A Palavra de Deus está acima das
nossas Igrejas!
(Nm
11,25-29; Sl 18B/19B; Tg 5,1-6; Mc 9,38-48)
Em nossos
discursos e pregações é recorrente a referência ao caráter anti-evangélico da
cultura predominante, aos ataques de uma mentalidade laicista e até a iniciativas
humanistas alheias à fé cristã e até às possíveis ameaças que o crescimento das
Igrejas evangélicas traria à autêntica fé cristã. A impressão que passamos é de
que o mundo se divide entre os bons,
que são aqueles/as que aceitam explicitamente Jesus Cristo e a Igreja, e os maus, que são as pessoas religiosamente
indiferentes e as igrejas pentecostais. Daí a importância de escutar e acolher com abertura e
inteligência a Palavra de Deus proposta na liturgia de hoje. Precisamos
ultrapassar o muro dos ciúmes e invejas e dar as mãos a tantos grupos e Igrejas
que cooperam para expulsar os males deste mundo e construir um outro mundo. E é
bom abrir nossos olhos para as contradições e traições que costumam se esconder
em nossas próprias comunidades eclesiais.
“Nós o proibimos, porque eles não andam
conosco.”
O mal da inveja
e a tentação da exclusividade da graça são antigos e difíceis de erradicar. A
tradição dos hebreus conservou na memória um fato interessante, ocorrido na
travessia do deserto. O Espírito de Deus não se limitou a atuar mediante as
lideranças reconhecidas e envolveu outras pessoas que não faziam parte do
conselho oficial. Moisés reagiu de modo maduro e lúcido diante da sugestão de
Josué, que pedia para proibi-los de falar em nome de Deus: “Você está com ciúme
por mim? Oxalá todo povo de Javé fosse profeta e recebesse o Espírito de Javé!”
Às vezes tenho
a impressão de que, nas frequentes e superficiais críticas que determinadas autoridades
da Igreja católica fazem às Igrejas irmãs (que chamam indevidamente de ‘igrejas
separadas’ ou, pior ainda e pejorativamente, de ‘seitas’), se esconde um
maldito ciúme da criatividade e da capacidade que têm de despertar a fé nas
pessoas de hoje. Imaginam que Jesus Cristo seja católico e que seu Evangelho
seja propriedade exclusiva da nossa Igreja. Muitos chegam a suspirar: “Oxalá os
governos tomassem uma providência contra essa gente mal-intencionada...”
Coisa
semelhante ocorre na relação com movimentos e iniciativas sociais, políticas e
culturais que agem sem referência explícita à fé e sem licença da Igreja.
Causa-me mal-estar ler nos últimos documentos papais constantes referências aos
limites intrínsecos dessas iniciativas humanitárias, como se fossem elas a
causa da fome, da opressão e das guerras, que, na verdade, nascem na mente de
pessoas que aparentam fé ilibada e agem publicamente em nome dela.
“Não os proibais...”
A fato narrado
pelo evangelho de Marcos traz esta questão para o centro da nossa
espiritualidade. É paradoxal que os mesmos discípulos que resistiam a seguir
Jesus pelas vias da da compaixão e não haviam conseguido expulsar um espírito
mau que amordaçava um jovem (cf. Mc
9,14-29) queiram proibir que outros o façam . “Mestre, vimos um homem
que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque não nos segue.” Parece que eles queriam
manter o monopólio do exorcismo como status
e não como seviço à vida. E desejavam que todos seguissem a eles, os discípulos
oficiais, e não o próprio Jesus.
A resposta de
Jesus chama à abertura e à colaboração ecumênica: “Não lhe proíbam, pois
ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim. Quem não
está contra nós, está a nosso favor.” Quem tem um coração grande, um olhar
abrangente e uma fé confiante não imagina ter concorrentes por todo lado. Só
uma mente imatura e institucionalizada pode se mostrar incapaz de reconhecer o
bem que outros fazem e alimentar o desejo de que todos peçam sua aprovação para
qualquer iniciativa benemérita.
Por que esta
incapacidade de muitos de nós em respeitar, valorizar e cooperar com as demais
Igrejas cristãs? Será que aquilo que temos em comum – a fé em Jesus Cristo , o
Evangelho, o Batismo, a Eucaristia e o martírio – não são mais importantes que
as picuinhas que nos diferenciam? Por que, 40 anos depois da abertura ecumênica
pedida pelo Vaticano II, nossos passos são ainda tão tímidos e desconfiados? Se
eles estão a favor do Evangelho e de Jesus Cristo, poderiam estar contra nós?
“Quem não é contra nós, está a nosso
favor.”
A mesma
reflexão se aplica à nossa relação com os movimentos sociais e culturais.
Passou o tempo de ver em tudo o gérmen da discórdia e do confronto. O Vaticano
II está aí, convidando-nos a avaliar positivamente as iniciativas autônomas da
sociedade. Projetos que nascem fora das sacristias e das bênçãos eclesiásticas
– e às vezes em aberta oposição a elas –
trazem a secreta marca do Espírito de Deus e realizam um bem enorme à
humanidade. E até mesmo um copo de água servido a uma pessoa sedenta não passa
sem reconhecimento e recompensa aos olhos de Deus...
É animador
perceber que em muitos lugares, no Brasil e pelo mundo a fora, nossas
comunidades eclesiais vêm trabalhando em parceria e rede com diversos
movimentos e organizações sociais, mesmo sem ignorar seus limites e
contradições. É estimulante e jubiloso escutar a palavra oficial da Igreja ,
como em Puebla, reconhecendo que na raiz dos movimentos que lutam pela
libertação do nosso povo está o Espírito de Deus. Onde há solidariedade e serviço,
aí está ativo o Espírito de Deus. São as práticas concretas, e não o nome ou os
ritos, que realizam o Reino de Deus.
“E quem fazer cair um só destes
pequeninos...”
Sejamos inceros
e verdadeiros: o bem e a justiça podem vir de fora da Igreja, e a traição e o
escândalo podem vir de dentro dela. Muitos dos problemas que nossa Igreja
enfrenta hoje são gerados e alimentados no seu próprio ventre. A ruptura com o
Evangelho e muitas práticas que o negam surgem e são toleradas em nossas
comunidades eclesiais. É lamentável quando a diplomacia se sobrepõe ao Evangelho
e as ‘razões de estado’ têm prioridade sobre a profecia e a solidariedade.
Jesus enfrenta
corajosamente este problema vivido pelas comunidades cristãs. Sob a pressão da
perseguição, alguns abandonavam o Evangelho, o que era uma pedra de tropeço que
afastava muitos outros ‘pequeninos’. O corpo eclesial tinha membros que
escandalizavam. E a proposta de Jesus é radical: vigilância e firmeza. É melhor
ser uma comunidade pequena e coerente que grande e cheia de contradições. Ela
não pode limitar ou perder sua missão de ser sal, de fazer a diferença. As traições
e incoerências precisam ser evitadas, cortadas e queimadas.
“Vossa riqueza está apodrecendo...”
Uma destas
contradições que escandalizam os pequeninos é hoje o acúmulo de riquezas à base
de relações injustas. Aliás, toda riqueza
acumulada e subtraída ao serviço do bem-estar da humanidade é injusta. E
não se trata apenas de riquezas acumuladas por pessoas ou famílias privadas,
mas também de capital acumulado por comunidades, paróquias, dioceses, congregações
e Igrejas. Toda riqueza que não é partilhada ou não está a serviço do anúncio
do Evangelho aos pobres é usurpação.
São Tiago
enfrenta esta questão com palavras muito duras. Dirgindo-se aos ricos ele diz:
“Suas riquezas estão podres, suas roupas foram roídas pelas traças. O ouro e a
prata de vocês estão enferrujados, e a ferrugem deles será testemunha contra
vocês, e como fogo lhes devorará a carne.” A questão não é apenas a riqueza em
si mesma, mas o modo de consegui-la: “Vejam: os salários dos trabalhadores que
fizeram a colheita nos campos de vocês; retido por vocês, este salário clama, e
os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor...”
Em nome da
coerência e da transparência, junto com a denúncia do acúmulo injusto e da
idolatria do capital, precisamos de coragem para implantar na Igreja uma
economia que viabilize e visibilize a solidariedade entre comunidades,
movimentos, paróquias, dioceses e Congregações. Caso contrário, estaremos rompendo
com a solidariedade interna, tolerando uma traição que continuará
escandalizando e provocando sofrimento. Também este é um mal que precisa ser
cortado pela raiz.
“O testemunho do Senhor é verdadeiro,
torna sábios os pequenos.”
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras e Palavra que
liberta e constrói relações ecumênicas e inclusivas: fecunda nossas palavras e
corações com teu Espírito, a fim de que alcancemos a sabedoria e realizemos
nossa missão no respeito, no apreço e na coorperação com aqueles que crêem
diversamente mas cumprem, mesmo sem saber, tua vontade santa e libertadora.
Assim seja! Amém!
Pe.
Itacir Brassiani msf
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