“Ele faz os surdos ouvirem e os mudos
falarem.”
(Is
35,4-7; Sl 145/146; Tg 2,1-5; Mc 7,31-37)
Estamos no mês de
setembro, dedicado à Palavra de Deus. Somos todos/as interpelados/as a abrir
nossos ouvidos a um Deus que continua falando palavras que despertam e conduzem
à vida plena. Não se trata de voltar a atenção a simples textos codificados,
por mais belos e profundos que sejam. O essencial mesmo é manter com Deus uma
relação dialogal. Mais que adoração e louvor, ele espera de nós escuta e
resposta. Que o Senhor toque e abra nossos ouvidos e solte nossa língua, como
fez com o personagem do evangelho de hoje, para que não sejamos como os
discípulos que, tendo olhos e ouvidos perfeitos, não conseguem ver e ouvir a
novidade realizada por Jesus Cristo (cf. Mc 8,18). Oxalá possamos provar e
proclamar com a vida que a Palavra de Deus é como a chuva que lava e como o
fogo que abrasa: passando por nós ela sempre deixa um sinal de mudança.
“Javé abre os olhos dos cegos e
endireita os encurvados.”
O ditado
popular diz que fé cega é faca amolada. E a experiência demonstra que todos as instituições
e movimentos religiosos são humanos e históricos, não isentos de ambiguidade e
contradição. O próprio cristianismo não escapa a esse condicionamento. Herdamos
do cristianismo dos dois últimos séculos uma religião privatizada, marcada por
um dualismo que opoõe corpo e alma, ignora a história e prioriza o perdão dos
pecados morais e a salvação espiritual da alma.
A Palavra de
Deus nos revela outros elementos irrenunciáveis à fé que recebemos da
comunidade apostólica. E um deles é o casamento inseparável entre fé e vida. O próprio
conceito de salvação tem um conteúdo
bem concreto, que Isaías descreve poeticamente: “Então os olhos dos cegos vão
se abrir, e se abrirão também os ouvidos dos surdos; os aleijados saltarão como
cervo e a língua do mudo cantará, porque jorarão águas no deserto e rios na
terra seca...”
A salvação é a
tranformação de uma situação de carência e míngua em abundância e vitalidade. Quando
uma religião se perverte em pura doutrina ou moral inflexível, torna-se uma
perigosa faca amolada que ameaça e fere. Quando uma religião esconde suas próprias
contradições, corre o risco de se tornar intolerante e absolutista. E quando
uma Igreja se refugia em falsos espiritualismos e intimismos, trai sua vocação
humanizadora e fazendo da indiferença uma virtude.
“Tudo ele tem feito bem.”
A fé é força
que gera vida. A presença de Deus é dinamismo de mudança. A Palavra de Deus
está ali para testemunhar que ele ouve clamores, conhece sofrimentos, abre os
olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos, desce para fazer subir, congrega os
dispersos, acolhe os desprezados, ressuscita os mortos. O cristianismo não é
formol para conservar corpos mortos mas sementeira na qual germina a vida. E
certamente este dinamismo de mudança começa nas pessoas, começa em nós.
No trecho do
Evangelho proposto neste domingo, Marcos nos conta que Jesus vai a Sidônia,
passa por Tiro e chega até nossa casa e nossas comunidades. Também hoje ele
quer tocar com sua mão a língua daqueles/as que falam com dificuldade e curar o
ouvido de quem não consegue ouvir os outros. E Jesus começa por curar nossa
dificuldade de escutar e entender sua Palavra e de ouvir nossos irmãos e irmãs
com despojada atenção.
Às vezes temo
que as propostas pastorais que insistem no aumento do tempo dedicado à oração
(frequentemente repetitiva) tem como objetivo evitar que escutemos a Palavra
viva de Deus. Ora, afé em
Jesus Cristo é um processo de adesão cada vez mais profunda
que nos leva ao encontro da nossa verdadeira humanidade: escuta, abertura,
acolhida, compaixão, partilha, comunhão, cooperação. É um caminho que restaura
em nós a imagem de Deus segundo a qual fomos criados/as.
“A fé que tendes em Jesus Cristo não
deve admitir acepção de pessoas.”
Marcos nos
apresenta Jesus percorrendo caminhos que, apra algumas pessoas, parecem
estranhos. A região de Tiro, Sidônia e da Decápole eram habitadas por pagãos. E
com a passagem de Jesus brilham novas possibilidades de vida para a filha de
uma mulher nascida na Fenícia e para um surdo-mudo anônimo. Em sua peregrinação
no santuário das dores e esperanças humanas, Jesus sempre dá prioridade
absoluta aos últimos da escala
social, aos pobres e desprezados.
São muitas as
pessoas que ainda hoje têm dificuldade de engolir esta opção preferencial de
Jesus pelos últimos. Não falta inclusive gente de fé aparentemente ilibada que
desejaria excluir da bíblia textos como este de São Tiago, que pede que em
nossas comunidades não façamos distinção
de pessoas em favor dos ricos e nobres. “Não foi Deus que escolheu os que são
pobres aos olhos do mundo para torná-los ricos na fé e herdeiros do Reino que
prometeu àqueles que o amam?”
“Efatá! Abre-te!”
A lógica de
Deus nos parece paradoxal. Não entra nos nossos ouvidos, não entra na nossa
cabeça. Acolhendo um pagão doente e necessitado e tocando seus ouvidos e sua
língua, Jesus despreza as prescrições religiosas e sanitárias. Jesus age
fazendo uso da própria salivam mesmo sabendo que a saliva era considerada
contagiosa e nojenta, como os excrementos humanos. Jesus rompe a distância, toca
fisicamente o doente, o contágio é revertido e o surdo-mudo é curado.
Mas Jesus faz
questão de não agir sob os refletores e câmaras, sempre sedentos de imagens
capazes de impressionar. “Jesus se afastou com o homem para longe da
multidão...” Faz o contrário de muitos que hoje, em nome de Jesus, transformam
a fé em espetáculo e inventam curas ao vivo e a cores, escarnecendo dos
doentes, manipulando a fé do povo necessitado e extorquindo deles os poucos
recursos que lhes sobram.
Estamos um
pouco como aquele homem que se comunicava com dificuldades. Nossos ouvidos
parecem surdos às Palavras que escapam da nossa lógica e questionam nossos
interesses. Nossa língua parece presa, especialmente quando se trata de recriar
o Evangelho da liberdade e da humanização. Precisamos que Jesus Cristo toque
nossos ouvidos, coloque sua saliva na nossa língua, converta a nossa mente e
libere a nossa comunicação.
“Quanto maisele insistia, mais eles o
anunciavam.”
Diante da
compaixão de Jesus por dois pagãos e da aurora de uma nova vida para eles, a
multidão ficou entusiasmada. Ela via com os próprios olhos que Deus abre os
olhos dos cegos, endireita os encurvados, protege os estrangeiros, sustenta os
órfãos e as viúvas, como celebra o Salmo 145/146. Estava impressionada com a
liberdade de Jesus frente ao código de pureza e de honra, que conferia status e
honra a alguns e desprezava outros.
E então de
pouco adiantou a recomendação para que não espalhassem o que estavam
presenciando. “Quanto mais ele recomendava, mais eles pregavam.” Não é possivel
calar diante de tamanha liberdade frente os costumess e tradições que
discriminam e de tão profunda humanidade frente às pessoas desprezadas. “Jesus
faz bem todas as coisas.” A proclamação do Evangelho brota naturalmente das
profundezas da alma das pessoas que o experimentam.
“Coragem! Nada de medo!”
Jesus, tu és compassivo e perfeito em tudo o que fazes
e verdadeiro em tudo o que dizes. Visitas a região de Tiro e de Sidônia e em
qualquer rincão perdido e desprezado deste mundo vens ao encontro de quem
perdeu a capacidade de escutar e a coragem de falar. E, com gestos discretos e
firmes, abres nossos ouvidos e libertas nossa palavra. Não podemos calar esta
Boa Notícia, mesmo quando seu anúncio provoca riscos. Hoje te pedimos: envia à
Igreja teu Espírito de liberdade, a fim de que ela possa vencer o velho e
terrível hábito de honrar os ricos e poderosos e não se preocupar com os
empobrecidos e injustiçados. Abre nossos ouvidos à tua santa Palavra, para que
não desistamos de crer e de esperar o belo e santo dia em que os estropiados
dançarão alegremente, a língua dos mudos explodirá numa solene melodia coral e
o duro chão das instituições será regado e amolecido pela água benfazeja. Que
teu corpo e sangue doados em sinal de aliança nos alimentem e ajudem a
transformar em lavoura e jardim a terra hoje ocupada pelos chacais. Assim seja!
Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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