A Igreja no Vaticano II: Uma Igreja essencialmente missionaria
O
segundo dia da segunda semana (26 de julho) do Curso de Aperfeiçoamento da Ação Missionaria, que os Missionários
da Sagrada Família estão desenvolvendo em Santa Cruz de la Sierra, ficou ao
encargo do Professor Pe. José Manoel Godoy, professor de teologia em Belo
Horizonte. O temo foi “perspectivas missionarias do Concilio Vaticano II”.
Pe.
Godoy começou lembrando que, com a Reforma, a Igreja católica perdeu sua
própria identidade, e a busca dessa identidade se tornou o grande objetivo da
contrarreforma tridentina. Durante 400 anos, a Igreja se dedicou a implantar as
decisões de Trento, não sem conflitos. O Vaticano II tentou provocar uma guinada
nesta perspectiva, mas, durante o pontificado de Joao Paulo II e de Bento XVI
este projeto restaurador foi retomado. A partir da Revolução Francesa, a Igreja
se posicionou defensivamente: sentia-se perseguida e via em tudo o vulto da
conspiração.
De
fato, o Vaticano II tentou retomar o diálogo abandonado em Trento. Com seus
documento, e mais, com seu espirito, o Concilio provocou uma verdadeira
revolução eclesiológica. Lumen Gentium
se organiza em torno da ideia de Igreja como Povo de Deus, comunhão e Igreja
particular. Ad Gentes sublinha a
natureza missionaria da Igreja, assim como o respeito às diferentes culturas. Dei Verbum resgata a centralidade da
Palavra na vida e na missão da Igreja. Sacrossanctum
Concilium apresenta uma nova maneira de expressar a fé na sua dimensão
orante e celebrativa. Unitatis Redintegratio
propõe o diálogo com as Igrejas reformadas. Dignitatis
Humanae afirma a liberdade religiosa. Gaudium
et Spes oferece pistas para o necessário dialogo da Igreja com o mundo.
O
Concilio Vaticano II criou um clima propício para abordar a questão
missionaria. Uma Igreja que se entende como sacramento de salvação pede novos
parâmetros e novas práticas missionarias. Bruno Forte diz que a Igreja do
Vaticano II tem como fonte Deus Trino (sua origem, sua finalidade e seu
dinamismo). Na história, a Igreja é chamada a ser ícone do Deus Tri-Uno.
O decreto Ad Gentes
E
neste contexto que se situa o decreto conciliar Ad gentes. Por trás dele estão muitos debates e várias versões do
decreto (nada menos que sete!). A quinta versão, mesmo sendo elogiada por Paulo
VI, sofreu flagrante derrota e precisou ser refeita. Mesmo a sétima redação,
recebeu mais de 1700 votos de modificação. A versão final foi aprovada aos 7 de
dezembro de 1965, com 2394 votos favoráveis e 5 votos contra.
O
primeiro esquema do documento tinha cinco pontos: o dever missionário, as
vocações missionarias, a formação dos missionários, o clero nativo e o respeito
pelas culturas locais, as relações entre dioceses e missões. O esquema final apresenta a seguinte
estrutura: princípios doutrinais, a obra missionaria como tal, as Igrejas
particulares, os missionários, a organização da atividade missionaria, a
cooperação. As mudanças são evidentes e profundas.
Neste
documento, a Igreja se entende como enviada por Deus às nações, sobretudo aos
povos não alcançados pelo Evangelho ou que não conhecem Jesus Cristo e sua Boa
Nova. O sujeito é a Igreja, e o predicado são os povos. Por um lado, a
expressão explicita a motivação teológica e espiritual fundamental; por outro,
mantém a separação entre populi
(escolhidos por Deus) e gentes
(rudes, toscos, atrasados).
O
texto, assim como a missão destes tempos, não conseguiu superar de vez o risco
de negar o diferente, de expandir o colonialismo, de agir de cima para baixo,
como de uma cultura superior para povos inferiores. Mas soou o tempo de superar
a perspectiva missiológica colonialista, que impõe novas leis, novos reis e
novos deuses e caracterizou a missão do século X a XVI.
Evidentemente,
a história da evangelização do nosso continente nos entregou grandes
testemunhas de uma missão diferente, claramente evangélica: Montesinos, Las
Casas... Mas não conseguiram mudar o ‘núcleo-duro’ da missão. Em muitos casos,
prevaleceu a ambiguidade, tanto em relação aos indígenas quanto aos negros.
Esta perspectiva continuou até o século XIX, sob o nome de progresso e
civilização. Isso se nota, por exemplo, no crescente protagonismo missionário
dos EUA, que acompanha o crescimento de sua importância no cenário político e
econômico internacional.
Na
primeira metade do século XX, emergem vários debates teológicos sobre o sentido
e as possibilidades da missão. Alguns teólogos se perguntam seriamente: Se o
próprio Jesus não saiu da Palestina, não teve contato com outros povos ou
nações fora do Império romano, a missão faz parte realmente do patrimônio
espiritual do movimento cristão? Diante do valor original de cada cultura
particular, nas quais estão presentes as sementes do Verbo, é lícito anunciar o
evangelho e convidar à conversão ao Evangelho de Jesus? Se todas as religiões
são caminhos que levam a Deus, para que oferecer ou impor o nosso caminho
particular?
Ao
convocar o Concilio Vaticano II, o Papa João XXIII convocou a Igreja a observar
os sinais dos tempos, as novas relações humanas no período pós guerra, a dar um
salto adiante, rumo a um novo pentecostes, a estabelecer uma nova relação da
Igreja com os povos. O discurso missionário do Concilio é o que leva mais a
sério o diálogo com o mundo, não para conquista-lo mas para aprender dele e
oferecer-lhe caminhos de humanização.
Porém,
permanecem algumas questões disputadas. Tem sentido hoje anunciar Jesus Cristo
como o mediador definitivo de toda revelação, para todos os povos, diante da
pluralidade de religiões e culturas e do direito à liberdade religiosa? Tem
sentido afirmar a necessidade de pertencer à Igreja católica se as pessoas
podem conseguir a salvação mesmo fora dela? Tem sentido afirmar os sacramentos
como meios de graça e salvação, se ela nos é oferecida e chega a nos por outros
meios? Há sentido falar de terras de
missão, de missionários e de missão ad gentes, quando as pessoas, especialmente
no hemisfério norte, com uma certa frequência negam Deus e a religião, e se
tornam uma imensa terra de missão?
O
núcleo da questão: Se tiramos os dois conceitos-chave da proclamação de um
único e verdadeiro Deus e de adoção de meios específicos para a salvação, não
há mais qualquer razão para a missão, nem para a existência da própria Igreja.
Como então reafirma-los evitando todo fundamentalismo e exclusivismo?
Itacir
Brassiani msf
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