A solidariedade é o
cumprimento da justiça de Deus!
O hábito católico
de batizar as crianças logo que nascem não pode obscurecer a inteligência e nos
levar a esquecer que o batismo pregado e realizado por João Batista não gozava
de estima junto às autoridades religiosas do judaísmo. Esta prática não lhes
parecia ortodoxa, tinha conotações de insubordinação e de inovação inaceitáveis,
claramente contrárias aos interesses e à doutrina do templo. Por isso, desfrutemos
da festa do batismo de Jesus como uma boa oportunidade para compreender mais
clara e profundamente o sentido deste rito e sacramento cristão.
Os doutores
da lei ensinavam que os incontáveis pecados do povo ignorante suscitava a ira
de Deus, que havia fechado o céu e encerrado sua comunicação com a humanidade.
O povo, por sua vez, estava acostumado aos anúncios ameaçadores e à violência
simbolizada na quebra da cana rachada e na extinção da frágil luz das velas. A
lei judaica, tanto a lei escrita como a lei consagrada pela tradição oral, dizia
que só o templo e seus agentes autorizados, mediante sacrifícios e holocaustos,
poderia lavar culpas e perdoar pecados. Fora do templo não poderia haver
salvação!
João
Batista ousa contrariar estas prescrições e práticas. Proclama que Deus não
cobra nada para perdoar, e anuncia que a água abundante do rio Jordão lava as
culpas que pesam sobre as costas dos mais pobres. Pede que se aproximem todos
aqueles que desejam endireitar as estradas da própria vida e da sociedade, que desejam
sinceramente “verter” a vida noutra direção e reestabelecer a justiça. Como os
três magos mostraram claramente no natal, João Batista recorda, muitos anos
depois, que os caminhos da graça de Deus não passam necessariamente por
Jerusalém e pelo templo...
Uma
multidão de gente cansada e abatida, vergada sob o peso de uma pesada canga de
leis e condenações, acorre a João num lugar perdido à beira do rio Jordão.
Gente humilde e humilhada, pobre e empobrecida, ignorante e ignorada, anônima e
taxada de pecadora. Gente com fome de tudo: de pão, de justiça, de beleza, de
graça, de acolhida, de cidadania. Muitos habitantes de Jerusalém, da Judéia e da
região do rio Jordão, cansados e vergados sob o peso da doutrina oficial e
sedentos de um Deus diferente, saem à procura do Profeta de hábitos simples e
palavras exigentes.
Já adulto
e prestes a assumir sua missão pública, Jesus deixa a Galileia e vai à procura
de João Batista em meio a essa gente, anônimo, na mesma fila, com os mesmos
sentimentos. Como tantos outros conterrâneos, Jesus também deseja endireitar
caminhos, nivelar colinas, eliminar desníveis. Ele quer deslocar o centro para
a periferia e a periferia para o centro, e preparar um povo bem disposto. Mesmo
jovem, Jesus de Nazaré já tem a lucidez de quem percebia que do templo não
poderia vir nada de novo e nada de bom. Seu batismo é participação solidaria
nas tentativas, buscas e sonhos do seu povo.
João
pressente nessa atitude de Jesus algo novo e em desacordo com as práticas
usuais. Percebe que está em curso uma inversão revolucionária. “É eu que
preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” Mas percebe também que a justiça
não pode ser realizada parcialmente. A encarnação de Deus deve atingir a
humanidade em sua dimensão mais profunda, e Jesus entra na fila dos pecadores e
se identifica com eles. Com seu batismo, Jesus Cristo manifesta ao mundo a compaixão de Deus, sua incrível
capacidade de padecer-com, de assumir
o lugar dos últimos, das vítimas.
Mas é
também por isso que, no batismo de Jesus, a voz do Pai diz que este filho é a
expressão mais profunda e gloriosa da sua complacência,
do seu prazer, da realização plena do seu ser e sua vontade. Deus não é apenas compaixão, mas também complacência! E isso porque Jesus passa pelo
mundo fazendo o bem, mostrando que Deus não discrimina pessoas ou religiões, e
o faz assumindo o caminho do serviço, o papel de Servo. Ele revela a
paternidade de Deus recriando os vínculos que irmanam a todos, começando pela
acolhida dos últimos. Bem diferente do porta-voz do rei, que anunciava suas más
e ameaçadoras notícias ao povo quebrando uma cana e apagando uma vela...
Deus querido, Pai e Mãe dos homens e mulheres que
aceitam o desafio de renascer da água e do Espírito, do sonho e da Palavra: te agradecemos
porque nos acolhes como filhas e filhos amados, como servos e servas deste povo
que amas. Conserva-nos no caminho do teu Filho, para que sejamos o próximo de
uma gente que se sente como cana vergada e como pavio que se esvai. Faz de
todos os batizados um fator de aliança entre os fracos, instrumento de justiça
para quem é desprezado. E não nos deixes cair na tentação de uma justiça
parcial ou superficial, disposta a aceitar subornos para fazer-se cega. Assim
seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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