HOMILIA PREPARADA PELO PAPA FRANCISCO
Basílica
de Santa Sabina | Quarta-feira, 2 de março de 2022
Neste dia, que dá início ao tempo da
Quaresma, o Senhor diz-nos: «Guardai-vos de fazer as vossas obras diante dos
homens, para vos tornardes notados por eles; de outro modo, não tereis nenhuma
recompensa do vosso Pai que está no Céu» (Mt 6, 1).
Pode causar surpresa, mas no
Evangelho de hoje a palavra que aparece mais vezes é recompensa. Habitualmente, na Quarta-feira de Cinzas, a nossa
atenção concentra-se mais sobre o empenho exigido pelo caminho de fé do que no
prémio que daí nos advém. Contudo, hoje, o discurso de Jesus retorna
regularmente a este termo, recompensa, que parece ser a mola do nosso agir. De
fato em nós, no nosso coração, há uma
sede, um desejo de alcançar uma recompensa, que nos atrai e move a cumprir
aquilo que fazemos.
Mas o Senhor distingue dois tipos de recompensa a que pode
tender a vida duma pessoa: por um lado, temos a recompensa junto do Pai e, por
outro, a recompensa junto dos homens. A primeira é eterna, é a verdadeira,
definitiva, é o objetivo da existência. Ao contrário, a segunda é transitória,
é um encandeamento que nos prende quando a admiração dos homens e o sucesso
mundano representam para nós a coisa mais importante, a maior gratificação.
Mas trata-se duma ilusão: é como uma miragem que, uma vez
alcançada, nos deixa de mãos vazias. A inquietação e o descontentamento sempre
aguardam ao virar da esquina quem possui como horizonte o mundanismo, que
seduz, mas depois decepciona. Quem tem
em vista a recompensa do mundo nunca encontra paz, nem sabe promover a paz,
porque perde de vista o Pai e os irmãos.
É um risco que todos corremos; por
isso nos adverte Jesus: «Guardai-vos…»! É como se dissesse: «Tendes a
possibilidade de gozar uma recompensa infinita, uma recompensa sem igual: por
isso tende cuidado para não vos deixar deslumbrar pela aparência, perseguindo
recompensas insignificantes, que vos morrem na mão».
O rito das cinzas, que recebemos
sobre a cabeça, quer subtrair-nos ao encandeamento de preferir a recompensa
junto dos homens à recompensa junto do Pai. Este sinal austero, que nos leva a
refletir sobre a caducidade da nossa condição humana, é como um remédio de sabor amargo, mas eficaz para
curar a doença da aparência.
Trata-se duma doença espiritual, que
escraviza a pessoa, levando-a a tornar-se dependente da admiração dos outros. É
uma verdadeira «escravidão dos olhos e da mente» (cf. Ef 6, 6; Col 3, 22), que
nos induz a viver buscando a vanglória, de modo que conta não a pureza do
coração, mas a admiração do povo; não o olhar de Deus sobre nós, mas como nos
olham os outros. E não é possível viver bem, contentando-se com esta
recompensa.
O problema é que esta doença da aparência mina também os âmbitos mais sagrados. É
sobre isto que Jesus insiste hoje: também a oração, a caridade e o jejum podem
tornar-se autorreferenciais. Em cada gesto, mesmo no mais belo, pode
esconder-se a traça da autocomplacência. Assim o coração não é completamente
livre, porque não procura o amor ao Pai e aos irmãos, mas a aprovação humana, o
aplauso do povo, a sua própria glória. E tudo
se pode transformar numa espécie de ficção em relação a Deus, a si mesmo e
aos outros. Por isso a Palavra de Deus convida-nos a olhar o nosso íntimo para
ver as nossas hipocrisias. Façamos um diagnóstico das aparências que buscamos;
tentemos desmascará-las. Far-nos-á bem.
As cinzas colocam em evidência o nada
que se esconde por trás da afanosa procura das recompensas mundanas.
Lembram-nos que o mundanismo é como o
pó, que um pouco de vento arrasta. Irmãs, irmãos, não estamos no mundo para
correr atrás do vento; o nosso coração tem sede de eternidade.
A Quaresma é um tempo que o Senhor
nos deu para voltarmos a viver, sermos curados interiormente e caminharmos para
a Páscoa, para aquilo que não passa, para a recompensa junto do Pai. É um
caminho de cura. Não para mudar tudo da
noite para o dia, mas para viver cada dia com um espírito novo, com um estilo
diferente. Para isto servem a oração, a caridade e o jejum: purificados
pelas cinzas quaresmais, purificados da hipocrisia da aparência, reencontra-se
a força plena para voltar a gerar uma relação viva com Deus, com os irmãos e
consigo mesmo.
A oração humilde, feita «em segredo»
(Mt 6, 6), no recanto do próprio quarto, torna-se o segredo para fazer
florescer a vida no exterior. É um
diálogo ardente de afeto e confiança, que consola e abre o coração.
Sobretudo neste tempo de Quaresma, rezemos com os olhos fixos no Crucifixo:
deixemo-nos invadir pela comovente ternura de Deus e, nas suas chagas,
coloquemos as nossas e as do mundo.
Não nos deixemos levar pela pressa,
fiquemos em silêncio diante d’Ele. Redescubramos a essencialidade fecunda do
diálogo íntimo com o Senhor. Com efeito, Deus
não Se compraz com as coisas espetaculares; pelo contrário, gosta de Se deixar
encontrar no segredo. É «o caráter secreto do amor», longe de toda a
ostentação e de tonalidades espalhafatosas.
Se a oração for verdadeira, não pode
deixar de se traduzir em caridade. E a caridade liberta nos da escravidão pior:
a escravidão de nós mesmos. A caridade quaresmal, purificada pelas cinzas,
reconduz-nos ao essencial, à alegria íntima que existe no dar. A esmola, dada
longe dos holofotes, dá paz e esperança ao coração. Revela-nos a beleza do dar
que se torna receber, permitindo assim descobrir um segredo precioso: o dar
alegra mais o coração do que o receber (cf. At 20, 35).
Por fim, o jejum. Este não é uma dieta; antes,
liberta-nos da autorreferencialidade da busca obsessiva do bem-estar físico,
para nos ajudar a ter em forma, não o corpo, mas o espírito. O jejum leva-nos
de novo a dar o justo valor às coisas. Concretamente, recorda-nos que a vida
não deve estar submetida ao cenário passageiro deste mundo. E o jejum não se
deve restringir apenas ao alimento: especialmente na Quaresma, deve-se jejuar daquilo que gera em nós
dependência. Cada qual pense nisto, para fazer um jejum que incida
verdadeiramente na sua vida concreta.
Mas, se a oração, a caridade e o
jejum devem amadurecer no segredo, os seus efeitos não são secretos. Oração, caridade e jejum não são remédios
só para nós, mas para todos: podem, de fato, mudar a história. Não só
porque quem sente os seus efeitos, quase sem se aperceber também os transmite
aos outros, mas sobretudo porque a oração, a caridade e o jejum são os meios
principais que permitem a Deus intervir na vida nossa e do mundo. São as armas
do espírito e é com elas que, nesta jornada de oração e jejum pela Ucrânia,
imploramos a Deus aquela paz que os homens sozinhos não conseguem construir.
Vós, Senhor, que vedes no segredo e
nos recompensais além de toda a nossa expectativa, escutai a oração de quantos
confiam em Vós, sobretudo dos mais humildes, dos mais provados, daqueles que
sofrem e fogem sob o estrondo das armas. Colocai de novo a paz nos corações,
concedei aos nossos dias a vossa paz. Amém.
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