Faltam vacinas, mas sobram armas!
O título é inspirado no
editorial do Jornal O Globo (Terça-feira,
02/02/2021, pág. 2). E o texto segue apresentando os números revelados por um
“levantamento feito pelo Globo em parceria com o instituto Igarapé e Sou da Paz: “O Brasil tem hoje 1,15
milhão de armas legalizadas nas mãos dos cidadãos. O número representa um
aumento de 65% em relação ao arsenal registrado pela Polícia Federal e pelo
Exército em dezembro de 2018, antes da posse do presidente Jair Bolsonaro”.
Significa que as medidas do atual governo geram morte em duas frentes. Pela falta de vacinas e pela negligência logística com o
abastecimento de oxigênio, assistimos estarrecidos à tragédia de Manaus e outras cidades da
região norte, vitimadas pelo avanço incontrolável de uma nova cepa do
coronavírus. Morre-se no hospital, morre-se na fila de espera e morre-se em
casa! De outro lado, pela flexibilidade ao acesso de armas de fogo por parte da
população, especialmente na zona urbana, não é difícil imaginar um cenário
igualmente trágico, isto é, o recrudescimento da violência que já faz parte do
dia-a-dia de nossas capitais. “Basta observar o cotidiano das cidades
brasileiras” – prossegue com razão o editorialista – “sobressaltadas por
chacinas, feminicídios, assaltos cinematográficos, guerras entre quadrilhas,
confrontos sangrentos entre policiais e bandidos e saraivadas de balas
perdidas, que sempre encontram inocentes pelo caminho”. Os argumentos
esgrimidos não poderiam levar a outra conclusão: “armar a população não é
política de segurança, mas de morticínio”.
O tema remete a uma das
advertências da Doutrina Social da Igreja, especialmente nos anos de 1960-1970, no contexto
da guerra fria. Nos escritos dos papas João XXIII e Paulo VI aparece com
frequência o alerta segundo o qual “a paz não é resultado do equilíbrio de armas
entre as grandes potências, mas fruto do desenvolvimento integral”. Tampouco será fruto do
progresso técnico e do crescimento econômico, por si só, e sim de uma justa e equânime
distribuição da riqueza produzida pelo trabalho de todos. A carta encíclica Pacem in Terris (1963); depois, no decorrer
do Concílio Vaticano II, a constituição pastoral Gaudium et Spes (1965); por fim, a carta
encíclica Populorum Progressio (1967), combinadas, refletem uma atmosfera
paradoxal e contraditória dos chamados “anos de ouro do liberalismo e do capitalismo”: euforia econômica ao lado
de ameaça nuclear e desigualdade social.
De fato, desde o pós-guerra,
em 1945, até a crise que irá se aprofundar a partir dos primeiros anos da
década de 1970, a economia floresce a todo vapor. Vários países estão se
levantando das cinzas, das ruínas e dos escombros (por exemplo, Alemanha,
Japão, França, Itália,) o que favorece notáveis taxas de crescimento aliadas a um quase pleno
emprego. Mas esse período de
crescimento representa igualmente uma dupla corrida: armamentista, de um lado, concentradora de riqueza
e renda, de outro.
Não podemos esquecer que privatizar e concentrar
os resultados do trabalho humano significa, contemporaneamente, aumentar a
exclusão social. E a esta altura, se abre uma terceira frente de mortes. A exclusão social, agravada
hoje com a crise prolongada da economia, mata a conta gotas, através da
pobreza, da miséria e da fome.
Chegamos a três trincheiras de morte. A corrida armamentista desencadeia
conflitos, guerras e matanças. Uma faca desempenha uma série de serviços,
servindo inclusive para matar alguém. Instrumento multifuncional! A arma de fogo, ao
contrário, tem como único objetivo ferir ou matar. Instrumento de morte! No ataque
ou na defesa, visa neutralizar o outro. A pretensão de defender-se com arma de
fogo pode representar suicídio. A posse desse instrumento dissimula uma
proteção enganosa, com risco de morte não para o atacante, mas para a vítima.
Já o Covid-19 ceifa sobretudo os extratos mais vulneráveis da população. Três vírus a serem
combatidos simultaneamente: o da violência, o da pobreza e o novo corona. Estimular um em detrimento
dos outros, acaba por agravar a vulnerabilidade do mais pobre e excluído.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
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