Somos testemunhas da
exaltação de um Servo humilhado.
(At 1,1-11; Sl 46/47; Ef 1,17-23; Lc
24,46-53)
São muitas e diversas as
tentações que ameaçam limitar ou eliminar a força revolucionária da nossa fé em Jesus Cristo. E
uma das principais é considerar a encarnação e a humilhação do Filho de Deus
como um fato transitório, uma etapa pouco importante da sua vida, uma espécie
de parêntesis superado pela ressurreição e pela ascensão ao céu. A ascensão seria sua fuga definitiva das
contradições do mundo, onde teria vindo apenas para nos falar das coisas de
Deus. A glorificação e o poder que o caracterizam hoje seriam o prêmio
pelos sofrimentos suportados e teriam apagado completamente os sinais de uma
vida de filho da humanidade, de homem pobre, trabalhador e sonhador. Se ele
voltar a este mundo será apenas para julgar os vivos e os mortos. O céu seria o seu lugar definitivo e a meta
da nossa caminhada, e a terra seria uma contingência da qual precisamos nos
livrar o mais rapidamente possível. Seria mesmo esta a nossa fé?
“Assim está escrito...”
Em Jesus se cumprem as
Escrituras. Desde cedo, os primeiros cristãos fizeram questão de sublinhar que
a humanidade do Filho de Deus, inclusive a rejeição, a tortura e o assassinato
dos quais foi vítima, não foram uma espécie acidente de percurso ou um descuido
de Deus, mas realização das Escrituras. Para estes cristãos da primeira hora,
em Jesus se realizou plenamente o essencial daquilo que as leis, os profetas e
os salmos intuíram e anunciaram.
Mas este núcleo central e verdadeiro
da fé apostólica não nos autoriza a dar um perigoso salto mortal e concluir que
Deus Pai teria desejado o sofrimento e a morte do próprio Filho. O que os
nossos pais e mães na fé querem sublinhar é que as Escrituras em seu conjunto
apontam para a humanização de Deus, para seu desígnio de mergulhar no mundo,
assumindo asw consequências disso, para manifestar e oferecer seu amor de forma
definitiva e irrevogável.
“O Cristo
sofrerá...”
A glória de Deus brilha no
ser humano livre, humilde e servidor. “Assim está escrito: o Cristo sofrerá e
ressuscitará dos mortos ao terceiro dia...” O dinamismo da encarnação de Deus
não conhece paradas nem limites. Aquilo que começou no seio anônimo de Maria e
se manifestou aos pastores na estrebaria, continuou na carpintaria de Nazaré,
se prolongou nas cidades e aldeias da Galiléia e culminou no calvário, fora dos
muros que separavam protegiam as ‘pessoas de bem’.
Quando os cristãos resumem
as Escrituras com a expressão ‘o Messias sofrerá’, estão afirmando de forma contundente que o Enviado de Deus se
caracteriza mais pela vulnerabilidade compartilhada com os seres humanos comuns
do que pelo poder e pela glória daqueles que desconhecem as dores e lutas
dos homens e mulheres sem nome. É diante deste Deus que se abaixa para, em sua
carne tomada de empréstimo à humanidade, elevar os humilhados, que o salmista
nos convida a bater palmas.
Este movimento de abaixamento e esvaziamento de Deus é salvífico e
libertador porque é guiado e sustentado
pelo amor e continua nos cristãos pelo Espírito de amor que nos é
concedido. Assumindo solidariamente a humanidade humilhada, Cristo assina o
decreto de reconhecimento público e universal da sua dignidade e, ao mesmo
tempo, concede-lhe seu Divino Sopro, o respiro que lhe permite reinventar
sempre de novo a sociedade em parâmetros de justiça e de comunhão.
“Deus pôs tudo
debaixo de seus pés...”
Este movimento de esvaziamento expressa a
verdadeira glória e a admirável grandeza de Deus. É um erro pensar a ressurreição de Jesus
Cristo como uma passagem de uma fase transitória e limitada para uma etapa
defitiva e potente. Ou então como um prêmio que se segue a uma submissão
obediente e desonrosa. É um perigoso
desvio teológico imaginar a ascensão de Jesus ao céu como uma superação da sua condição humana e
servidora. Deus se faz carne e habita
entre nós de modo radical e definitivo.
Por isso, a ascensão de Jesus ao céu precisa ser
compreendida no quadro da sua crucifixão, da demonstração cabal e insuperável
de sua identificação solidária com o ser humano oprimido. Na verdade, proclamar
a ascensão de Jesus ao céu significa
converter nosso modo de ver o mistério do seu esvaziamento. Não se trata da
superação da figura de servo e de último, mas do reconhecimento de que nesta figura se revela o verdadeiro rosto de Deus,
sua glória incomparável, sua grandeza inacessível. E que esta é também a glória
que ele nos deixa como herança.
Ressurreição, ascensão, glorificação e
sentar-se à direita de Deus são imagens e conceitos que, de forma complementar,
procuram dar conta deste dinamismo e afirmar que Deus se manifesta exatamente
no amor que assume a carne humana, serve e dá a vida. É este Filho de Deus
humanado e esvaziado que está acima de todos os poderes e forças, de todos os
senhores e autoridades. Tudo o resto está sob seus pés. Só o amor merece crédito,
submissão e reverência!
“Vós sois
testemunhas destas coisas...”
É disso que somos
constituídos/as testemunhas. A missão que recebemos ao sermos mergulhados/as
nas águas do batismo é esta: reconhecer, proclamar e testemunhar que Deus está
presente nos seres humanos que amam e servem, inclusive nos condenados e
proscritos pela ordem social. Somos testemunhas de um Deus que assume a posição
de Cordeiro/Servo, que mostra sua grandeza fazendo-se pequeno e identificando-se
com o simples ser humano, como o fazem naturalmente as mães.
Jesus Cristo torna-se cabeça do corpo composto pelos homens e
mulheres que acreditam nele. Ele não é refém da Igreja e, menos ainda, da
hieraquia. O corpo não segue seu próprio rumo, mas recebe orientação e comando
da cabeça. Assim, a comunidade eclesial é
convocada a assumir a forma forma de vida de Cristo, sua cabeça. E isso
significa não buscar outra glória que não seja aquela de servir, outra honra
diferente daquela de partilhar o destino dos deserdados da terra.
É por isso que a ascensão de Jesus representa,
ao mesmo tempo, a maturidade missionária dos discípulos/as. “Recebereis o poder do
Espírito Santo que virá sobre vós, para serdes minhas testemunhas.” Antes de
ser elevado, Jesus ergue as mãos e abençoa os discípulos/as. E então, em nome
de Jesus Cristo, eles partirão anunciarão a todos os povos a conversão e o
perdão dos pecados. E levarão em seus corpos os sinais gloriosos de um Deus
encarnado, esvaziado e servidor.
“Para que
conheçais a riqueza da glória que ele nos dá em herança...”
A mais bela e valiosa herança que Jesus Cristo
nos deixa é sua humanidade. Este é o Espírito que ele nos entrega. Paulo tem razão quando pede a
Deus que ilumine os ‘olhos do nosso coração’ para que sejamos capazes de conhecer a herança à qual somos chamados, a
preciosidade da glória à qual ele nos chama. Mas nos iludimos e traímos
Jesus Cristo se buscamos a glória no poder e a herança na expansão do império
cristão ou da cultura ocidental.
Como Cristãos e discípulos
de um Messias rejeitado e crucificado, não
temos direito de sonhar com um tempo de restauração das velhas ordens e dos
podres poderes, cuja estabilidade repousa na dominação, na expropriação e
no medo. Como os discípulos daquele tempo, frequentemente suspiramos e
perguntamos: “Senhor, é agora que vais reestabelecer o reino de Israel?” Mas
ele responde que o nosso tempo será sempre tempo de missão, que nossa missão é
o testemunho, que a nossa glória é a cruz...
“Por que ficais
aqui parados, olhando para o céu?”
Diante dos nosso olhar
estrábico fixado no poder e obcecado pelas alturas, os anjos nos questionam:
“Por que ficais aqui, parados, olhando para o céu?” Depois de nos levar para fora dos muros e nos abençoar, Jesus se retira e se esconde entre as nuvens
para que assumamos plenamente o protagonismo no palco da história. E isso
implica em olhar para a terra e, desde a periferia, ‘ganhar o mundo’ e edificar
nele o mundo de Deus. Eis nossa condição e nossa glória!
Jesus de Nazaré, Cordeiro ferido e Servo
exaltado! Não permita que caiamos na tristeza, na inércia e na resignação.
Torna-nos alegremente abertos ao teu Espírito, vibrantes no louvor, generosos
no amor. Guia-nos na descoberta e na realização da nossa missão de testemunhar
o amor que se faz carne, que nos aproxima dos últimos, que nos faz servidores
de todos/as. Faz-nos profetas da alegria, discípulos/as agradecidos/as por
descobrir que tua ascensão é teu mergulho definitivo no coração do mundo,
honrados/as por continuar tua missão de tirar o pecado do mundo. Assim seja!
Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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