A EUCARISTIA E O CORPO
FEMININO
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A Eucaristia não é um
ritual íntimo e privado. Pelo contrário, tem implicações profundas e radicais
nos níveis antropológicos e sociais. Além disso, o núcleo do mistério - que
a Igreja celebra como o ápice da fé e sacramento da salvação e do amor -
pode ser lida a partir de diferentes perspectivas teológicas. Aqui optamos por
fazer isso a partir da perspectiva do corpo feminino. Nossa intenção é
demonstrar a afinidade simbólica estreita entre a Eucaristia e o corpo
feminino, bem como as implicações políticas desta afinidade.
Hoje podemos ver que a
presença real das mulheres em espaços públicos tem crescido consideravelmente.
Isso é verdade na Igreja, bem como na reflexão teológica ou orientação
espiritual. O fato é que, em todos os casos, a presença das mulheres dentro do
social e dos organismos eclesiais aumentou de forma notável. Além disso, a
maneira como as mulheres experienciam Deus e pensam sobre o mistério de Deus
está sendo considerada cada vez mais como um objeto de trabalho acadêmico que
inspira toda a vida da Igreja.
Em um universo onde o corpo
é tão visível e, principalmente masculino, as mulheres entram como um fator
perturbador. Este "problema" ocorre porque seus corpos são “outros”,
expressando e tornando visível a experiência de Deus, o pensamento e o discurso
sobre Deus, de uma forma diferente e particular. O corpo feminino torna-se
então a condição de possibilidade de as mulheres introduzirem uma identidade
específica para a discussão sobre espiritualidade, misticismo, e teologia.
Este
corpo feminino tem sido o "lugar" em que as mulheres exibem as suas
experiências de ser "presença real" de Cristo no mundo e na Igreja.
No entanto, esses mesmos corpos têm sido, em várias ocasiões, fonte de
discriminação que as mulheres sofreram e continuam a sofrer na Igreja. Este é um fato terrível,
que exige séria reflexão. Se é possível lutar contra a discriminação
intelectual (pelo acesso a estudos e de formação), contra a injustiça
profissional (buscando especialização e provar capacidade), o que se pode fazer
com o próprio corpo? Além disso, as mulheres devem negar e ignorar seus
próprios corpos, criados por Deus para ser honrados e entrar em profunda
comunhão com o Criador?
As mulheres têm uma maneira
de experimentar e falar sobre suas experiências espirituais, que são
inseparáveis de seus corpos. Apresentam e tornam visível a própria
corporeidade, quando falam sobre o mistério de Deus, introduzindo uma
novidade para a compreensão da vida espiritual e da ação do Espírito de Deus no
mundo. Além disso, esse mesmo mistério de Deus, afetando e configurando a
corporeidade sexuada criada da mulher, revela outros aspectos de sua identidade
que enriquecem o Povo de Deus.
Há uma dimensão da vida
cristã em que as mulheres surgem como sujeitos privilegiados, e esta é a
identificação da sua corporeidade com o sacramento da Eucaristia. O corpo feminino é a expressão exata do
sacramento em termos de transubstanciação" e "presença real" em
que o corpo e sangue do Senhor sob as espécies do pão e do vinho, são
dadas ao povo como comida e bebida. Alimentar
outros com o próprio corpo é a suprema forma que o próprio Deus
escolheu para estar definitiva e sensivelmente presente no meio do
seu povo. O pão que partimos e consumimos, que confessamos ser o corpo de
Jesus Cristo, remete-nos para o grande mistério da sua encarnação, morte e
ressurreição. É sua pessoa dada como alimento, é a sua vida corpórea
feita fonte de vida para os irmãos.
Antropologicamente, as mulheres são as que têm em sua
corporeidade a possibilidade física de viver e proclamar a ação divina
realizada na Eucaristia. Durante todo o processo de gestação, parto,
proteção e alimento da vida nova, temos o sacramento da Eucaristia, o divino
ato por excelência, acontecendo de novo e de novo.
Por isso, por causa de sua vocação eucarística
expressa corporalmente, as mulheres hoje são chamados a reinventar e recriar,
no interior do Povo de Deus, uma nova forma de serviço e ministério. Seus
corpos, fonte de tanta desconfiança e preconceito ao longo da história,
são uma forma poderosa e iluminadora para uma Igreja que busca uma linguagem e
uma imagética nova para comunicar-se em um mundo secularizado e plural.
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