Uma Igreja Casa-de-Deus
tem as portas sempre abertas.
(At 15,1-2.22-29; Sl 66/67; Ap
21,10-14.22-23; Jo 14,23-29)
O sentimento de gratidão, as
palavras de elogio, as muitas promessas irrealizáveis e os presentes sugeridos pelo
comércio tendem ocupar a sexta semana da páscoa. Mas não podemos esquecer o
espírito pascal, e somos convidados a penetrar com sensibilidade acurada as
palavras que Jesus dirige aos discípulos ao redor da mesa da Ceia, aludindo à
sua Paixão e ao renascimento no Espírito. Como discípulos e discípulas de
Jesus, continuamos sendo chamados/as a construir uma Igreja com os traços
femininos da acolhida, da confiança, do encorajamento, da abertura missionária
e da inculturação. Uma Igreja que se mostre uma casa de Deus com todas as
portas sempre abertas, que não extinga a profecia que brota do Cordeiro/Servo
que não recua diante daqueles que ameaçam tirar-lhe a vida.
“Eu vou, mas voltarei a vós...”
Todas as religiões se
apresentam aos seus seguidores como caminhos
que levam à divindade e à felicidade. E esta oferta se ajusta como luva à insaciável
sede de plenitude que habita e move o
ser humano. Os caminhos que são oferecidos se dividem em dois grupos: os que
propõem a saída e o esquecimento de si
mesmo para encontrar a plenitude nas realidades externas e transcendentes;
os que propõem e ensinam o mergulho em si
mesmo e o esquecimento das realidades externas, inclusive dos demais seres
humanos.
Mas talvez exista uma
terceira possibilidade, que está discretamente presente em algumas religiões e
é apresentada claramente por Jesus Cristo, mas não necessariamente pelo cristianismo
que nasceu dele: Deus mesmo vem saciar
nossa sede de plenitude, eliminando a distância que nos assusta, assumindo
e aperfeiçoando as realidades humanas e as construções sociais. Jesus Cristo
nos apresenta um Deus humanizado e encarnado, servidor e libertador, próximo e
presente no ser humano que ama e sofre.
“Nós viremos e
faremos nele a nossa morada.”
“Se alguém me ama, guadará a
minha Palavra; meu Pai o amará, e nós
viremos e faremos nele a nossa morada.” Assim, o amor autenticamente
humano, fraterno e solidário, é o êxodo do ser humano em direção a Deus e o
advento de Deus na carne humana. Em outras palavras: o que nos faz semelhantes a Deus e nos aproxima dele não é o muito
saber, o grande poder ou a ausência de sofrimento, mas o dinamismo do amor que
nos faz loucos, pobres, servidores e sofredores.
As igrejas cristãs são
chamadas a ser assembléias de homens e
mulheres que vivem uma intensa e única paixão por Deus e pela humanidade. É
verdade que às vezes elas são tentadas a se identificarem com o próprio Deus, a
assumir a função de administradoras delegadas de Deus, enrijecendo o sistema de
proibições e coerções e usurpando o poder que só a Deus compete. E esta postura
acaba causando dificuldades, discussões e confusões, como a imposição da circuncisão
aos cristãos vindos do judaísmo.
“Saudamos or
irmãos vindos do paganismo...”
As normas essenciais de uma casa são a
acolhida, o respeito, a partilha e a abertura, não obstante a sensação de insegurança que nos
induz a levantar muros e instalar sistemas de alarme. As igrejas cristãs não podem esquecer esta vocação essencial de serem
casa que acolhe e que está a serviço das pessoas que nela vivem, e não o
contrário. É triste quando percebemos que a língua, as normas e os hábitos
estão mais a serviço de um passado superado que das necessidades de quem vive
no século XXI.
Quando Jesus fala das diversas moradas que existem na casa do
Pai e que ele vai para preparar-nos um
lugar, está se referindo à sua missão de afirmar nossa condição de
filhos/as e herdeiros/as de Deus (cf. Jo 14,2). Mas no evangelho de hoje Jesus inverte o movimento e diz que é Deus
quem vem às às igrejas que se organizam em seu nome para fazer delas sua casa.
Para que isso se realize, as comunidades precisam cultivar o amor, o diálogo, o
serviço e a abertura às necessidades do mundo.
“Estava cercada
por uma muralha grande, com doze portas...”
Uma Igreja que queira ser fiel a Jesus Cristo
e aos tempos atuais deve ser uma Igreja aberta e missionária. É verdade que o Espírito
Santo é enviado ao povo de Deus como força que o separa das trevas e das
armadilhas de um mundo perverso, como o fez com Jesus, mas não esqueçamos que
ele é também o dinamismo que nos leva a tirar/carregar
o pecado do mundo, o Espírito nos defende da lógica excludente do mundo e
nos mantém neste mundo como sementes de amor e vida.
A dificuldade enfrentada por
Paulo e Barnabé diante de um grupo de cristãos liderados por Tiago e Pedro teve
origem numa atitude de fechamento legal e cultural que levou os últimos a
identificar alguns costumes com o próprio Evangelho. Mas, graças à lúcida
teimosia de Paulo e de Barnabé, “que arriscaram a vida pelo nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo” e à ação do Espírito Santo, eles reconhecem e acolhem os
“irmãos vindos do paganismo” e não lhes impõem os costumes judeus.
Este fato memorável nos
encoraja a sonhar e lutar também hoje por
uma Igreja que não tenha medo de acolher e dialogar com os diferentes grupos e
movimentos sociais e culturais, colaborando com eles na gestação de um mundo
justo e solidário. Para que servem os muros levantados por leis e costumes
ocidentais, ritos e trajes medievais, discursos e catequeses unicamente
doutrinais, medos e autoritarismos infantis? É tempo de abrir portas, como o fizeram sabiamente os apóstolos.
“A glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada
é o Cordeiro...”
A este propósito, é bela a
visão que João nos apresenta da cidade santa, imagem da Igreja. Ela está
cercada por uma muralha que a protege das violentas perseguições, mas tem portas por todos os lados e tem como
alicerce o testemunho martirial dos apóstolos. O esplendor que a envolve
não vem do saber ou do poder, mas da glória de Deus, ou seja: do amor vivido
até às últimas consequências. Seu esplendor não é seu, nem é dado pelos
poderosos, mas pelo Cordeiro humilhado e martirizado.
Como não lembrar aqui os homens
e mulheres que, no Brasil e em toda a América Latina, escreveram seu testemunho
com o próprio sangue? Foi no dia 10 de maio de 1986 que balas assassinas
disparadas a mando de latifundiários insaciáveis calaram a voz do Pe. Josimo
Morais Tavares, deixando uma humilde viúva sem a proteção do filho e um povo
humilhado sem uma das vozes que recordava sua própria dignidade. Josimo sabia
que Deus habitava e sofria na carne do seu povo.
Josimo nos deixou um ‘testamento’
que não pode ser esquecido. “Estou empenhado na luta pela causa dos lavradores
indefesos, povo oprimido nas garras do latifúndio. Se eu me calar, quem os
defenderá? Quem lutará em seu favor? Eu, pelo menos, nada tenho a perder. Não
tenho mulher, filhos, riqueza... Só tenho pena de uma coisa: de minha mãe, que
só tem a mim e ninguém mais por ela. Pobre. Viúva. Mas vocês ficam aí e cuidam
dela.” Também nele brilha a lâmpada do Cordeiro.
“O Defensor, o
Espírito Santo vos ensinará tudo e vos recordará tudo...”
No cálido e não menos tenso
ambiente da Ceia de despedida, Jesus fala como uma mãe que consolaos filhos.
Judas pergunta por que ele manifesta sua identidade divina aos discípulos e não
ao mundo e Jesus responde dizendo que só
o amor pode manifestar claramente o que Deus é e o que Deus faz. É nesta
comunidade-família marcada pela proximidade, pela acolhida e pela abertura que
Deus se manifesta e estabelece sua morada. Por isso, sua partida não é uma
tragédia, mas uma alegria.
Ciente dos limites que
acompanhariam os discípulos e discípulas de todos os tempos, Jesus promete que não nos deixa órfãos e indefesos: ele
envia o Espírito Santo, Consolador, Defensor e Mestre que nos conduz ao
seguimento fiel e consequente dos seus passos. O Espírito é o amor, a fidelidade
e a glória à qual podemos aspirar. O amor proclamado é Evangelho. O amor
assumido e colocado em prática é mandamento de Jesus. O amor visível pelo
testemunho é esplendor e glória de Deus.
Jesus de Nazaré, profeta corajoso e irmão
amado! O Espírito que tu nos prometes e que nós necessitamos como respiro nos
ajude a entender e atualizar tua ação libertadora e tua Palavra vivificadora, a
reinventar tua ação em mil ações que resgatam a dignidade e promovem a plena
vida das pessoas, a anunciar que estás presente e solidário naqueles/as a quem não
te envergonhas de chamar irmãos. Não deixes que a tua Igreja dê as costas ao
Espírito e se erga como muro defensivo, trono que manda e sepultura que
conserva restos mortais. Renova tua amada Igreja, fazendo dela a tua casa e
mantendo-a aberta ao teu Espírito, como materno ventre, fecundo e vivificador.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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