Paradigmas
da Ação Missionária
A
segunda semana da segunda etapa do Curso
de Aperfeiçoamento da Ação Missionária, promovida pelos Missionários da
Sagrada Família e executada pelo Instituto
Superior de Filosofia Berthier, iniciou hoje, em Passo Fundo (RS).
Participam dos estudos mais de 50 pessoas – padres, religiosos, religiosas e
leigos e leigas – provindos de diversas regiões do Brasil, do Chile, da Argentina,
da Espanha e da Itália. O curso teve uma primeira etapa de duas semanas em
julho passado, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. As reflexões de hoje contaram
com a assessoria do professor italiano Mémore Restori, que atua no Centro Cultural Missionário, em Brasília,
que desenvolveu o tema dos paradigmas da ação missionária.
Missão: uma realidade complexa
O
professor ítalo-brasileiro começou sublinhando que nenhuma definição
particular, parcial e fragmentaria pode dar conta da riqueza e da complexidade
da realidade da missão. “Evangelização” é, em termos gerais, o anúncio de
Cristo, mas “missão” é uma realidade mais complexa, que inclui anúncio,
promoção humana e libertação. Complexo é também o contexto no qual a missão se
realiza, e pede uma abordagem na perspectiva do pensamento complexo, que supera
tanto o pensamento linear como o pensamento sistêmico.
Parafraseando
Jesus em Mateus 9,35-38, podemos dizer que hoje a tarefa da colheita é, além de
grande, complexa, e pede mais trabalhadores (capacitados, lúcidos) em condições
de ler os sinais dos tempos e de dialogar com os diferentes sujeitos sociais. Sobre
a missão e a evangelização podemos conceituações apenas provisórias. Não
podemos imaginar delinear a missão com excessiva nitidez e autoconfiança. Como
assevera Bosch, a missão permanece¸ em última análise, indefinível, e nunca
deveria ser encerrada nos estreitos limites dos conceitos sempre ligados às
nossas predileções.
Missão: ação de Deus!
O
professor Mémore insiste, na linha do Concilio Vaticano II, que a missão dos cristãos
e da Igreja é sempre serviço à missão de Deus, o verdadeiro sujeito que inicia,
dinamiza e dirige a missão. “Missão” (no singular) está sempre referida a Deus,
enquanto que “missões” (no plural) é um conceito referido à ação da Igreja nos
diversos contextos visando realizar a missão de Deus. Não é a Igreja que tem
uma missão no mundo, mas a missão de Deus que pede um sujeito de ação que
inclui a Igreja.
A
vida cristã e a Igreja são missionárias não porque se deslocam aos confins da
terra, mas porque o Evangelho de Jesus Cristo tem um alcance universal. A
missão não se refere essencialmente às iniciativas humanas e institucionais,
mas ao Espírito Santo. Não é a Igreja que faz a missão, mas a missão que faz a Igreja.
A missão é ponto de partida e de chegada, um remédio que revigora e revitaliza
a Igreja: quando se põe em saída para testemunhar a “salvação”, a Igreja, mesmo
não tendo este objetivo, rejuvenesce a si mesma.
Os paradigmas mudam!
A missão
é uma só nos diferentes tempos e espaços, mas mudam os modelos de pensamento e ação
(paradigmas) que delineiam e articulam a missão. São as novas experiências da
prática missionária que mostram a caducidade de alguns paradigmas e pedem novas
abordagens, novos modelos interpretativos. A complexidade das práticas não cabe
mais nos velhos conceitos, estreitos demais, lineares ou sistêmicos. Novas
perguntas pedem novas respostas. A mudança de paradigmas busca conjugar revisão
histórica com interpretação teológica.
O teólogo
David Bosch, partindo do quadro teológico de Hans Kung, fala de (1) modelo
néo-testamentário de missão (centrado na parusia,
a partir da convicção de que todas as diferenças e hierarquias foram anuladas; (2)
modelo missionário oriental (centrado no amor ao mundo não para julgá-lo
mas para condená-lo, amor demonstrado pela comunidade
reunida); (3) modelo católico da idade média (as pessoas e povos devem ser
forçados a entrar no cristianismo); (4) modelo protestante da reforma (somente
a Escritura, a Graça, a Fé, Jesus Cristo: na pratica, não existe missão, pois a
pessoa chega a Deus por si mesma); (5) modelo moderno do iluminismo, focalizado
na doutrina racionalmente clara; (6) modelo ecumênico emergente.
Mas
outros pensadores, cada um a partir de seu próprio horizonte experiencial e teórico,
nos oferecem diversos modelos típicos ou paradigmas de missão. Severino Dianich
fala em (1) modelo missão cumprida, (2) modelo de missão adiada (Foucauld), (3)
modelo de missão escondida (inserção anônima e solidaria), (4) modelo de missão
contra gentes (cruzadas), (5) modelo
de missão ad gentes (no “Novo Mundo”)
e (6) modelo de missão histórico-salvífica (Vaticano II).
Partindo
da compreensão da vida cristã como se fosse um rio, que assume características
diversas de acordo com as mudanças geológicas e geográficas do seu percurso e
leva submersas diferentes correntes com forças e características particulares,
Bevans e Schroeder falam de três paradigmas teológicos: (1) paradigma ortodoxo
e conservador, que centraliza a missão na salvação das almas e na propagação da
Igreja; (2) o paradigma liberal, que pensa a missão como busca e descoberta da
verdade; (3) o paradigma radical ou da libertação, que pensa a missão como
colaboração com a libertação da humanidade.
Missão: um conceito em
constante evolução
Até
o século XVI, a palavra “missão” era um conceito ligado à doutrina trinitária.
Os jesuítas foram os primeiros a usar este conceito para falar da difusão da
fé, no bojo da expansão colonial do século XVI. Até o Vaticano II, em termos
gerais, “missão” era entendida como envio de agentes eclesiásticos a
territórios específicos e atuação nesses territórios.
A
expressão “missão” supõe alguém que envia, alguém que é enviado, os
destinatários do envio e a incumbência de quem é enviado. O problema é que a
Igreja foi progressivamente entendendo a si mesma como aquela que envia,
usurpando esse papel que pertence unicamente a Deus! Assim, a missão passou a
ser vista como algo que a Igreja faz fora dela mesma, assume uma conotação geográfica,
implica em considerar o outro como simples destinatário e tabula rasa, leva a
falar em missões, concentra a responsabilidade no Papa e nos seus organismos. A
consequência é que os missionários não pertencem mais à Igreja de origem, a
missão é um tema anexo à eclesiologia, dizer que uma Igreja local é território
de missão é recebido como uma ofensa, a Igreja se sente enaltecida pelas obras
missionárias, a cooperação missionária é expressão de caridade para os mais
necessitados.
A
ideia de inculturação entra no vocabulário teológico apenas em 1979, pois até então
falava-se apenas em adaptação. A
identidade cultural dos povos não era considerada, a civilização cristã
não valorizava a originalidade cultural (os povos eram vistos como selvagens,
primitivos, pagãos), havia uma certa identificação entre evangelização e
civilização, e produziu-se uma grande uniformidade de ritos, leis, visões.
No
período pré-conciliar, desde o final do século XIX, a teologia da missão foi
sendo renovada progressivamente, estimulada por fatores internos e externos: o
processo de secularização e de descristianização; a configuração plural do
mundo e a descolonização; a divisão entre ricos e pobres e o enfraquecimento
das potências mundiais. Ao mesmo tempo, nesse período a Igreja experimenta
crises e processos internos de renovação: o movimento da nova teologia (que
dialoga com as ciências e a modernidade); os movimentos de renovação bíblica e
de renovação litúrgica; o movimento ecumênico, o movimento dos leigos e o
nascimento das obras missionárias.
Passos de uma teologia da missão
Em
1896, na Alemanha, foi fundada a primeira cátedra de missiologia, por
iniciativa do teólogo Warneck. Em 1911nasceu em Münster, por iniciativa de Schmidlin,
o Instituto Internacional de Pesquisas Missiológicas. Karl Barth busca na
teologia a base e o horizonte da missiologia, deslocando-a da antropologia: ele
localiza a missão no desejo e no dinamismo de Deus, e não necessidade
antropológica e eclesiológica
Alguns
documentos surgidos nas décadas anteriores ao Vaticano são importantes e
ajudaram a preparar a renovação missiológica: Maximum illud, de Bento XV, publicado em 1919; Rerum ecclesia, de Pio XI, dado ao conhecimento público em 1926; Evangelii praeconis, de Pio XII, promulgado
em 1951; Fidei donum, também de Pio
XII, publicado em 1952; Princeps pastorum,
de João XXIII, dado à Igreja em 1959.
Mas
nada se compara à contribuição que nos veio do Concílio Vaticano II, que muda a
ideia de uma Igreja que tem missões a uma Igreja que é missionária; de uma visão
de missão como conquista ao pensamento da missão como diálogo; de uma missão
centrada na Igreja para uma missão centrada no Reino de Deus. Este é,
entretanto, tema de uma reflexão que não cabe neste espaço!
Itacir Brassiani msf
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