Marta e Maria
(Lc 10,38-42)
O relato da visita de Jesus à casa de suas amigas
somente se encontra no Evangelho segundo Lucas. Situa-se no longo caminho do
discipulado, do seguimento de Jesus, que vai desde a Galileia até Jerusalém (Lc
9,51-19,27), lugar do enfrentamento definitivo com o sistema de morte ali
instalado. E Jesus vai instruindo a quem o segue pelo caminho.
Chegando à aldeia de Betânia, Jesus é recebido por
Marta na casa dela. Maria, sua irmã, também estava. Isso revela que Marta era
muito acolhedora, hospitaleira. É interessante termos presente que não havia
homens na casa. Não há referência à presença de Lázaro (Cf. Jo 11,1). Lembremos
que, no relato segundo João, Marta exerce uma liderança muito grande.
Possivelmente, ela era a principal coordenadora das comunidades que nos legaram
este evangelho, pois a profissão de fé no messianismo de Jesus sai de sua boca.
Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele
que deve vir ao mundo (Jo 11,27). Nos sinóticos, essa confissão de fé central
das comunidades está nos lábios de Pedro, representante dos doze (Mt 16,16; Mc
8,29; Lc 9,20).
Quando Marta reclama pelo fato de Maria não lhe
ajudar nos serviços domésticos, Jesus a ajuda a compreender que, além dos
afazeres da casa, é fundamental entrar na dinâmica do Reino. É o que Jesus quer
dizer quando afirma que, acima das preocupações com comida, bebida e roupa, é
preciso buscar o Reino. Se as novas relações do Reino forem colocadas em
prática, fatalmente essas coisas serão partilhadas entre todos (Lc 12,22-32).
Mais uma exigência de Jesus às pessoas que o seguem confirma essa perspectiva:
todo aquele que tiver deixado casa por causa do Reino de Deus, receberá muito
mais no presente e, no mundo futuro, a vida eterna (Cf. Lc 18,29-30).
Marta, ao servir o ilustre visitante na sua casa,
que era o lugar onde a comunidade se reunia, torna-se servidora na igreja, isto
é, diaconisa. Enquanto Maria fica calada, Marta faz uso da palavra, o que
indica sua liderança na organização da comunidade de Betânia, que significa
casa dos pobres. E Jesus a convida a dar um passo a mais, a aderir a seu projeto
missionário pela escuta da palavra. Escutá-la é também vivê-la, é ser
discípula.
O fato de Maria não ajudar nos serviços domésticos,
nesse momento da visita do Mestre em sua casa, não quer dizer que, no dia a
dia, também deixasse tudo para sua irmã. O que Maria faz é aproveitar o momento
único da presença de Jesus para assimilar melhor o seu programa do Reino.
Na tradição judaica na Palestina, somente homens
podiam ser discípulos dos rabinos, os mestres. Também no culto, seja na
sinagoga como no templo, as mulheres eram discriminadas pelos homens que não
permitiam sua participação na direção. E mais. Elas também não podiam estudar a
lei de Moisés, contida nas Escrituras. A prática de Jesus, porém, derruba essas
tradições preconceituosas, resgatando a dignidade das mulheres, pois elas são
tão filhas de Deus quanto os homens são filhos do mesmo Pai. Sentada aos pés do
Mestre e escutando a sua palavra, Jesus admite Maria como discípula. Com essa
atitude, Maria escolheu a boa parte e esta não lhe será tirada (Lc 10,42). Ela
não só acolhe Jesus na casa, como Marta, mas vai além. Acolhe também a sua
Palavra, adere ao seu projeto de amor (Lc 10,25-27) que se torna atitude
prática na misericórdia com quem foi jogado na beira do caminho (Lc 10,29-37).
Ildo Bohn Gass
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