São José de
Nazaré, um operário
O próprio Pio XII havia dito, por ocasião do Natal
de 1942: “Todo trabalho possui uma dignidade inalienável e, ao mesmo tempo, uma
íntima ligação com a pessoa em seu aperfeiçoamento: nobre dignidade e
prerrogativa que não são de modo algum aviltadas pela fadiga e pelo peso que
devem ser suportados como efeito do pecado original em obediência e submissão à
vontade de Deus”.
Antes dele, Leão XIII havia escrito “Os proletários
e operários têm como direito especial o de recorrer a são José e de procurar
imitá-lo. José, de fato de família real, unido em matrimônio com a mais santa e
a maior entre todos as mulheres, considerado como o pai do Filho de Deus, não
obstante tudo passou a vida toda a trabalhar e tirar do seu trabalho de artesão
tudo o que era necessário ao sustento da família”. Introduzindo o nome de São
José no cânon da missa, o Papa João XXIII quis homenageá-lo como exemplo de
vida cristã, homem trabalhador e honesto, fiel e obediente à palavra de Deus.
O pai de Jesus era
carpinteiro!
Em geral essa afirmação não causa hoje nenhum
problema para os cristãos, se bem que muitos parecem lamentar secretamente que
Jesus não tenha sido descendente da família nobre ou da dinastia sacerdotal...
Mas no contexto das primeiras comunidades cristãs, especialmente no ambiente do
judaísmo e do império romano, a origem social de Jesus atraía suspeita e
desprezo sobre seu ensino e suas ações.
Ouvindo o ensino de Jesus na sinagoga, seus
conterrâneos se perguntavam perplexos: “De onde vem essa sabedoria e esses
milagres? Esse homem não é o filho do carpinteiro?” Nomeando de cor os membros
de sua humilde família, não conseguiam entender e ficaram escandalizados (cf.
Mt 13,53-58). A condição de vida de José e a profissão que exercia eram causa
de menosprezo e dificultavam a aceitação da mensagem de Jesus por parte do seu
próprio povo.
Mas este é um dado que não podemos esquecer ou
diminuir: José é um homem que viveu do próprio trabalho. No século XIX, o Pe.
Berthier, fundador dos Missionários da Sagrada Família, escrevia: “José
era um pobre artesão: ele não recebeu outra herança senão as mãos, outro
capital senão a carpintaria, outros recursos senão o próprio trabalho”. E esse
trabalho foi o caminho que o levou à integridade nas suas relações com Maria,
com Jesus, com seu povo e com Deus.
Um trabalhador pode
alcançar a sabedoria?
A expressão grega ‘tektôn’, que normalmente é traduzida por carpinteiro, expressa
também o ofício do pedreiro e do ferreiro. De qualquer maneira, sempre
trabalhos artesanais. Assim, podemos supor com bastante fundamento histórico e
literário que José e Jesus foram artesãos experimentados no ofício da
carpintaria e muito conhecidos nas vilas da região.
Podemos presumir também que, seguindo o costume
segundo o qual o pai devia ensinar sua profissão aos filhos, José ensinou Jesus
a distinguir os diversos tipos de madeira e suas qualidades específicas:
plátano, terebinto, cipreste, sicômoro, acácia, oliveira, zimbro, pinheiro,
etc. Ensinou-o também a usar adequadamente as ferramentas de trabalho: machado,
martelo, serra, plaina, cinzel, etc. E observando o jeito de José trabalhar,
Jesus aprendeu o valor de um trabalho bem feito.
O livro do Eclesiástico registra reserva e até um
certo menosprezo pelos trabalhadores manuais. “Aquele que está livre de
atividades torna-se sábio. Como poderá tornar-se sábio aquele que maneja o
arado e cuja glória consiste em manejar o ferrão? Como pode tornar-se sábio
aquele que guia bois, não abandona o trabalho e só sabe falar de crias de
vacas? O mesmo acontece com todo carpinteiro e construtor, e com qualquer
pessoa que trabalha dia e noite...” (Eclo 38,24-27)
Com base nisso, podemos concluir que, como os
demais trabalhadores manuais, José e Jesus “não são requisitados no conselho do
povo, não têm lugar especial na assembleia, não se assentam na cadeira do juiz,
nem conhecem as disposições legais. Eles não brilham pela cultura nem pelo
julgamento, e não entendem de provérbios. Entretanto, são eles que sustentam as
necessidades básicas, e a oração deles consiste em realizar o próprio trabalho”
(Eclo 38,34).
A dignidade dos
trabalhadores
A festa de São José Operário tem como objetivo
celebrar o valor do trabalho humano e proclamar a dignidade dos trabalhadores e
trabalhadoras. São José nos ajuda a voltar nosso olhar àqueles/as que hoje
necessitam do próprio trabalho para sobreviver e, ao mesmo tempo, realizam
através dele sua vocação de construir o bem comum.
Nossa fé sublinha que Deus assumiu a condição
humana, inclusive a de trabalhador. “Pela sua encarnação, o Filho de Deus, de
certo modo, uniu-se a todos os seres humanos. Trabalhou com mãos humanas, pensou e agiu como qualquer ser
humano, amando com um coração humano. Nascido da
Virgem Maria, foi realmente um dos nossos em tudo, exceto no pecado” (Gaudium et Spes 22).
O mesmo documento conciliar recomenda engajamento e
alegria aos cristãos que “seguindo o exemplo de Cristo, que trabalhou como operário, exercem
todas as suas atividades unificando os esforços humanos, domésticos,
profissionais, científicos e técnicos numa síntese vital com os bens
religiosos, sob cuja direção tudo se orienta para a glória de Deus” (GS 43). Assumindo trabalhos manuais
humildes em Nazaré, Jesus conferiu uma dignidade especial ao trabalho e aos
trabalhadores/as (cf. GS 67).
Mudar os sistemas iníquos
Em tempos de crise estrutural como esta que estamos
atravessando, as saídas apresentadas como mais razoáveis e urgentes normalmente
trazem prejuízos aos trabalhadores/as. Fala-se sempre mais em flexibilizar os
direitos trabalhistas, mas pouco se fala em flexibilizar os índices de lucro
dos empresários e dos banqueiros. Enquanto isso, a Igreja afirma sem rodeios
que “é iníquo e desumano” organizar a produção “em detrimento dos
trabalhadores”. “Nenhuma lei econômica o justifica” e, nesses casos, “a
greve deve ser reconhecida como um direito de defesa dos trabalhadores” (GS 68).
Muitos cristãos ainda preferem imaginar São José
trazendo nas mãos lírio da pureza e não as ferramentas de trabalho. E gostam de
contemplar Jesus ostentando na cabeça uma coroa real e portando nas mãos o
pergaminho ou o cajado, a patena e o cálice, mas jamais uma foice ou uma
enxada! E o mundo viria abaixo se alguém ousasse representar José e Jesus numa
manifestação pela redução da jornada de trabalho, contra a flexibilização das
leis trabalhistas ou por uma nova ordem internacional...
Que o trabalho não seja em
vão
Paulo Coelho confessou que gosta de imaginar Jesus
celebrando sua última ceia numa mesa fabricada na marcenaria de José. Mesmo que
isso não seja historicamente provável, é importante sublinhar os laços que unem
José e Jesus, sejam eles de trabalho ou de missão. Jesus será sempre o filho e
o herdeiro do carpinteiro de Nazaré, e dele aprendeu a relevância da utopia
religiosa, o valor do trabalho e a dignidade dos trabalhadores e trabalhadoras.
De minha parte, concedo-me o direito de imaginar
José e Jesus envolvidos no trabalho em mutirão para construção de casas no
povoado de Nazaré. À noite, em casa, depois da modesta janta, vejo José puxando
de memória o Salmo 127: “Se Javé não constrói a casa, em vão labutam os
construtores. Se Javé não guarda a cidade, em vão vigiam os guardas. É inútil
que vocês madruguem e se atrasem para deitar, para comer o pão com duros
trabalhos: aos seus amigos ele o dá enquanto dormem”.
Interrompendo a prece, fixa demoradamente o olhar
terno no rosto de Jesus, e depois continua: “A herança que Javé concede são os
filhos, seu salário é o fruto do ventre: os filhos da juventude são flechas na
mão do guerreiro”. E Maria, envolvendo José com um abraço carinhoso, completa:
“Feliz o homem que enche sua aljava com elas; não será derrotado na porta da
cidade quando litigar com seus inimigos”. Ela sabia que seu marido não brilhava
pela cultura e não entendia de provérbios, mas das mãos dele vinha boa parte do
sustento da família, e seu trabalho subia ao céu como oração.
+ Itacir Brassiani msf
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