Crer e viver é sair de si mesmo/a e fazer todas as travessias!
A vida é caminhada,
uma permanente travessia. Engajamo-nos nas lutas e sentimo-nos atraídos a
estabelecer aqui nossa morada, mas, ao mesmo tempo, sabemos que somos migrantes,
cidadãos de uma sociedade que ainda está para ser construída. Paulo expressa
esse misterioso dinamismo: o amor de Cristo nos atrai e pressiona,
convidando-nos a passar de uma vida centrada em nós mesmos para uma vida que
tem seu foco nos outros. Radicados em Cristo e com os olhos fixos nele, somos
chamados a ser mulheres e homens novos.
De fato, são muitas e
diversas as nossas travessias. Há uma travessia que leva do ‘eu’ fechado e
indiferente ao ‘nós’ aberto e acolhedor; outra que nos leva de um conhecimento
exaustivo e seguro, de uma ciência que imagina desvendar todos os mistérios, de
uma ideologia que oferece estratégias para todos os desafios, à reverente
consciência de que todas as coisas estão envoltas num mistério que nos
ultrapassa e abraça por todos os lados; e há também a travessia possível e
urgente de uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade inclusiva e
solidária... E muitas outras!
As travessias não
costumam ser tranquilas! Ao lado e contra o movimento de êxodo e expansão que
dá vida a todo o universo, há também uma tendência à inércia, à estabilidade.
Existem ventos contrários à mudança, forças que nos convidam a permanecer fechados/as,
tentações que nos pedem que não troquemos um mal que conhecemos por um bem que
é apenas utopia. É triste quando, na própria Igreja, nascida para acompanhar a
humanidade em suas múltiplas travessias, o medo paira como sombra que preenche
todos os espaços e inibe todos os passos, e isso não obstante todos os apelos e
sinais lançados pelo Papa Francisco.
É claro que aquilo que
é desconhecido e foge ao nosso controle nos amedronta. Controlar as situações,
ou submeter-se ao controle delas, nos dá sensação de segurança e de verdade. E
o medo acaba sendo a mãe das submissões que limitam, das dominações que
esterilizam, das ideologias que matam. É este medo que está na raiz do clima de
intolerância que vivemos no Brasil, e promovê-lo é uma estratégia que serve aos
dominadores de plantão. No coração de algumas liturgias e pregações, e por trás
de muitas mensagens políticas, está a intenção de criar medo e, assim, manter a
dominação.
O evangelho de Marcos
nos revela que os próprios discípulos de Jesus desconhecem e temem a travessia.
Depois de terem ouvido da boca de Jesus parábolas que sublinham o dinamismo
escondido do Reino de Deus, eles estão desconcertados, e temem desesperadamente
a travessia que os leva ao encontro dos estrangeiros, dos pagãos. Tudo parece
escuro, tanto dentro como fora deles. E Jesus diz que na raiz deste medo está a
falta de fé, a expectativa que Deus elimine magicamente as dificuldades da
travessia da vida ou nos leve imediatamente à outra margem, à “velha
normalidade” anterior à pandemia.
A quem Jesus se dirige
quando fala “Cale-se! Acalme-se!”? Ao mar e ao vento que, aos olhos dos
discípulos ou aos próprios discípulos? Mais que o mar, são eles que estão
agitados! O que os aterroriza é a necessidade de mudar de ideia, de ideologia,
de projeto de vida, e entrar em diálogo com quem é e pensa diferente. Mas,
enquanto eles se apavoram e desesperam, Jesus dorme despreocupadamente. Jesus
sabe que a vida está na travessia! Quem o desperta não é o vento ameaçador, mas
o grito apavorado dos discípulos.
Jesus se importa com o
risco que seus discípulos e discípulas enfrentam. A travessia é necessária e
desejada por Deus, e ele nos acompanha em todas elas. É verdade que, às vezes,
Jesus parece dormir e não tomar conhecimento dos riscos que enfrentamos. Mas ele
não assume a responsabilidade e o lugar que nos cabem nessa passagem. Ele
confia em nós, e a única maneira de chegarmos à maturidade é assumir nossas
próprias responsabilidades. Não há travessia automática e indolor, como não há vida
na estabilidade absoluta.
Jesus de Nazaré, peregrino e companheiro nas
travessias que a vida nos pede e oferece: permanece neste barco agitado no qual
se transformou o mundo, a tua Igreja e a nação brasileira. Desperta em nós a
certeza consoladora de que tu nos guias ao porto desejado, e que teu amor nos
impulsiona a não cair na armadilha do medo. Sustenta-nos em todas as
travessias, pois se permanecermos fechados em nós mesmos/as, seguros/as em
nossas ideologias, encaracolados/as em nossas doutrinas, acabaremos afundando.
E converte nosso medo em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar.
Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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