Que Deus abra hoje nossos ouvidos
à sua Palavra.
(Is
50,5-9; Sl 114/116A; Tg 2,14-18; Mc 8,27-35)
Em pleno mês
dedicado à Palavra de Deus, somos convidados/as a dizer, como o profeta Isaías:
“O Senhor Javé abriu os meus ouvidos
e eu não fiz resistência nem recuei.” Como discípulos e discípulas na estrada longa
e bela estrada do seguimento, precisamos pedir a cada manhã que o Senhor abra
nossos ouvidos e que sejamos capazes de acolher sua Palavra e fazer dela a luz
dos nossos passos, mesmo quando nos indica rumos e práticas deveras exigentes.
É dessa escuta atenta, inteligente e despojada que pode brotar um anúncio
correto e uma prática coerente. Infelizmente sobre Jesus se diz muita coisa
inconsistente e incoerente. E
pretende-se separar a fé do serviço aos pobres. Daí a importância de levar a
sério a pergunta que ele nos dirige hoje: “E vocês, quem dizem que eu sou?”
“No caminho, ele perguntou aos
discípulos...”
Como os
cristãos das comunidades dos Atos dos Apóstolos, gostamos de falar da vida
cristã como um caminho de seguimento
de Jesus. Há tempo estamos neste caminho, e não vamos sozinhos. Chegamos onde
estamos atravessando trechos sombrios, passando por encruzilhadas, enfrentando
desafios, mas também experimentando momentos divinamente luminosos e consoladores.
Como peregrinos/as inquietos/as num mundo indeferente e às vezes agressivo, nós
mesmos levantamos perguntas e somos interpaldos por todos os lados.
É uma
experiência semelhante àquela dos discípulos, narrada hoje por Marcos. Com
Jesus, eles atravessavam a região de Cesaréia de Filipe, lugar-símbolo da
submissão de Herodes ao imperador romano e de capitulação frente à cultura
grega. E nessa travessia Jesus provoca os discípulos a fazerem uma avaliação da
sua pessoa e sua missão. “Quem dizem os homens que eu sou?” Segundo os
discípulos, as resposta concidiam no caráter
indubitavelmente profético da vida de Jesus: “Alguns dizem que tu és João
Batista; outros, que és Elias; outros ainda, que és um dos profetas.”
“E vós, quem dizeis que eu sou?”
A fé parte do
testemunho e da palavra daqueles/as que nos precederam, mas não se esgota
nisso. O que dá fundamento e sustentação à fé cristã é uma experiência
particular do mistério de Deus em Jesus Cristo e a adesão pessoal ao seu caminho,
ao seu projeto. É a isso que acena a pergunta que Jesus dirige aos discípulos
em pleno caminho: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Ou, em outras palavras: o
que andais falando sobre mim?
São muitas e
variadas as nossas falas sobre Jesus. E algumas infelizmente têm pouco a ver
com o que ele é. Refiro-me às pregações e catequeses que insistem num Cristo
apresentado como rei e todo-poderoso, como se quanto mais poder
alguém exerce mais próximo de Jesus está. E temos também discursos que
desencarnam e divinizam Jesus, reduzindo-o a um espírito divino preocupado com a salvação das almas, como se o
caminho da fé pudesse ignorar a história e desviar da humanidade.
A resposta à
pergunta de Jesus não pode ser teórica. A fé é uma questão de linguagem mas
também de ação. Crer em Jesus significa aceitá-lo como definidor das nossas relações e como elemento fundamental na construção das relações sociais. É muito
mais que aceitar de forma resignada e inconsequente alguns conteúdos
religiosos. Fico incomodado quando alguns pregadores lamentam que hoje as
pessoas crêem em Jesus
Cristo mas não aceitam a Igreja. Será que não é pior aceitar
e defender a Igreja sem crer de forma consequente na pessoa e na prática de
Jesus?
“Tu és o Messias, o Cristo!”
Parece que a
pergunta direta de Jesus provocou um silêncio e um calafrio geral. Então Pedro
responde em nome de todos: “Tu és o Messias, o Cristo.” A resposta parece
formalmente correta, mas nela há algo de errado ou, pelo menos, de perigoso,
pois “Jesus proibiu severamente que eles falassem a alguém a respeito dele.”
Não se trata de uma simples recomendação, mas de uma probição severa, de uma intimação semelhante à ameaça de Jesus
contra o espírito mau (Mc 1,25), à proibição de anunciar quem ele é (Mc 3,12) e
à ameaça ao vento e ao mar (Mc 4,39).
Onde está o problema
da resposta aparentemente ortodoxa de Pedro? O problema é que, mesmo reconhecendo
Jesus como Messias, Pedro ainda se move numa tradição nacionalista e ligada ao
poder. Ele reconhece que Jesus é mais que um profeta e imagina que a revolução
esteja à porta. Sua profissão de fé está enredada nas malhas do triunfalismo e
descansa na imagem de um Deus que se caracteriza pela concentração e pelo uso
do poder em favor de um povo particular.
E aqui está a
questão-chave da compreensão e do anúncio de Jesus Cristo. O título de senhor é uma camisa-de-força estreita e
inadequada, que não dá conta de outros traços de Jesus: irmão, servo e profeta, cordeiro de Deus, filho do
homem, etc. Confesso que me soa incômoda e até ofensiva a repetição dos
conceitos senhor, rei e todo-poderoso em nossas liturgias e catequeses.
Partindo do Evangelho, é preciso fazer uma limpeza geral nessa linguagem e
falar de Jesus de modo adequado.
“E começou a ensinar-lhes que era
necessário o Filho do Homem sofrer muito...”
Com seu realismo
humano e clarividente, Jesus censura nossas fantasias de sucesso e de poder. Ao
mesmo tempo em que proíbe severamente
que os discípulos falem que ele é o Messias, Jesus fala abertamente que o Filho
do Homem deve sofrer muito, e
experimentar a rejeição e a morte. Observemos que Jesus substitui o
título de Messias por filho do homem (ou ser humano), vinculando-se
assim profundamente à humanidade e suas aspirações.
Dizendo que o
filho do homem deve sofrer, ser
rejeitado e morto, Jesus não afirma que essa é a vontade de Deus ou o destino
humano. E isso fica claro quando diz quem
provoca o sofrimento: os anciãos, os chefes dos sacerdotes e os doutores da
lei. Enquanto a idéia messiânica de Pedro contém necessariamente o triunfo e o
nacionalismo, a via assumida por Jesus leva ao confronto político com a ordem
estabelecida e à rejeição. O sofrimento é o custo da luta da sua humanização.
“Pedro, chamando-o de lado, começou a
censurá-lo.”
Aceitar isso
não é coisa fácil, nem para Pedro nem para nós. Tanto que Pedro levou Jesus
para um lado e começou a repreendê-lo. E isso não é apenas uma postura de quem
quer bem e, por isso, defende a integridade física de um amigo ou líder. Aqui
se revela a incapacidade de passar de um messianismo nacionaislta e
triunfalista a um caminho de compaixão e serviço, a dificuldade de passar das
declarações ortodoxas para as práticas consequentes.
Marcos diz que
Jesus reagiu olhando para os discípulos
e repreendendo Pedro. Para Jesus, Pedro estava agindo como tentador e divisor,
com mentalidade limitada e sectarista. Na atitude de Pedro ressoa a contestação
discreta ou violenta da via do serviço e da compaixão trilhada por Jesus. E
Jesus diz que quem pensa assim é
porta-voz do Satanás, rejeita a
Palavra de Deus e se apega às tradições humanas (cf. Mc 7,1-13). É alguém que
diz ter fé mas não age de modo correspondente (Tg 2,14-18).
“Se alguém quer vir após mim...”
Na terra da
bajulação e da subserviência, Jesus ousa propor: “Se alguém quer me seguir,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar sua a
sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim e da Boa
Notícia, vai salvá-la.” E isso é mais que um simples apelo à humildade. No
império romano a cruz tinha um significado bem preciso: era instrumento de
execução dos dissidentes e escravos, das pessoas sem-direitos. A pessoa
condenada à cruz tinha que carregar o próprio instrumento de suplício. É nesse
horizonte que precisamos localizar a festa da Exaltação da Cruz e de Nossa
Senhora das Dores.
Jesus, força de Deus na fragilidade humana, Palavra
divina nas tramas da história, mestre do serviço num mundo de senhores. Mantém
viva nossa promessa de receber teu batismo, de enfrentar os rechaços e de seguir
teus passos. Ajuda-nos a negar nossos interesses egoítas para não renegar a ti,
fonte de vida sem limites. Convence-nos de que salvar nossa própria vida é um
mau investimento, e que arriscá-la pelo Reino é tudo ganhar. Converte-nos, e
também à tua Igreja, para que não tenhamos a descabida pretensão de te ensinar
como ser mais prudente e diplomático. Abre hoje nossos ouvidos à tua santa
Palavra e não nos deixes voltar para trás. Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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