A loucura de Deus é mais sábia que os homens.
(Nm
21,4-9; Sl 77/78; Fil 2,6-11; Jo 3,13-17)
À primiera vista, parece coisa de mau
gosto exaltar a cruz. Mais estranho ainda é dedicar uma festa litúrgia a essa
exaltação. Afinal, a cruz normalmente lembra sofrimento, peso, morte,
violência. Não dá pra esquecer que a cruz era o instrumento mediante o qual o
império romano torturava e aplicava a pena de morte aos rebeldes políticos e
aos escravos fugitivos. Sabemos que na cruz foi torturado e executado Jesus de
Nazaré, a quem chamamos Cristo. E desde esse fato ocorrido em Jerusalém mais ou
menos no ano 30 da era cristã, sem perder seu significado de violência, a cruz
adquiriu um sentido radicalmente novo: nela o próprio Deus padeceu solidariamente
e selou uma nova e eterna aliança com a humanidade; nela o amor de Deus
alcançou o inalcançável e se tornou orreversível.
“Deus
amou tanto o mundo...”
Do ponto de vista da liturgia católica, a
semana que vai de 14 a
21 de setembro é interessante: celebramos a exaltação da cruz no dia 14; fazemos
memória de Nossa Senhora e suas dores ao pé da cruz no dia 15; recordamos Nossa
Senhora da Salette e suas lágrimas no dia 19. Começamos com a glória da cruz,
passamos pelas dores assumidas de forma humana e solidária e termimanos com as
lágrimas brilhantes da compaixão.
É preciso evitar o caminho fácil e
tentador de enquadrar essas festas numa perspectiva espiritual intimista e num
horizonte psicológico sadomasoquista. Prestamos um péssimo serviço ao Evangelho
e à humanidade quando aproveitamos dessas celebrações para sublinhar a
necessidade de aceitar e até buscar sofrimento, como se ele fosse por si mesmo
redentor. Ou quando procuramos ver nelas um convite à resignação às dores da
vida e à submissão aos que praticam a violência.
Estas celebrações são cristãs e adquirem
seu sentido quando relacionadas com a vida, morte e ressurreição de Jesus
Cristo. Exaltamos a cruz porque nela o amor de Deus pela humanidade oprimida e
sofredora superou todas as possibilidades. Recordamos Nossa Senhora das Dores
para ressaltar sua solidariedade e presença junto às pessoas que sofrem.
Celebramos Nossa Senhora da Salette para não esquecer que a verdadeira beleza
está na atitude de compaixão.
“Também
o Filho do Homem será levantado...”
A cruz está presente por todo o lado. Feita
de ouro, prata ou madeira, ela pende do pescoço de muitos/as de nós. Imponente
e solitária, está plantada em muitos lugares altos e é vista de longe. Discreta
e consoladora, está presente nos quartos de muitos hospitais. Embelezada e
solene, ocupa um lugar central nos nossos templos. Estilizada, esquecida e às
vezes escarnecida, pende nas paredes dos tribunais e parlamentos.
Já que o sentido da cruz nunca foi e hoje
também não é unívoco, precisamos sempre de novo elaborar o sentido de sua
presença nesses lugares. À luz do que aconteceu com Jesus Cristo, o sentido da
cruz não pode ser a afirmação de um poder nem um apelo à submissão. Antes, é memória
acusatória da violência dos poderes instituídos e ingente convite à resistência
e à rebeldia profética frente às instituiçoes que oprimem mediante seus agentes
e estruturas.
“Para
que todo aquele que nele crê não pereça...”
Para o império romano a cruz era um sinal
inequívoco de condenação daqueles que eram considerados rebeldes e perigosos.
Para os judeus, era o sinal trágico da maldição e do abandono por parte de
Deus. Para os cristãos de todas as denominações é a memória de Jesus, a prova
irrefutável do amor de Deus. “Deus amou de tal forma o mundo que entregou seu
filho único para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida
eterna.”
Não é humana nem cristã uma doutrina que
ensina que Jesus morreu na cruz para pagar nossa dívida a Deus. Um Deus que
exigisse o sangue do próprio filho não seria Deus mas um ídolo violento e
sanguinário. Deus não pediu o sangue do Filho, mas confiou a ele a missão de
mostrar de um modo irrefutável e definitivo a fidelidade do seu amor para com as
criaturas, especialmente para com os fracos e sofredores. No amor do Filho está
o amor do Pai. A cruz imposta ao Filho é também imposta ao Pai. Nele, com ele e
por ele Deus chega à forma extrema do amor.
A forma extrema e pura do amor é a
compaixão, e é isso que vemos na cruz. Nela ecoa a Palavra viva de Deus que
grita silenciosamente: “Eu não condeno ninguém! Eu amo cada uma das minhas
criaturas, e meu amor não tem limites. Todos são meus filhos e filhas, e jamais
perderão essa dignidade!” Mas também proclama em forma de advertência e
orientação: “Não haverá mudança duradoura nem liberdade verdadeira senão
mediante a compaixão e solidariedade.”
“Por
isso, Deus o exaltou acima de tudo.”
Eu sempre me impressiono com a beleza e a
profundidade do hino paulino que escutamos hoje na liturgia. Nele, a comunidade
cristã sublinha que Jesus Cristo não se
apegou a privilégios nem hierarquias: apresentou-se como simples pessoa humana, sem nenhum título; assumiu o lugar dos
últimos, dos escravos; não fugiu diante da ameaça da morte violenta e desceu ao
inferno mais profundo, escuro e degradante.
Mas é importante ressaltar também que ele
não percorreu esse caminho por razões filosóficas ou ascéticas. Foi o amor
compassivo e soliário aos mais frágeis e desprezados dos filhos de Deus que o
conduziu por esse caminho de descida e
esvaziamento. O amor esvazia, aproxima, trata o outro como igual, suscita e
sustenta o serviço. Nessa situação na qual normalmente vemos humilhação e
anulação, Deus revela sua plenitude e sua glória.
Na cruz está a glória de Deus porque nela
temos a expressão máxima de sua pró-existência,
do seu amor. A glorificação não é uma subida posterior à descida, uma plenitude
posterior ao esvaziamento, mas a própria
descida e o próprio vazio solidários. A exaltação de Jesus é sua
crucifixão, e não um momento posterior. Sem essa expressão máxima de humanidade
e compaixão a ressurreição teria sido indigna de Deus, pois seria a simples afirmação
de poderes e privilégios.
“Em
o Nome de Jesus, todo joelho se dobre...”
É por isso que, diante de um dinamismo e
um evento tão maravilhoso como emancipador, como que caímos de joelhos. E não
porque nos sintamos humanamente anulados, mas porque intuímos que estamos
diante do que há de mais belo, profundo e verdadeiro a respeito de nós mesmos.
Jesus é a realização plena daquilo que todas as pessoas humanas somos chamados/as
a ser. Nele, não existe pobre e proscrito que não possua dignidade.
Proclamamos que esse homem semelhante a
nós, esvaziado e solidário, servo e crucificado, é Senhor porque nenhum outro
merece nossa adesão, nenhum outro pode dar-nos lições que libertam e constroem.
Ele é Senhor porque é Servo e sendo Servo,
e não por uma espécie de revanche ou vingança de um pai poderoso. Só o amor é
digno de fé. Só a liberdade é digna do nosso serviço. Somente um Deus assim
compassivo é digno de reconhecimento.
Assim, a
cruz se converte em caminho, em programa de vida. Como cristãos já não
queremos outra glória, já não precisamos inventar desvios ou atalhos. Cremos
que o único caminho que possibilita um
futuro para a humanidade desolada e dividida é esse do amor que se faz dom,
da liberdade que se faz compaixão, do/a primeiro que se faz último/a e servidor/a.
Fora disso só resta a competição predatória e a barbárie mais ou menos
disfarçada de civilização.
“Despojou-se,
assumindo a forma de escravo...”
Jesus de
Nazaré, Deus despojado de todo poder ou privilégio, homem elevado à cruz por tua compaixão
solidária: que o sinal da cruz que fazemos frequentemente, unindo-o com o nome
de Deus tri-uno seja sempre carregado do seu sentido cristão: o propósito de
pautar nossa vida e nossas decisões pela compaixão e pelo serviço, marcas
registradas da tua existência e glória dos homens e mulheres livres. Que o
sinal da cruz diga a nós mesmos e a quem quiser ouvir que é por esse caminho
que a humanidade garantirá liberdade e vida para todos/as. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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