sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Roch ou areia?

Nada ameaça uma vida alicerçada na coerência

835 | 13 de setembro de 2025 | Lucas 6,43-49

Somente quem tem um olhar limpo e um coração puro está em condições de ajudar e criticar o próprio irmão. A misericórdia do Pai, que é bondoso tanto para com os bons como para os ingratos é o horizonte que nos inspira e a regra primeira. Nessa perspectiva, Jesus hoje nos oferece critérios para reconhecer o autêntico discípulo do Reino. Não basta reconhecer Jesus como Senhor!

Como a razão de ser da árvore é produzir sombra, flores ou frutos, espera-se que o discípulo demonstre o que é naquilo que faz, nas relações que estabelece com pessoas e com as coisas. E este fruto não é apenas uma canção, uma oração, uma invocação ou um determinado ato de piedade. Como vimos ontem, revelamos que somos discípulos de Jesus sendo misericordiosos como Deus o é conosco.

É pelos frutos que produzimos em nossas relações que revelamos em quem acreditamos e demonstramos a qualidade da árvore que somos. Não podemos esperar coisa boa de gente que se orienta pelo ódio ou pela indiferença, que se manifesta pela eliminação daqueles que julga errado ou incômodo, mas gosta de publicar frases e imagens de piedade e de pessoa devota em suas redes sociais.

As relações são exteriores, mas revelam os princípios e as decisões interiores, os valores que nos orientam e consideramos preciosos. Se nossa consciência é bem formada, se assumimos a escala de valores do Evangelho, se pautamos nossas ações pela prática e pelo ensino de Jesus, sempre tiraremos desse tesouro decisões boas e construtivas. Não há como tirar dele o ódio e a defesa do porte de armas.

O que se espera de nós, cristãos, é coerência entre a fé que professamos e aquilo que praticamos: seguir Jesus implica em levar a sério sua palavra e colocá-la em prática em todas as dimensões da vida. Caso contrário, seremos como as belas mansões construídas sem alicerce, sobre a areia: não resiste diante da menor prova ou força contrária; ou como as belas sepulturas que escondem carne em decomposição.

Que a incoerência e a superficialidade não façam de nós videiras estéreis ou que produzem frutos venenosos. Que Deus nos livre de sermos como aquelas casas que, de bonito e bom, só têm a fachada. Dentro delas vigora intolerância, violência, indiferença e a lei do “cada um para si e deus para todos”.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome cada palavra e cada comparação usada por Jesus e deixe que ressoem em sua vida

§ Em que medida a fé que você demonstra em nossa família e comunidade carecem de coerência?

§ Quais são os frutos bons que a escuta e meditação da Palavra e o cultivo da fé em Jesus tem produzido em você, sua família e sua comunidade?

§ Você não acha que corremos o risco de inflacionar novenas, adorações e ritos, mas deixamos anêmica nossa ação e nossos compromissos?

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

O cisco e a trave

O discípulo de Jesus não assume postura de juiz!

834 | 12 de setembro de 2025 | Lucas 6,39-42

Um pouco antes desta cena, Jesus deixara claro que a misericórdia do Pai, expressa concretamente na vida e ação de Jesus, é a referência e o dinamismo que orienta e move a ação dos cristãos. Nossa condição no mundo é semelhante àquela dos aprendizes, e não de juízes. Estamos na estrada, e não sentados no tribunal. Somos irmãos e irmãs, e não magistrados. Não pode haver crítica legítima sem autocrítica. É nosso amor aos mais vulneráveis que nos julgará no entardecer da vida.

No trecho de hoje, Jesus não se dirige aos fariseus ou doutores da lei, mas à comunidade de discípulos e discípulas. Para preveni-los do risco da crítica infundada e de assumirem a postura de superiores e juízes, Jesus recorre a dois provérbios ou sentenças: aquele do cego que se oferece nesciamente como guia; aquele do cisco no olho que impede de ver claramente a sujeira externa.

A advertência de Jesus é clara: todos nós podemos ser cegos e levar os outros a tropeçar e a cair; ninguém está em condições de julgar ninguém; não podemos criticar ninguém se não exercitarmos a autocrítica diante de Jesus e do seu Evangelho; em relação aos outros, somos irmãos, e não juízes. Quando esquecemos isso, acabamos por manifestar nossa petulância e hipocrisia, e mostrando que somos iguais aos criticáveis fariseus e doutores da lei. Não há lugar para a soberba e para tribunais penais no interior da comunidade cristã!

E a regra também é meridianamente clara: nossas relações devem pautar-se pelas relações de Jesus, único mestre e guia capaz de conduzir à vida e à verdade. Como discípulos do profeta de Nazaré, não somos maiores nem podemos ser diferentes do mestre. “Todo discípulo bem formado será como o mestre”. E Jesus não pautou sua vida pelo julgamento e pela condenação, mas pelo amor que liberta e edifica. É claro que isso não elimina a profecia, que nasce da paixão pela verdade. Aliás, a fraternidade, a acolhida e o respeito aos diferentes não é uma profecia eloquente?

Somente as pessoas que têm o olhar limpo e o coração puro (consciência dos próprios limites) estão em condições de ajudar e criticar os outros, e sempre como irmãos e irmãs. A misericórdia do Pai, que é bondoso tanto para com os bons como para os ingratos e maus, será sempre a nossa medida. Quem somos nós para colocarmo-nos acima dele? Quem teria competência e legitimidade para corrigir o próprio filho de Deus, ele que não foi enviado para julgar e condenar, mas para salvar?

 

Sugestões para a meditação

§ Retome cada palavra e cada comparação ou figura usada por Jesus e tente perceber o que significam para você

§ Você percebe, em você mesmo e na sua comunidade, sinais da tentação de ser como um cego que quer guiar cegos, corrigir os outros sem fazer autocrítica?

§ Como podemos conjugar a renúncia a julgar e condenar os outros com o dever de agir e falar com coragem profética diante das injustiças e mentiras que ferem nossos irmãos e irmãs?

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Ser vanguarda

É a misericórdia que nos faz semelhantes a Deus

833 | 11 de setembro de 2025 | Lucas 6,27-38

O Reino de Deus pede de nós, discípulos e discípulas de Jesus, grandeza de coração. Precisamos espelhar-nos na misericórdia do Pai, cujo rosto é o próprio Jesus, que ama incondicionalmente a “todos, todos, todos”, inclusive as pessoas “ingratas” ou “más”. O amor que se nos pede é mais que estratégia, oportunismo, boa educação ou boas maneiras. As exigências de Jesus são altas, e não é possível ser mesquinho.

Jesus é direto: “A vós que me escutais, eu digo...” Ele fala conosco, que dedicamos um mês especial à Palavra de Deus. Ele fala de modo manso, mas sublinha com ênfase, que as relações de amor recíproco são insuficientes. O amor aos iguais, às pessoas bondosas e agradecidas, é pouco, e não consegue se libertar das correntes do egoísmo de grupo e do paganismo. Deus não nos trata assim! Ele age de acordo com o que precisamos, e não com o que merecemos!

No evangelho de hoje, Jesus fala de amor aos inimigos, de compreensão com aqueles que nos odeiam, excluem, insultam e amaldiçoam. Não são apenas aqueles que odiamos ou que nos odeiam, mas aqueles que nos fizeram ou nos fazem mal, aqueles que a sociedade torna invisíveis e de quem não queremos nos aproximar e que, quando os ignoramos, nos sentimos bem.

Jesus faz questão de deixar bem claro o que significa amar os inimigos: fazer o bem a quem nos odeia; abençoar os que nos amaldiçoam; rezar por aqueles que nos caluniam; oferecer a outra face a quem nos bate; dar também a túnica a quem nos penhora o manto; emprestar a quem pede; dar sem cobrar retribuição. Não é de hoje que surgem pessoas que pensam que Jesus foi longe demais.

Mas Jesus não ensina a passividade, a submissão ou a ingenuidade. O que ele pede é que sejamos como ele e como o Pai dele e nosso, que “é bondoso também para com os ingratos e maus”. Ele espera que não sejamos apenas reagentes, mas capazes de inovar, de tomar a iniciativa, de fazer aos outros o que desejamos que nos façam.

A misericórdia é a profundidade e a generosidade de Deus, e também a balança na qual nossa fé, nossa esperança e nossa caridade são medidas. A medida de Jesus e do Pai deve ser a nossa medida. É assim que brilhará em nosso rosto e em tudo o que fazemos e somos o rosto do Pai e assim demonstraremos que somos filhos do Pai.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome cada afirmação ou prescrição de Jesus, identificando quem são os seus “inimigos” ou “adversários”

§ Você acha isso tudo praticável ou impossível de levar em conta em nossas relações?

§ Por onde você poderia começar, hoje, evitando querer fazer tudo de uma vez e acabando por desanimar?

§ O que podemos fazer para ajudar nossas comunidades a levar a sério a proposta de Jesus em tempos de intolerância?

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Felicidade X frustração

Onde encontrar a felicidade que todos buscam?

832 | 10 de setembro de 2025 | Lucas 6,20-26

No “sermão” de hoje, Jesus fala aos discípulos que chamou ou que o buscaram espontaneamente. Na sinagoga de Nazaré, ele já havia deixado claro que, com ele e com o advento do Reino de Deus, inaugurava-se um tempo de gratuidade e felicidade no qual os pobres e oprimidos ocupam o primeiro lugar.

No seu anúncio de hoje, Jesus distingue claramente dois grupos de pessoas: um grupo que ele declara feliz, e um grupo que ele caracteriza como maldito. As pessoas felizes são os discípulos verdadeiros, coerentes, solidários, colaboradores de Deus no mundo. As pessoas malditas são as que não permitem que Deus interfira nas suas escolhas e, assim, impedem que ele reine na sociedade.

Os pobres (literalmente, as pessoas carentes e dependentes) são felizes porque são os destinatários do Reino de Deus. E os ricos (que em Lucas são representados pelo homem indiferente e avarento da parábola do rico e de Lázaro) devem se lamentar porque não descobriram o tesouro da partilha e da solidariedade, e se detêm em satisfações egoístas e fugazes.

Aos famintos (toda caracterização é dispensável!) Jesus opõe os satisfeitos (orgulhosos com o que têm). Felizes são também as pessoas que choram (aquelas que lamentam a morte de uma pessoa querida ou um erro cometido), enquanto que grupo dos que riem (pessoas seguras de si mesmas, que se sentem melhores e superioras) é declarado maldito.

Felizes são também os discípulos que sofrem ódio, exclusão e insultos por causa de Jesus e do Reino de Deus, enquanto que as pessoas despreocupadas, badaladas e estimadas como os falsos profetas merecem a reprovação de Jesus e não chegam a experimentar a verdadeira felicidade.

Não se trata de um desejo vazio de Jesus, nem de uma promessa para depois da morte, mas de uma declaração que tem a força de quem a pronuncia. Nessas palavras, Jesus desmascara as ilusões dos ricos e satisfeitos e assegura a reviravolta, já iniciada pela instauração do Reino de Deus.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome cada proclamação e cada lamentação correspondente e as deixe repercutir em você, mantendo os pés no chão

§ Para você é difícil concordar com o que Jesus diz e faz? Você tem vontade de amenizar sua fala, de adocicar suas palavras?

§ Experimente inverter o que Jesus diz: ai dos pobres, ai dos que choram, ai dos que têm fome... Isso é humano e aceitável?

§ Você continua disposto a seguir este caminho especial de felicidade proposto por Jesus, e está consciente das exigências que comporta?

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Evangelizar é preciso

Eis-me aqui, Senhor, pra fazer tua vontade!

831 | 09 de setembro de 2025 | Lucas 6,12-19

Hoje, 9 de setembro, recordamos os dois anos da primeira das duas enchentes que atingiram o povo do Rio Grande do Sul, e que aprendemos a chamar de “eventos climáticos extremos”. Ao mesmo tempo, o clima é de acirrada disputa política em torno do julgamento dos golpistas do final de 2022 e janeiro de 2023. Essa disputa acaba sendo amenizada, ao menos em parte, pela semana farroupilha, que celebra uma guerra perdida e louva costumes e tradições ambíguas e questionáveis.

Mesmo que alguns dos 12 discípulos escolhidos e enviados sejam pouco conhecidos, Jesus os “escolheu a dedo” e os chamou pelo nome. Antes de chama-los, passou uma noite em oração, para que não se enganasse na escolha, e para que eles fossem símbolo do novo povo de Deus, não obstante seus inúmeros e conhecidos limites. Ser Apóstolo significa ser enviado, ser porta-voz de Jesus e seu Evangelho, que, decididamente, não significa proclamar que “o Sul é meu país”, e que aqui simplesmente “tudo o que se planta cresce e o que mais floresce é o amor”.

Os Doze apóstolos participam da missão do próprio Jesus, fazem o que ele fez, desfrutam da sua dignidade, assumem sua meta e trilham seu caminho. Eles recebem a missão de manter a Palavra de Jesus sempre viva, atual e relevante. São convocados pela Palavra e consagrados a serviço dela. O fruto dessa missão é o despertar do desejo de encontrar Jesus e de acolher seu Evangelho como a boa terra acolhe a semente e cria as condições para que germine.

A convocação dos Doze e a missão que lhes é confiada emergem da oração de Jesus sobre a montanha. A comunidade eclesial nasce e se fortalece da comunhão de Jesus com o Pai, daquela obediência e daquele amor de quem não recua diante da morte, simbolizada na noite. A vocação dos Doze é também um chamado à comunhão, que é o objetivo e o método de todo apostolado. Ser Igreja é caminhar juntos.

Nossas comunidades e cada um de nós somos convocados a renovar nosso ardor missionário, a potencializar nosso testemunho, a dar nossa resposta concreta e engajada ao Senhor que nos chama através dos clamores e esperanças do nosso povo. Estamos respondendo com a vida “Eis-me aqui, envia-me”?

 

Sugestões para a meditação

§ Acompanhe passo a passo o retiro orante, a escolha nominal e o envio dos Doze Apóstolos, embaixadores do Reino de Deus

§ Deixe que ressoe também em você e hoje o chamado e a escolha de Jesus: “Eu te amo, te chamo, te formo e te envio!”

§ Desça da montanha com Jesus, e perceba a multidão que vem ao encontro dele, abandonada e ferida pelos falsos “messias”

§ Como a multidão, procure tocar Jesus, e deixar-se tocar pela Palavra e pela liberdade solidária e destemida que ele nos ensina

sábado, 6 de setembro de 2025

Deus X ídolos

ÍDOLOS PRIVADOS

Há algo que é escandaloso e insuportável para quem se aproxima de Jesus a partir do clima de autossuficiência que se vive na sociedade moderna. Jesus é radical na hora de pedir adesão à sua pessoa. O seu discípulo deve subordinar tudo ao seguimento incondicional do seu caminho.

Este não é um conselho evangélico para um grupo de cristãos seletos ou uma elite de esforçados seguidores. É a condição indispensável de todo discípulo. As palavras de Jesus são claras e rotundas. «O que não renuncia a todos os seus bens não pode ser meu discípulo».

Todos nós sentimos nas profundezas do nosso ser o anseio de liberdade. E, no entanto, há uma experiência que continua a impor-se geração após geração: o ser humano parece condenado a ser escravo dos ídolos. Incapazes de sermos autossuficientes, passamos a vida à procura de algo que responda às nossas aspirações e desejos mais fundamentais.

Cada um de nós procura um deus para viver, algo que inconscientemente convertemos no essencial da nossa vida, algo que nos domina e se apodera de nós. Procuramos ser livres e autônomos, mas, aparentemente, não podemos viver sem nos entregarmos a algum ídolo que determina toda a nossa vida.

Esses ídolos são muito diversos: dinheiro, sucesso, poder, prestígio, sexo, tranquilidade, felicidade a todo custo... Cada um conhece o nome do seu «deus privado», a quem entrega secretamente o seu ser. Por isso que, quando num gesto de liberdade ingênua, fazemos algo porque nos apetece, temos de nos perguntar o que é que nos domina naquele momento e a quem estamos realmente obedecendo.

O convite de Jesus é provocador. Só há um caminho para crescer em liberdade, e só o conhecem aqueles que ousam segui-lo incondicionalmente, colaborando com Ele no projeto do Pai: construir um mundo justo e digno para todos.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

Decisões responsáveis

O seguimento de Jesus pede lucidez e renúncias

829 | 07 de setembro de 2025 | Lucas 14,25-33

A ligação desta cena com a anterior parece ser as desculpas da elite religiosa e econômica para não aceitar o convite à festa do Reino: “Acabei de casar e, por isso, não posso ir; comprei um campo, e preciso ir vê-lo; comprei cinco juntas de boi, e vou experimentá-las”. Os interesses individuais parecem ser álibi suficiente para não se engajar na obra de Deus e não participar daquilo que é bem comum.

Diante de uma relativa multidão que manifesta interesse por ele, Jesus volta a enfatizar a prioridade do Reino de Deus sobre vínculos familiares e interesses pessoais, pedindo que cada um avalie os riscos e as exigências da opção de segui-lo, a fim de “não fazer feio” e “cair fora” logo depois de ter iniciado com entusiasmo.

Para deixar isso bem claro para todos os seus ouvintes, Jesus recorre a duas parábolas: a primeira fala do planejamento para a construção de uma torre; a segunda se refere à preparação dos soldados para uma batalha. Em ambos os casos, o sujeito em questão deve analisar bem os recursos e forças que dispõe, fazer os cálculos e concluir se consegue ou não levar a obra ou a luta até o fim.

Jesus já havia advertido seus discípulos sobre o risco de sofrer uma morte violenta e ignominiosa, inclusive em nome da religião. É como se no episódio de hoje ele quisesse dizer aos candidatos a discípulo: segui-lo é uma decisão muito comprometedora. Usando um ditado popular, não se trata de entrar na omelete como entra a galinha (dando os ovos) mas como participa o porco (dando a carne).

É claro que, com essas parábolas, Jesus não pretende desencorajar os discípulos. O que ele quer é advertir-nos que não é possível aderir ao Reino de Deus pela metade, que não podemos iludir-nos com a possibilidade de servir a dois senhores, que a perseverança pressupõe uma decisão lúcida e consciente, que precisa sempre contar com as renúncias e riscos.

Lucas conhecia a inconstância e os sinais de retrocesso das comunidades diante das dificuldades que estavam enfrentando. O núcleo dos perigos era o apego às riquezas, das quais a família patriarcal era um dos elos importantes. Mas o questionamento de Jesus também nos faz refletir sobre um cristianismo vivido no oba-oba.

 

Sugestões para a meditação

§ A maioria de nós iniciou a caminhada da fé cristã sem reflexão e consciência sobre as exigências que ela comportaria

§ O que tínhamos presente era apenas um conjunto de obrigações e proibições de ordem moral, que não tocavam nos bens

§ Hoje, com a aguda consciência que temos, precisamos renovar essa opção avaliando bem os custos e as nossas possibilidades

§ O que é que está nos pressionando mais e tornando menor nossa adesão ao Evangelho, dificultando a nossa perseverança?

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A lei e o estômago

O direito de comer está acima do direito de propriedade

828 | 06 de setembro de 2025 | Lucas 6,1-5

Na cena imediatamente anterior que meditamos ontem, Jesus afirma que seus discípulos devem viver a alegre e boa novidade do Reino de Deus, deixando de lado “velhas lições” e “velhos hábitos” rigorosos, que levam a formar guetos de pessoas que se consideram perfeitas e superioras às demais. Hoje, Jesus volta à questão: a pessoa e suas necessidades estão acima de toda lei e do culto.

É sábado e, desta vez, Jesus não está na sinagoga, mas se deslocando com seus discípulos pelos campos. Sentindo fome, eles colhem e comem trigo de uma plantação que não lhes pertence. Os fariseus observam que eles caminham e colhem num dia que não é permitido fazê-lo. E, além disso, percebem que eles não respeitam o “sagrado direito” da propriedade privada. Não se trata simplesmente de costumes religiosos, mas de leis econômicas que causam insegurança alimentar.

Segundo a mentalidade dos fariseus, os discípulos de Jesus cometem dois pecados: não respeitam as proibições da lei que impõe repouso no sábado; roubam alimento da propriedade alheia. A segunda acusação não aparece claramente, mas é aludida no fato citado por Jesus para sua própria defesa: Davi e seus companheiros, estando com fome, se apossam e comem do pão reservado aos sacerdotes. A vida tem prioridade, inclusive, sobre a “sagrada” lei da propriedade privada!

Jesus responde à acusação dos fariseus com duas críticas à postura deles: embora se apresentem como defensores da tradição e da lei de Deus, eles desconhecem o sentido mais profundo das escrituras (“acaso vós não lestes?”); eles resistem a reconhecer Jesus como o enviado autorizado e Filho de Deus, que é o legislador e, por isso, está acima das leis (“o Filho do Homem é Senhor também do sábado”).

Algumas leis e costumes, por mais importantes que pareçam aos olhos de alguns, se contrapõem ao Evangelho, são como tecido velho irrecuperável ou como barril danificado. Neste momento da história do Brasil, com polarizações e mentiras que enganam e embrutecem, há quem insista que a lei do equilíbrio fiscal é intocável. Se, por causa disso, o povo não tem acesso à cultura, morre de fome ou por falta de atendimento médico, isso pouco importa a eles.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome a cena, inserindo-se na caminhada de Jesus com seus discípulos, sob o olhar crítico dos fariseus

§ Procure entender com exatidão a crítica que as lideranças religiosas (fariseus) fazem aos discípulos e a Jesus

§ Como você se sente diante da afirmação de Jesus, de que ele é senhor das leis e instituições, e está acima delas?

§ Você ainda defende, ao menos na prática, a prioridade das leis e costumes sobre as necessidades e a dignidade das pessoas?

Semana da Pátria

 Celebrar a independência defendendo a soberania

Estamos na semana da pátria, e o patriotismo tem se tornado um conceito disputado. Faz tempo que a comemoração da independência se tornou palanque para discursos e apelos desencontrados. Há décadas as manifestações têm sido pouco populares e muito militares. Será que o amor à pátria vigora puro apenas nas casernas? A fé cristã rima com paz, e não com desfiles que ostentam armas e glorificam guerras. Paulo nos pede que, por amor a Jesus Cristo, tratemos a todos, inclusive os escravos, como irmãos (cf. Fm 16).

Lembro sem saudades, e com um certo constrangimento, as celebrações eufóricas que marcaram os 150 anos da independência, em 1972. Ainda adolescente, e sem nenhuma consciência de que a “pátria mãe gentil” era governada pelo medo e muitos patriotas verdadeiros haviam sido mortos ou expulsos, eu cantava emocionado: “Potência de amor e paz, esse Brasil faz coisas que ninguém imagina que faz...” Eram os tempos da ordem de amar o Brasil ou deixá-lo (como se os exilados haviam deixado o Brasil por não amá-lo).

Posteriormente, com um pouco mais de consciência, eu ficava incomodado ao constatar que as escolas não sabiam celebrar essa data senão com eventos que imitavam os desfiles militares. Manifestações de defesa da soberania diante dos novos colonizadores e de crítica aos “podres poderes” de plantão, reivindicações de igualdade e justiça, expressões dos sonhos e utopias do povo eram mal vistas e, não poucas vezes, proibidas.

Hoje, em meio a novas tentativas de apropriação ideológica das cores e símbolos nacionais, urge libertá-los do sequestro que estão sofrendo. Se conseguimos, como cantamos no Hino, o penhor da igualdade entre as nações soberanas com braço forte, não é somente no seio da liberdade que precisamos estar prontos a desafiar a morte: também no seio e no sonho da igualdade e da justiça, precisamos desafiar e desmascarar aqueles que impõem a morte perpetuando a desigualdade e promovendo o entreguismo.  

Qual é o sonho intenso e o raio vívido de amor e de esperança que desce à terra? Não vejo outro melhor que aquele expresso na Constituição de 1988: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º).

Vejo que nossos bosques e florestas, cobiçados e destruídos, clamam por vida; nossos campos já não têm tantas flores, mas foram tomados por muita cana, soja, café, gado, e cercas que limitam nossa vontade de viver e de amar. Por isso, no seio dessa terra, nossa vida, a vida do nosso povo, tem mais dores que amores. Não é verdade que nosso passado é marcado por glórias. E, para que haja paz no futuro, é preciso fazer as contas com ele.

A semana da pátria é tempo apropriado também para levantar um grito retumbante a clava forte da fome de justiça e de igualdade, da defesa da democracia e da soberania, inclusive mediante um plebiscito popular. É dessa luta que um filho não foge. Não ama a “pátria, mãe gentil” quem se cala por medo e conveniência ou fala por ambição e ódio, temendo desagradar senhores e perder privilégios.

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul

A quem você serve?

ÍDOLOS PRIVADOS

Há algo que é escandaloso e insuportável para quem se aproxima de Jesus a partir do clima de autossuficiência que se vive na sociedade moderna. Jesus é radical na hora de pedir adesão à sua pessoa. O seu discípulo deve subordinar tudo ao seguimento incondicional do seu caminho.

Este não é um conselho evangélico para um grupo de cristãos seletos ou uma elite de esforçados seguidores. É a condição indispensável de todo discípulo. As palavras de Jesus são claras e rotundas. «O que não renuncia a todos os seus bens não pode ser meu discípulo».

Todos nós sentimos nas profundezas do nosso ser o anseio de liberdade. E, no entanto, há uma experiência que continua a impor-se geração após geração: o ser humano parece condenado a ser escravo dos ídolos. Incapazes de sermos autossuficientes, passamos a vida à procura de algo que responda às nossas aspirações e desejos mais fundamentais.

Cada um de nós procura um deus para viver, algo que inconscientemente convertemos no essencial da nossa vida, algo que nos domina e se apodera de nós. Procuramos ser livres e autônomos, mas, aparentemente, não podemos viver sem nos entregarmos a algum ídolo que determina toda a nossa vida.

Esses ídolos são muito diversos: dinheiro, sucesso, poder, prestígio, sexo, tranquilidade, felicidade a todo custo... Cada um conhece o nome do seu «deus privado», a quem entrega secretamente o seu ser. Por isso que, quando num gesto de liberdade ingênua, fazemos algo porque nos apetece, temos de nos perguntar o que é que nos domina naquele momento e a quem estamos realmente obedecendo.

O convite de Jesus é provocador. Só há um caminho para crescer em liberdade, e só o conhecem aqueles que ousam segui-lo incondicionalmente, colaborando com Ele no projeto do Pai: construir um mundo justo e digno para todos.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Roupa nova e vinho novo

É festa de casamento, e o vinho novo é o melhor!

827 | 05 de setembro de 2025 | Lucas 5,33-39

Depois da pesca frutuosa e do chamado de Pedro e seus companheiros de trabalho, nas cenas que a sequência litúrgica trata noutras oportunidades, Jesus cura um leproso (v. 12-16) e um paralítico (v. 17-26), chama o publicano Mateus a segui-lo e vai à casa dele se confraternizar com outros cobradores de impostos e pecadores (v. 27-32). Isso provoca desconforto nos fariseus, que começam a questionar as práticas religiosas de Jesus e o comportamento dos seus discípulos.

Ao interpelar Jesus a respeito do comportamento dos discípulos, os fariseus querem atingir o próprio Jesus. O ponto de discordância é o jejum praticado pelos fariseus e também por João Batista e seus seguidores. Jesus e seus discípulos fazem pouco caso do jejum e priorizam a festa e a confraternização. Levi se converte ao Evangelho de Jesus e, ao invés de fazer jejum, organiza uma festa, para a qual convidou outros cobradores de impostos. É quase uma provocação às tradições dos judeus.

Na sua resposta, Jesus não despreza o jejum, mas justifica a alegria e a esperança que nascem da chegada do Reino de Deus. E faz isso recorrendo a duas sentenças ou parábolas que contrapõem uma realidade velha e uma novidade. A palavra “novo” aparece quatro vezes nestes versículos, e se refere ao Reino de Deus, à nova Aliança assinada por Jesus. Nesta aliança-casamento, Jesus é o noivo da humanidade, e o vinho e o vestido apontam para a festa e a alegria.

Quem entra na lógica do Reino de Deus assume um estilo de vida divergente a alternativo àquele vivido como fachada e de um modo superficial: a purificação que agrada a Deus e faz bem às pessoas é interior, e não exterior. Para alguns judeus, mormente os mais piedosos, a abertura à novidade do Reino de Deus anunciado e inaugurado por Jesus é difícil, e eles preferem remendos numa roupa velha ou o vinho velho, ao qual já se habituaram, mesmo que tenha perdido qualidade e sabor.

Os discípulos de Jesus são convidados e perceber e viver essa novidade, deixando de lado “velhas lições” e “velhos hábitos”, rigorosos e excludentes, que levam a formar guetos fechados de pessoas que se consideram perfeitas e superioras às demais, e tratam as outras com desprezo, chegando até a atitudes e palavras violentas.

 

Sugestões para a meditação

§ Retome pacientemente o episódio, começando pelo chamado de Levi e pela festa na casa dele (v. 27-32)

§ Perceba o escândalo e o desconcerto dos fariseus diante da troca da austeridade e do jejum pela confraternização à mesa

§ Deixe-se inspirar pelas imagens do Reino de Deus: o remendo novo em roupa velha, o vinho novo em pipas antigas e a festa da Aliança

§ Você percebe, em você e sua comunidade, sinais da tentação de usar o Evangelho para remendar práticas que nada tem a ver com eles?