A religião e as imagens de Deus
No final do século
passado, vários e analistas identificaram sinais do declínio da relevância da
religião no mundo ocidental. A seu modo, eles ecoaram a voz de filósofos que,
algumas décadas antes, propugnavam a morte de Deus e o nascimento do Homem livre
e maduro, ou do ‘Super-homem’ como previa Nietzsche. O que estava em pauta era
o desaparecimento da religião da arena social e dos imperativos éticos
externos.
O que vemos hoje no
Brasil parece desmentir estas constatações e previsões: bancadas evangélicas
nos parlamentos; marchas com Jesus e romarias diversas reunindo multidões;
proliferação de pequenas e grandes igrejas, especialmente de matriz
neopentecostal; aumento de grupos esotéricos e ‘seitas’ cientificistas; etc. E
isso não obstante a tendência de crescimento do número de brasileiros que se
declaram sem religião, como assinala o último senso do IBGE.
Ao que parece, a fé
e a noção de Deus não têm desaparecido da arena social e, especialmente, da
perspectiva subjetiva dos indivíduos. O que está acontecendo é uma espécie de
‘sequestro’ da noção de Deus (e de Jesus Cristo) e a subordinação das crenças
às demandas de sentido e de segurança individuais ou de grupos ideológicos
obcecados pela manutenção ou pela recuperação do controle sobre a sociedade.
Se essa percepção
não estiver errada, o grande desafio que as Igrejas e comunidades cristãs
precisam enfrentar hoje é ‘libertar’ a ideia de Deus e de Jesus Cristo da
prisão à qual alguns grupos a conduziram. E, ao mesmo tempo, lançar as bases de
um novo humanismo, marcado pela abertura radical aos outros, ao meio ambiente e
ao futuro, e livre da ‘camisa de força’ do individualismo e da indiferença
anunciados como virtude.
Na verdade, esse
desafio não é novo. Jesus mesmo o enfrentou, a seu modo e no seu tempo. Sua
atitude firme nesse aspecto é uma das causas que o levaram à cruz. ‘Deus’ é um
dos arquétipos mais poderosos da psique humana e da estruturação social, e quem
domina seu conteúdo domina as pessoas e a sociedade. Por isso, a agressividade
e a violência adormecidas costumam se lançar contra quem ousa mudar seu
conteúdo.
Jesus concentra sua
missão no questionamento das práticas de exclusão social e religiosa vinculadas
à imagem de Deus. Ele não cansa de repetir que Deus pede misericórdia, e não
sacrifícios; que o estômago de uma pessoa faminta tem prioridade sobre todas as
leis e instituições; que o culto não pode encobrir a violência e a indiferença;
que Deus trata seus filhos e filhas conforme suas necessidades, e não segundo
seus méritos.
Desmascarando o
tirano que subjaz à ideia de Deus ensinada pelos operadores da religião e das
instituições, Jesus também abre caminho para um humanismo novo e radical. Sendo
verdadeiro Deus, ele mesmo é o Homem verdadeiro, e, assim, anula a oposição
entre o humano e o divino. O ser humano maduro não é o ‘amigo de César’, aquele
que se submete por medo ou ambição, mas quem se reconhece irmão e é capaz de
doar-se inteiramente pelos outros, correndo todos os riscos. O homem e a mulher
são portadores de uma dignidade inalienável que nenhum erro ou condição pode
anular.
Dom Itacir Brassiani msf
Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul
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