A revelação
do Deus misericordioso
Recorrer à Escritura para entender melhor em que consiste a misericórdia
celebrada este ano atesta um desejo de voltar às fontes, tal como solicitado
pelo Concílio Vaticano II. Para isso, olharemos primeiramente para alguns
traços revelados por Deus sobre Si mesmo a Seu povo, em seu caminho histórico e
em sua atuação em meio à humanidade.
A Aliança feita por Deus com o povo é relação de intimidade, gratuita e
livre, de fidelidade e verdade. Essa fidelidade inclui uma verdadeira
obstinação misericordiosa do Senhor com relação às infidelidades do povo. Ali
onde há infidelidade e traição, ele responde com mais fidelidade. As palavras hesed e rachamim explicam, com conotações masculinas e femininas, essa
característica fundamental da revelação de Deus a seu povo.
Entre os termos do AT referente diretamente a Deus, rachamin é aquele usado de forma mais consistente para descrever a
misericórdia, atributo por excelência do Deus de Israel. E em sua raiz (rehem = útero, útero materno) rachamim designa uma parte do corpo
humano marcadamente feminino: o útero, onde a própria vida é recebida ainda em
embrião e semente, acolhida, protegida e alimentada, para que possa, então,
crescer, se desenvolver e vir à luz. Rachamin
significa o amor de Deus em comparação direta com o amor de uma mãe que sente
compaixão e angústia pelos frutos de seu ventre.
Assim, o Primeiro Testamento atribui ao próprio Deus características
maternas de bondade e ternura, paciência e compreensão, e prontidão para
perdoar. E o faz quando comparado a uma mãe no texto de Isaías 49, 15:
"Pode uma mulher esquecer sua criança, sem compadecer-se do filho de seu
ventre? Ainda que ela se esquecesse, eu nunca vou esquecer você."; ou quando
se refere diretamente às próprias entranhas divinas: "É Efraim um filho
tão caro para mim, ou uma criança tão mimada que, depois de haver-me dado tanto
o que falar, tenho que lembrar-me dele ainda? Pois, na verdade, minhas
entranhas se comoveram por ele; e ternura para com ele nunca me há de faltar...
"(Jr 31,20) .
A fé de Israel é direcionada a esse Deus como as entranhas em trabalho
de parto de sua mãe, orando e implorando proteção com amor ardente e filial.
"Observa do céu e vê de teu aposento santo e glorioso. Onde está o teu
zelo e tua força, o desejo do teu coração? Tuas entranhas se fecharam para
mim?" (Is 63, 15. Chega mesmo a invocar as misericordiosas entranhas
maternas divinas como o Deus hipostasiada:" Não recordes contra nós os
pecados dos antepassados, venham depressa ao nosso encontro a tua ternura, uma
vez que estamos totalmente abatidos." (Sl 79,8)
A misericórdia divina é expressa como proteção e salvação dos diferentes
perigos e inimigos, como perdão para os pecados do povo, bem como fidelidade inquebrantável
impulsionando a esperança, apesar da infidelidade do povo (Os 14,5; Is 45,8-10;
55,7; Miq 7:19; Dan 9.9). A profunda misericórdia de Deus se dá apesar de suas
infidelidades e pecados, e vem do coração materno de Deus, de suas entranhas
compassivas.
Desde o início, porém, ademais de ser o Deus terno e compassivo, o Deus
de Israel é igualmente o Deus que libertou Israel da escravidão e opressão. É o
Deus dos pobres e oprimidos, que os liberta da opressão. É aquele que ouve o
grito dos oprimidos e "desce" para libertá-los e dar a Moisés a
missão de ir falar ao faraó (Ex 3,7-10). E manda atuar da mesmas forma com os
outros (Lv 25: 35-38; Ex 22: 20-26). É o Rei de Israel e seu protetor, o
advogado, o go'el dos pobres e dos
fracos. O pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro, aqueles que não têm ninguém
para falar por eles e defendê-los vão encontrar em Deus seu defensor e
porta-voz. A justiça do Deus de Israel, portanto, é real, livre e não se dá
pelos méritos dos pobres. Não se refere primeira ou principalmente aos pecados
do povo, mas a seu sofrimento.
É isso acima de tudo que contorce de dor as entranhas da misericórdia e
da compaixão divinas: ver sofrer seu povo amado e escolhido. Para isso desce,
sai de seu lugar e vem para onde está o povo sofredor, a fim de curar,
confortar, encorajar. Apesar de ser o Deus de todos, o Deus de Israel é,
sobretudo, o Deus dos pobres e fracos, tendo predileção especial por eles, não
por seus méritos e virtudes, mas pela situação de vulnerabilidade em que se encontram.
Portanto, o comportamento que aquele ou aquela que acredita em Deus e a
Ele obedece deve ser o mesmo. Servir aos pobres é conduta exigida do ser
humano, porque é o comportamento de Deus (Is 58,6-10). Isso era o que se
esperava do Rei que devia ser no mundo o intendente de Deus. Isso é o que
Israel esperará do Rei messiânico que deve ser o vigário de Deus para com o
povo (Sl 72,2-4.12-14; Is 61,1-3).
Jesus, o Messias de Deus, seu Ungido, será o rosto concreto e visível da
misericórdia que preside a revelação divina nas Escrituras. O Novo Testamento
será a revelação plena de sua pessoa, sua palavra, seus gestos de misericórdia
em relação a todos os que dele se aproximam.
Celebrar o Natal é, portanto, acolher Jesus que vem misericordiosamente
ao encontro da humanidade para consolá-la, confortá-la e fazê-la viver em
plenitude. É igualmente repetir os gestos de Jesus em relação a todo aquele que
sofre qualquer carência ou infelicidade. É seguir os passos daquele que é a
encarnação da misericórdia divina no meio de nós.
Maria Clara Bingemer
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