EXÍLIO, UMA FAMÍLIA CLANDESTINA
“Levanta-te, pega o
menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)
Hoje, fala-se muito
da crise da instituição familiar. Mas a história nos ensina que nos tempos
difíceis os vínculos familiares se estreitam mais.
Concretamente, no
contexto da grave crise social-política-econômica que estamos vivendo, a família corre o risco de ser uma escola
do preconceito, da intolerância, da indiferença diante do diferente e daquele
que pede abrigo.Mas, em sentido contrário, ela pode ser o lugar no qual se faz
memória que temos um Pai comum, e que o mundo não se limita às paredes da
própria casa.
Por isso, não podemos celebrar a festa da Família de Nazaré sem escutar o desafio
de nossa fé. Nem toda família se deixa inspirar pela Família de Nazaré. Há
famílias abertas ao serviço da sociedade e famílias egoístas, fechadas sobre si
mesmas. Há Famílias autoritárias e há famílias onde se aprende a dialogar. Há
famílias que educam no egoísmo e famílias que ensinam a solidariedade.
Serão nossos lares um lugar onde as novas gerações poderão
escutar o chamado do Evangelho à fraternidade universal, à defesa dos
abandonados e à busca de uma sociedade mais justa, ou se converterão na escola
mais eficaz da indiferença, da passividade egoísta e da insensibilidade frente
os problemas sociais?
Só podemos celebrar
a festa da Sagrada Família quando descobrimos
que as famílias mais sagradas, aquelas que devemos respeitar, proteger e
potenciar, são aquelas que não tem casa, nem pátria, nem meios de vida, e no
entanto, continuam caminhando.
Já desde pequeno Jesus se solidariza com os pobres, os
últimos, a “massa sobrante”. Ele fez a experiência da exclusão. Ele é um Deus
frágil que arma tenda nos acampamentos dos exilados, nas favelas e cortiços da
miséria total. É um Deus que acompanha e compartilha a sorte dos fugitivos,
expulsos das aldeias, mandados para fora da segurança e da tranqüilidade dos
muros da cidade. Para
Ele permanecem cerradas as portas de ferro dos palácios.
Maria
compartilha a sorte do menino, vive para ele e com ele assume os riscos da fuga
e exílio. Ela cuida, protege, educa o menino entre perseguições e exílio.
Enquanto existirem mães que protegem e cuidam das crianças, como Maria, haverá
Natal.
José,
em meio à perseguição, põe-se a serviço do Deus fugitivo, expulso, exilado do
mundo. Como verdadeiro esposo e pai, ameaçado e fugitivo, percorre, com Maria e
o menino, os caminhos do desterro.
Enquanto existirem pais que, como José, se arriscam pela
mulher e pelos filhos, que são sua riqueza, o dom de Deus, enquanto estiverem
dispostos a sofrer por seus filhos e pelas mães de seus filhos, no exílio ou na
pobreza, haverá Natal.
É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à
experiência de Deus. É também por este caminho que podemos chegar ao
conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais humanos e solidários. Ali
temos de buscá-Lo e encontrá-Lo, nós que celebramos a festa da Sagrada Família.
Cada vez mais,
multidões em todos os continentes vivem o exílio na própria carne. Cada vez
mais, famílias inteiras são expulsas de seus países pela fome, falta de
trabalho, violência, guerra e insegurança. Cruzam mares, montanhas e desertos
para bater à porta dos países desenvolvidos, onde enfrentam o rosto cruel da
falta de solidariedade e do preconceito. Tais famílias vivem a dura experiência
de um sentimento permanente de serem inadequadas, de não pertencer a nada nem a
ninguém. Um nó na garganta e uma tristeza no coração se fazem presentes, quando
elas evocam saudosamente a antiga terra, de onde foram desenraizadas.
Os cristãos fazem memória de uma família que viveu a dura
realidade do exílio no Egito. Mas, parece que essa memória não desperta
espírito de solidariedade e acolhida em seus corações, pois os países ditos
“cristãos” são aqueles que se revelam mais frios, intransigentes e desumanos
quando se trata de acolher pessoas que, por diversos motivos, foram arrancadas
de suas terras.
Como exilados, Jesus e seus pais, fazem parte da
corrente ininterrupta das vítimas do poder, que são obrigados a percorrer
lugares inóspitos, desertos, cidades estrangeiras, gente hostil, durante o
percurso dos séculos. Jesus e seus pais são irmãos de todos os refugiados
políticos dos países repressivos.
Em chave de
interioridade, nosso “Egito” não é
outro que a identificação com o “ego”, que nos reduz à pior das
escravidões. “Egito”, em hebraico
significa “lugar estreito”; vida estreita, sonhos estreitos, famílias
estreitas... A “Terra Prometida” é o despertar da consciência, nossa verdadeira
identidade, o território esque-cido e, com frequência, oculto detrás de tantos mapas
desumanos que a nossa mente fabrica.
É preciso transitar
pelos territórios interiores com liberdade, integrando e pacificando vivências,
fatos, encontros e desencontros.
Ao sair desse “egito interior”, iremos nos encontrando com
todos aqueles que são obrigados a se deslocar. Também com o próprio Jesus, cuja
identidade compartilhamos, porque não pode haver senão um único Território, o
da humanidade que transgride todas as fronteiras desumanizadoras.
Só quem transita com liberdade pelos lugares interiores será
capaz de ir ao encontro do diferente, de acolhê-lo e de entrar em sintonia com
ele. Transitar pela interioridade alarga a mente, expande o coração e ativa uma
nova sensibilidade solidária.
Esta é a realidade:
nós pensamos, sentimos, amamos a partir de onde estão nossos pés. Quando pisamos
lugares atrofiados (fechados, guetos, condomínios...), nossos pensamentos e
sentimentos ficam atrofiados.
Vivemos um paradoxo
da “Pós-modernidade”: enquanto a tecnologia nos permite aumentar nossos conhecimentos
de lugares e pessoas tão distantes de nós, ao mesmo tempo cresce o medo do
outro, daquele que é diferente, daquele que não pertence à nossa raça,
religião, cultura, encerrando-nos em pequenos mundos. “À medida que a sociedade se faz cada vez mais globalizada, nos faz a
todos vizinhos; mas não nos faz irmãos” (Bento XVI).
Não é comum prestar atenção àqueles que estão sem lugar,
sobretudo aqueles que pensam e sentem de maneira diferente; tornou-se “normal”
perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso é vivido de
maneira tão zelosa que nem se vê aqueles que estão para além do próprio lugar.
São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza
aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social,
à falta de compromisso com aqueles que foram arrancados de seus lugares. O
próprio lugar se torna uma couraça e o espírito de hospitalidade some do
horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
A festa da Sagrada Família pede muita sabedoria,
lucidez e discernimento. Ela pede de nós cristãos uma espiritualidade da
acolhida, para estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças
religiosas, visões políticas, para romper fronteiras a partir da não-violência,
para criar redes que inter-atuam.
Precisamos sair de
nossos pequenos e atrofiados “egitos” para criar vínculos com tantos grupos,
organizações sociais, movimentos que buscam outra cultura, a cultura da
solidariedade, da hospitalidade, do encon-tro comprometido.
Precisamos nos levantar cotidianamente de nos-sos lugares:
há sempre pessoas “sem-lugares” que nos esperam, espaços excluídos a serem vi-sitados,
ambientes atrofiados a serem curados; é preciso lançar por terra nosso modo
arcaico de proceder, romper com os espaços rotineiros e cansativos para ir ao
encontro dos “novos lugares” dos excluídos e expulsos de suas terras.
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
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