O corpo de Cristo é a
comunidade que partilha
(Gn 14,18-20; Sl 109/110; 1Cor 11,23-26;
Lc 9,11-17)
Ainda embalados pelo alegre
dinamismo da Páscoa, pelo sopro do Espírito Santo e pela comunhão trinitária,
celebramos a solenidade de Corpus Christi.
Esta festa é uma forma de recordar e sublinhar o o dinamismo fundamental da
vida cristã: partilha, comunhão, dom de si, serviço. A solenidade, reforçada
pelo incenso abundante, pelas ricas alfaias, pelas procissões populares e pelas
ruas enfeitadas, quer enfatizar que Cristo se faz sacramentalmente presente na
comunidade dos irmãos e irmãs que se solidarizam na partilha do pão e no dom da
vida, que se reúnem para celebrar em torno da Mesa e da Palavra e que fazem
memória da doação maior de Jesus e da nuvem de testemunhas que o seguiram. A
Eucaristia não é algo a ser adorado e exposto publicamente, mas expressão do
amor de Deus por nós, de um amor que
chega ao seu ápice quando se torna comunhão e amor ao próximo em nós.
“Bendito seja o Deus altíssimo...”
A solenidade que hoje celebramos foi
instituída no ano de 1864, pelo Papa Urbano IV, com o objetivo de sublinhar a presença real de Cristo no
sacramento da Eucaristia. Infelizmente, na França dos séculos XV e XVI –
mas também em alguns outros lugares em diferentes épocas – esta celebração
acabou se tornando uma espécie de provocação pública dos católicos contra os
protestantes. Na França, os católicos desfilavam armados, e a procissão
eucarística frequentemente acabava em confronto violento contra os “inimigos”.
Como foi possível chegar a algo tão contrário ao sentido cristão da
Eucaristia?!
Ma este é um dia solene e belo,
comparável àquele da nossa primeira eucaristia. Nem a exigência de comportar-se
exemplarmente, nem a coreografia a ser cumprida minuciosamente, nem a roupa
nova e a presença da família e dos parentes conseguiram diminuir o sentido
profundo daquela nossa primeira participação na mesa da Eucaristia. “Deus se
entregou por mim! Ele vem morar em meu coração purificado pela confissão e
disposto a sempre amar e servir... Bendito seja o Deus altíssimo”
Entre tantos testemunhos da emoção
sincera que muitos experimentaram na primeira eucaristia, recordo o que ocorreu
com João Berthier, cuja primeira Eucaristia teve lugar na festa da Santíssima
Trindade, em 1852. Um colega diz que ficou profundamente tocado ao perceber
que, ao seu lado, depois de receber a Eucaristia, Berthier chorava. Só mais
tarde seu amigo entenderia que aquelas não eram lágrimas de tristeza, mas de uma
gratidão e de uma felicidade não traduzíveis em palavras.
“Fazei isto em
minha memória.”
A festa de hoje também soleniza a
beleza profunda da nossa Eucaristia cotidiana ou dominical. Mais que uma
obrigação, participar frequentemente da Eucaristia é uma necessidade e um direito
dos/as discípulos/as de Jesus Cristo; uma forma de vencer a sensação e a
tentação da fragmentação que nos ronda nas atividades cotidianas; uma
oportunidade de acolher a Palavra sempre viva de Jesus Cristo, de confirmar
nossa adesão ao seu Testamento e de tecer o fio do vínculo que nos une aos
outros/as.
Mas é preciso ter presente que
Jesus, quando ordena a seus discípulos “façam isso em memória de mim”, não está intituindo um rito a ser repetido
com reverência mas propondo uma forma
de vida a ser assumida com coerência. Como todos os gestos simbólicos que
repetimos cotidianamente, a Eucaristia é um sinal
sacramental que aponta para algo mais profundo e transcendente: em Jesus, Deus
se faz dom por nós, a fim de que a nossa vida adquira forma de dom solidário
pelo próximo. É assim que somos uma memória viva de Jesus Cristo no mundo.
Diante do dom total de Jesus Cristo
pela vida do mundo que celebramos em cada Eucaristia , recolhemos nas mãos o melhor de
nós mesmos/as e, como o rei Melquisedec, oferecemos a Deus em favor dos irmãos
e irmãs. Em todos os pequenos e grande gestos de partilha Deus vai vencendo as
forças que se opõem ao ser humano e vai regenerando o céu e a terra.
“Dai-lhes vós mesmos de comer!”
Voltemos nossa atenção para o
Evangelho que nos é proposto neste dia. Pouco antes desta cena, Jesus havia
convocado os Doze e lhes havia dado “poder e autoridade sobre todos os demônios
e para curar doenças” (Lc 9,1). Quando o grupo volta desta espécie de estágio
missionário, Jesus o leva para descansar fora do território judaico. Então, os
apóstolos contam animados o sucesso que haviam experimentado. Não obstante ser aquele
um lugar deserto, as multidões necessitadas vão atrás de Jesus e dos
discípulos. Sem se incomodar, Jesus lhes fala do reino de Deus e cura as
pessoas doentes.
Mas parece que o repentino e recente
sucesso havia subido à cabeça dos apóstolos. A impressão é que eles se sentem
uma elite especial e separada do resto do povo, um grupo que ocupa um grau
hierárquico superior, um grêmio fechado e dotado de poder e autoridade recebida
de Deus. No fim do dia, o grupo dos Doze
se aproxima de Jesus e simplesmente lhe dá uma ordem: “Despede a multidão
para que possam ir aos povoados e sítios vizinhos procurar hospedagem e
comida...” Como se a comunidade eclesial e suas lideranças não exististisse
exatamente para dar uma resposta efetiva às alegrias e tristezas, angústias e
esperanças das pessoas e grupos humanos concretos...
“E todos comeram e se saciaram...”
Jesus reage ordenando sem meias-palavras
que são eles os encarregados de cuidar do povo. Jeus não se importa se eles têm
ou não provisões suficientes, e pede que organizem o povo em comunidades. Depois
de se apropriar dos poucos pães e dos peixes
dos apóstolos, como um pai de família, Jesus eleva, abençoa, parte e dá aos discípulos para que distribuam.
Termina o tempo do “cada um para si” e começa o tempo do convívio, da partilha
e do serviço. Inaugura-se o tempo de comunhão.
É possível que aquela multidão de
gente necessitada fosse excluída do judaísmo, gente que não merecia nenhuma
consideração da parte das autoridades religiosas de Jerusalém. Mas essa gente recebe atenção prioritária da
parte de Jesus, e o mesmo deve valer para a Igreja. “Todos comeram e se
saciaram.” Depois que estes forem servidos, a sobra – 12 cestos, 12 tribos de
Israel – vai para os demais! A atenção
dos cristãos é inclusiva e universal, mas dá prioridade aos últimos ou
excluídos.
“Isto é o meu corpo entregue por vós...”
Viver a Eucarista é entrar nesta lógica do dom, da prioridade dos
últimos e mais frágeis. Não consigo entender uma Eucaristia que exclui, pois diante deste
sacramento não se deve dizer “se aproxime da mesa da Eucaristia quem for digno/a e estiver preparado/a”,
mas “Senhor, eu não sou digno de
participar da tua mesa...” A Eucaristia é um espírito a ser encarnado, e não uma
doutrina que recrimina e exclui, ou um objeto a ser reverenciado.
Santo Tomás de Aquino diz que na
Eucaristia temos o “documento do imenso amor de Cristo pela humanidade” e
“fazemos memória da altíssima caridade que Cristo demonstrou na sua paixão”. A questão central não é tanto sua presença
no pão quanto seu caminho de amor apaixonado e solidário pela humanidade. O
ponto central não é propriamente a transubstanciação do pão e do vinho mas a
presença real e contínua de Cristo nos nossos gestos de partilha e
solidariedade.
“Vos sois o corpo de Cristo e,
individualmente, sois membros deste corpo”, diz Paulo (1Cor 12,27). A nossa
vocação é nada mais e nada menos que ser o corpo histórico de Cristo no mundo:
um corpo feito dom e comunhão; um corpo no qual os membros são iguais,
diferentes e reciprocamente solidários; um corpo no qual os membros mais
frágeis e considerados menos decentes são tratados com maior honra.
“Até que ele venha...”
Como povo reconciliado, deixamos juntos/as
o ambiente cálido e amistoso da mesa da Eucaristia para levar seu dinamismo ao
coração da cidade. Depois de participar agradecidos/a da Ceia na qual Jesus
sacramentaliza sua vida feita dom, vamos às ruas da cidade para levar a todos
os cantos e brechas o “vírus da Eucaristia”, a sede de comunhão, o propósito
irrevocável de dar o melhor de nós pelos outros.
Eu não imagino esta caminhada com
cânticos como “hóstia branca, no altar consagrada...” ou “queremos Deus, homens
ingratos”. Cabem melhor convites e anúncios como este: “Entra na roda com a
gente também! Você é muito importante! Vem!” Ou então: “Desempregados,
pecadores, desprezados e os marginalizados... Venham todos se ajuntar à nossa
marcha para a nova sociedade. Quem nos ama de verdade, pode vir que tem lugar!”
Afinal, o corpo de Cristo é a comunidade de irmãos e irmãs!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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