Na Família de Nazaré se revela o dom de Deus à humanidade.
No dia em
que festejamos a família de Jesus, não podemos ceder à piedosa tentação de
imaginar uma família idealizada e espiritualizada, alheia à realidade concreta
do seu povo. Do ponto de vista sociológico, a Sagrada Família é uma família judaica
absolutamente normal, tão normal que sequer despertou a atenção dos vizinhos e
da sinagoga, a não ser depois do evento pascal de Jesus. Viveu os valores
humanos e religiosos de uma família crente, freqüentando a sinagoga, meditando
a Palavra dos profetas, peregrinando ao Templo, celebrando a liturgia
doméstica, esperando a vinda do Messias.
É isso que
vemos no evangelho de hoje. Maria e José cumprem a lei que pede que as famílias
judaicas peregrinem anualmente ao templo. Mas há um outro elemento
interessante, subtentendido na cena: a abertura ao mundo religioso do próprio
povo não é suficiente para realizar sua vocação. A família de Nazaré peregrina
anualmente a Jerusalém e Jesus permanece no templo (ou na sinagoga) em meio aos
doutores da leis, mas ela crescerá e amadurecerá – estará “naquilo que é do
Pai” – voltando à vida cotidiana em Nazaré. É na plena inserção no mundo que a
família se torna aquilo que é!
Na sua
meditação sobre este evangelho, o Papa Bento XVI lembra que Jesus adolescente manifesta
um lado liberal e revolucionário, uma liberdade própria de quem é filho e não
escravo. Como a peregrinação a Jerusalém normalmente era feita em comunidade,
podemos dizer que Jesus não teme o afastamento e o dissenso profético,
convocando a própria comunidade familiar e eclesial a uma fidelidade mais
radical a Deus. Maria e José, assim como
a Igreja, são convocados por Jesus a não temer a cruz, e a família e a Igreja
jamais podem pretender possuir Jesus e tê-lo sob controle...
Nesta
cena, temos as primeiras palavras pronunciadas por Jesus segundo Lucas. E são
duas perguntas. “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar naquilo que
é do meu Pai?” São perguntas que interpelam nossas famílias e cada um de nós
sobre as razões que nos movem na busca de Jesus Cristo e sobre o horizonte
maior no qual nos situamos como pessoas e como famílias: precisamos nos ocupar
das ‘coisas de Deus’, ou seja, da vida humana plena, libertada, solidária. A
missão cristã da família não começa nem termina em si mesma: se expande aos
outros, à família de todas as criaturas.
Portanto,
evitemos um ’familismo’ ingênuo e escapista, muito ao gosto da velha moral
eclesiástica e do novo espiritualismo de alguns movimentos. A família é chamada
a ser escola de comunhão e participação, espaço de crescimento onde cada membro
é suporte para o crescimento do outro. É o amor recíproco e a acolhida da
vontade de Deus a força que une os membros da família na sua diversidade e faz
com que todos sejam, ao mesmo tempo, conselheiros e aprendizes, como nos lembra
Paulo na sua carta. Em outras palavras: submissão e suporte recíprocos, sem privilegiar
ninguém.
Unidos
pelos laços de um amor profundamente humano e dentro do horizonte das tradições
do seu povo, José e Maria avançam no escuro da fé. Como Abraão, se lançam na
estrada da fé sem saber onde chegarão. Ousam acreditar, e isso lhes é creditado
como justiça. Precisam se abrir sempre mais à novidade que Deus manifestava
através do filho que lhes é confiado. Aprendem que não podem se afastar das
raízes populares, do vínculo com os pobres, e devem permanecer na periférica
Nazaré, junto àqueles que estão longe. Jesus precisa afundar raízes e obsorver as
esperanças do seu povo a partir da periferia social e religiosa, e ali cresce
em idade, sabedoria e força...
A
convicção de Paulo e da comunidade cristã é que o amor é o vínculo da perfeição
da vida cristã, e também da família. É no amor que as esposas podem ser
solícitas aos seus respectivos maridos, e estes deixam de ser grosseiros com
elas. É o amor que abre possibilidades para que a obediência dos filhos aos
pais não atente contra a liberdade e a dignidade de ninguém, e que os pais
jamais intimidem os filhos, mas os animem a caminhar rumo à maturidade
solidária. É assim que nos revestimos de sincera misericórdia, bondade,
humildade e mansidão, e tornamo-nos suportes uns para os outros.
Sagrada Família de Nazaré, nós te acolhemos
como ambiente e proposta de encarnação e de crescimento, como manifestação do
dom de Deus e resposta humana e generosa a este dom, como busca comum da
vontade de Deus, ambiente de hospitalidade e amor recíproco e de construção
incansável da única família do Pai. Ajuda e inspira nossas famílias a serem
pequenas tendas da tua Palavra viva, escolas da comunhão e solidariedade que
ultrapassam os laços de sangue e de fé, espaços de perdão e reconciliação,
ensaios fugazes mas verdadeiros do Reino de Deus, no qual espelhaste tua vida.
Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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