“Para quem deu à luz não tem mais jeito...”
Mal
acabou o fuzuê das compras e viagens
que envolvem a páscoa, as vitrines e telas nos interpelam e nos seduzem com
apelos para reconhecer e monetizar o amor daquela que nos gerou e retribuir sua
dedicação tão fundamental, mesmo que seja em suaves e infinitas parcelas
mensais. Afinal, “a mãe é a rainha do lar”, seu amor é incomparável, e nossos
débitos com ela podem ser amortizados com alguns presentes...
A
verdade é que nessas ocasiões, é difícil não inflacionar a linguagem e os
sentimentos, tão superficiais quanto estereotipados. A idealização da figura da
mãe no seu dia comercial não se envergonha de dar as mãos à indiferença, à
exploração e ao desprezo nos demais 364 dias do ano. Mas o comércio precisa
faturar, e se o resultado do ano não superar os anos passados, o sol pode não
brilhar e a chuva pode não cair sobre a terra...
À
margem dessa badalação oportunista, precisamos colocar no centro das nossas
atenções e celebrações a figura e o papel essencial da mãe no desenvolvimento sadio
e integrado dos filhos e filhas. A geração no útero e a maternidade biológica
não são tudo, e podem inclusive ser fruto do acaso. O que conta é a maternidade
afetiva, a decisão de ser mãe e de assumir esse papel social no coração, com
todas as suas consequências.
Erasmo Carlos,
numa das suas belas composições, diz que ser mãe supõe ser forte a ponto de
abandonar a ideia de tranquilidade e de autonomia absolutas: “Quando eu chego em casa à noitinha
quero uma mulher só minha. Mas, para quem deu à luz não tem mais jeito, porque
um filho quer seu peito, o outro já reclama a sua mão, e o outro quer o amor
que ela tiver... Quatro homens dependentes e carentes da força da mulher”.
A
propósito, vem-me à lembrança um episódio narrado no Segundo Livro dos Macabeus
(7,1-42). Sete irmãos foram presos e torturados junto com a mãe por terem se
recusado a romper com as tradições que os vinculavam ao próprio povo. A mãe,
mesmo sob o risco de ver os sete filhos serem mortos num só dia, se manteve
firme e encorajou filhos a fazer o mesmo. Segundo a Bíblia, ela uniu a ‘força
viril’ com a ‘ternura feminina’ (cf. 2Mac 7,21).
Ela
dizia aos filhos: “Não sei como viestes a aparecer no meu ventre, nem fui eu
quem vos dei o espírito e a vida. Também não fui eu quem deu forma a cada um
dos vossos membros. Por isso, o Criador do mundo, que formou o ser humano no
seu nascimento e dá origem a todas as coisas, ele, na sua misericórdia, vos
restituirá o espírito e a vida. E isto porque, agora, vos sacrificais a vós
mesmos, por amor às suas leis” (2Mac 7,22-23).
Por
trás dessa memória popular, certamente idealizada, subjazem importantes traços
da figura da mãe. Esses traços relativizam o “oceano de ternura” que, com
resquícios infantis e de desejos imaturos, costumamos ressaltar. A formação do
caráter dos filhos a partir de princípios éticos essenciais é um desses traços.
A renúncia à posse e ao controle possessivo dos filhos é outro aspecto
importante. Não menos transcendentes são a insubmissão aos “podres poderes” dos
machos de plantão, assim como a prudente distância frente às novidades culturais,
que podem esconder venenos desagregadores.
Dom Itacir Brassiani msf
Bispo Diocesano de Santa Cruz
do Sul
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