, que lambam suas próprias feridas, que bebam do seu próprio veneno; abandonar a intolerância que tende a contaminar mortalmente nossos pensamentos e sentimentos. Esse desejo faz mal, antes de tudo, a quem o cultiva.

Dizer o bem e anunciar a paz: A passagem do desejo e do sentimento à realidade passa necessariamente pela linguagem, pela palavra e pelo gesto. É importante cultivar e multiplicar palavras sinceras de estímulo e de apoio aos outros, reconhecer a dignidade deles, expressar nossos desejos de “tudo de bom” ou “sucesso”, de “Deus te abençoe”.

Fazer o bem e construir a paz: Como nos adverte Jesus, a vida e a fé não se resumem a sentimentos nem a palavras. Ficar nisso significaria construir sobre a areia. Nossas palavras e nossos desejos precisam se transformar em relações e ações concretas que afirmem a dignidade e o valor dos outros, que diminuam a intolerância, a competição e a agressividade, que criem um ambiente sadio no qual cada criatura possa viver e se manifestar em sua originalidade. Significa engajar-se nas lutas comunitárias pela justiça e pela paz.

 

4)     A família, um espaço para o amor e a fé

O que constitui e mantém uma família não são os vínculos legais nem os laços de sangue. O alicerce firme de uma família são os laços de afeto, de acolhida e de comunhão que faz dela o espaço do perdão, da busca e da festa.

São essas relações que têm o poder mágico de transformar uma casa ou um apartamento, e até um barraco sob o viaduto, em um lar. Ou de unir para sempre, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, pessoas, etnias e gerações diferentes.

Como espaço relacional que nos acolhe em nossa fragilidade inicial e final, a família é também um ambiente educativo, no qual aprendemos e exercitamos os valores e princípios que, mais que a alfabetização ou a formação profissional, nos fazem humanos, cidadãos e cristãos.

É também no ambiente familiar que desenvolvemos a coerência entre o que sentimos, o que comunicamos e o que fazemos; que articulamos o bem querer com o bem dizer e o bem fazer; que fazemos a passagem da promessa à prática.

 

5)     Construir a família sobre alicerce sólido

Invocamos hoje a Sagrada Família de Nazaré, pedindo que nos fortaleça no amor e na fé. Em outras palavras, pedimos que ela nos ajude a construir nosso núcleo familiar sobre o alicerce firme da coerência entre o que dizemos e o que fazemos. E isso tem várias consequências.

A primeira, é que não podemos nunca esquecer que somos o primeiro entre os pecadores, como diz Paulo; mas pecadores perdoados por Jesus. A família é um grupo de pessoas “terrivelmente humanas”, irremediavelmente pecadoras e falíveis, mas incondicionalmente perdoadas. A família é o lugar onde vivemos o perdão!

A segunda, é que jamais podemos desistir de purificar nosso coração e pacificar, pois dele podemos tirar coisas boas e coisas más, palavras boas e palavras ruins, decisões boas e decisões desastrosas. O diálogo, o confronto sincero e leal, a oração serena e confiante, a meditação da Palavra de Deus, vão, pouco a pouco, educando, formando e pacificando o nosso coração.

A terceira, é que o horizonte da fé também nos ajuda a visualizar a vida familiar de um ponto de vista mais amplo, libertando-a dos limites de sangue, de raça, de religião, de classe social; e dos limites do passado ou do presente. Nossa família é a humanidade inteira, somos todos irmãos e irmãs, família do Pai, corpo de Cristo. Nossa família não começou com o casamento nos pais nem terminará quando os filhos casarem e constituírem a sua família. Ela passa por diversas etapas, com diferentes constituições, mas abrange diversas gerações, passadas e futuras. E então é importante levar em conta a pergunta: que herança deixaremos para nossa família, para as gerações que virão depois de nós?

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