Jesus veio ao mundo para viver e dar testemunho da verdade.
Há duas semanas
vivemos uma situação que antecipa e amplia o que vivemos na sexta-feira santa.
Tudo parado e diferente, inclusive a liturgia. E nisso vai se revelando o que
há de mais profundo no ser humano, para o bem e para o mal. O mistério do mal
atinge sua força mais terrível, a humanização de Deus atinge seu ponto mais
luminoso, a entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo. E o
serviço a Deus brilha na entrega despojada e solidária ao cuidado do ser humano
despojado de poder e de honra.
Quem faz dos próprios
interesses um ídolo intocável, cedo ou tarde acaba identificando como
diabólicas e ameaçadoras todas as pessoas, grupos, movimentos e entidades que
pensam diferente e propõem uma vida alternativa. Além disso, concebe
estratégias para eliminá-los sem se tornar impuro, dentro da lei. Quantas leis
– escritas nos códigos ou na tradição dos povos – não passam de artifícios para
disfarçar o domínio e a violência dos mais fortes sobre os mais fracos, de
tentativas de impedir que estes vivam plenamente?
Conhecemos as tramas,
traições e intrigas que levaram à prisão e morte de Jesus. São opções e
atitudes que revelam o mistério do mal e sua força nas pessoas e instituições. Um
mal nada abstrato, pois se expressa nos costumes, nas leis, nos sistemas
econômicos, nos medos, nas ambições. Um mal que assume feições de cinismo, como
quando as autoridades, tendo já decidido matar Jesus, não entram no palácio do
governador para não se tornarem impuras. As ditaduras de todos os quadrantes
criam leis iníquas no desesperado intento de que elas lavem suas mãos tintas de
sangue e tornem leves a consciência que lhes pesa.
É o mistério
inexplicável da iniquidade que faz com que as trevas da noite nos envolva às
três horas da tarde. Uma iniquidade que começa não se sabe bem onde, e se
expressa na afirmação de nós mesmos à custa dos outros, no desprezo de quem é
diferente, no fechamento a toda e qualquer mudança, na indiferença para com as
vítimas, enfim: na defesa da ordem que protege os dominadores. Descrevendo este
dinamismo maldito que nos envolve, o salmista diz: “Eis que na culpa fui
gerado, no pecado minha mãe me concebeu.”
Diante dos seus
acusadores e algozes, Jesus não parece disposto a se debater nem se defender.
Ele tem consciência de que nasceu para tornar palpável e digno de crédito o
amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Ele veio ao mundo
para dar testemunho da verdade, que é a compaixão. Pilatos lava as mãos, mas manda
torturá-lo, transforma-o numa paródia de líder e o apresenta ao povo. “Não
necessitamos de novos Pilatos, que buscam ilusoriamente justificar a
indiferença e a omissão diante da dor do próximo. Necessitamos de corações
semelhantes ao coração de Jesus, se curvou sensivelmente à dor de toda a
humanidade e dela cuidou” (Texto-Base da C. Fraternidade, § 169).
Fixemos nosso olhar em
Jesus de Nazaré, este personagem que realizou em grau pleno a vocação de todo
ser humano. Em Jesus descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude
quando não recua diante do chamado a dar a vida, quando não abre mão da
solidariedade com as pessoas negadas em sua verdade e em sua dignidade. O ser
humano maduro não é o ‘amigo de César’, quem ordena ou cede por medo. Maduro e
pleno é quem, como Jesus, é capaz de se compadecer e cuidar de quem é mais
frágil! Um rio amazonas de águas não é suficiente para purificar as mãos
infectadas pelo vírus da indiferença e da hipocrisia.
A pergunta “a quem
procurais?” feita por Jesus a Judas Iscariotes é dirigida por Jesus também a
nós. O que esperamos ou buscamos na celebração da paixão de Jesus? Consolação
nos sofrimentos inexplicáveis? Confirmação dos nossos interesses e projetos? Proteção
contra o medo que, de repente, toma conta da humanidade? Só nos é licito buscar
forças para perseverar no seguimento de Jesus, o amigo da humanidade. Só podem
beijar o corpo torturado de Jesus aqueles que estão dispostos a renascer como
uma nova família, não mais presa a interesses mesquinhos, mas desperta,
compassiva e cuidadora da vida.
Deus Pai e Mãe, prostrados e agradecidos diante do
supremo gesto de amor do teu Filho, te pedimos: ajuda-nos a permitir que Cristo
viva em nós e a morrermos para a indiferença que se globalizou e mata tantos
seres humanos. Ensina-nos a assumir as consequências
de sermos discípulos deste verdadeiro homem, e dá-nos a generosa coragem de
transformar a Igreja, a sociedade e a história com o fermento da compaixão,
única possibilidade de salvação do homem e do mundo. E faze que, aos pés da
cruz e com ouvidos abertos ao Evangelho, nossas comunidades cantem seu hino de
humildade, amor e paz. Assim seja! Amem!
Itacir Brassiani msf
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